Em datas diferentes, a imprensa carioca registrou três fatos que, embora de natureza diversa, merecem ser agrupados e reapresentados:
1. Francisco Bazílio Cavalcante, cearense, faxineiro no aeroporto internacional do Rio de Janeiro, salário mensal de 340 reais, encontrou no banheiro uma bolsa com dez mil euros e duzentos reais. O sonho de Francisco, de realização sempre adiada, é juntar dinheiro suficiente para visitar a sua terra. Mas não titubeou: procurou o dono da bolsa, um suíço, e a devolveu.
2. Teresa das Panelas é como se conhece em Itinga, localidade paupérrima no interior de Minas Gerais, uma mãe de vários filhos, fervorosa eleitora do presidente Lula. Recebia mensalmente do governo a quantia de 70 reais, tudo o que tinha para subsistir. Agora, com a unificação da renda mínima, passou a receber 50 reais. Aos repórteres, não manifestou nenhuma revolta, não culpa ninguém em especial, muito menos o presidente da República, em quem continua a depositar confiança. ‘Lula não é o culpado’, alega. ‘Isto é coisa dos homens lá de cima.’
3. Em São Fidélis, interior do Estado do Rio de Janeiro, está ameaçada de extinção a lagosta (na verdade, um camarão pitu de tamanho avantajado), que no último meio século tem sustentado a gente pobre das margens do rio Paraíba do Sul. Causas apontadas: pesca predatória, degradação do rio, descaso das autoridades. Diante da crise, membros da colônia da pesca iniciaram, ano passado, um projeto de repovoamento artesanal da espécie. ‘Os pescadores tiram a lagosta ovada do rio, levam-na para um aquário e esperam a desova. Depois, levam as larvas protegidas para a água doce. Estavam em plena experiência quando os rejeitos da Indústria Cataguazes de Papel, que vazaram no Rio Pomba, chegaram ao trecho fidelense do Paraíba do Sul, em 2003. ‘Vimos que o repovoamento estava dando certo quando fileiras enormes de lagostas saíram sufocadas pelas margens do rio, buscando abrigo para fugir daquele veneno. Em compensação, nosso projeto voltou à estaca zero. Mas já recomeçamos, vamos conseguir repovoar esse rio – acredita Joacy Ferreira Gonçalves, presidente da colônia’ (O Globo, 15/4/04).
Exemplos tristes
Agrupados, os três fatos bem poderiam servir para mostrar aos altos próceres petistas que é possível encontrar ‘notícias positivas’ (recentemente reivindicadas pelo ministro Luiz Gushiken) na imprensa diária. Basta saber olhar. Na verdade, porém, esses fatos são indicativos de algo maior do que mera ‘positividade’ jornalística. Cada um deles, em sua singularidade, parece a comprovação cabal da polêmica frase certa vez pronunciada pelo então ministro San Thiago Dantas: ‘O povo é melhor do que a elite’.
San Thiago Dantas foi, como bem se sabe, uma das mais notáveis figuras da vida pública brasileira no século passado. Dono de grande cultura e capacidade oratória, ele queria dizer com aquela frase que nas especificidades do povo nacional, e não nas fantasias eurocêntricas das elites embasbacadas com as novidades européias e americanas, deveriam concentrar-se os esforços governamentais no sentido de uma educação compatível com o projeto de desenvolvimento do país.
San Thiago Dantas tinha razão. Não se trata de ufanismo, nem de mitificação da gente humilde enquanto suposta essência intemporal de algo bom e sábio. Povo não é população, mas um princípio do qual se extraem significações decisivas para a coesão ética e política de uma Nação. Território nacional e povo estão visceralmente interligados no instante em que a Nação se questiona sobre a ausência de um projeto político global para o país que priorize habitação, saúde, educação, transportes e segurança pública. Esse questionamento é tanto mais forte a cada instante em que o governo federal proclama, como agora, a obtenção do maior superávit mensal primário desde 1991, excedendo as exigências do próprio Fundo Monetário Internacional.
Cada um dos fatos acima reapresentados traz como mensagem implícita um voto de confiança na virtude desse bloco histórico permanente chamado ‘povo nacional’. Cada um deles oferece, a seu modo, lições de desprendimento, confiança e esperança. E a lição é tanto mais clara, quando se olha, nos mesmos jornais, para os tristes exemplos de servilismo ou de corrupção das elites de qualquer ordem, essas das quais não se parece poder esperar nada.
A propósito, o suíço que recuperou todo o dinheiro perdido esqueceu-se de agradecer publicamente ao faxineiro Francisco Bazílio Cavalcante. Poderia tê-lo feito, poderia ter pagado a visita do cearense à sua terra natal, poderia ter realizado a troca simbólica do gesto.
Não o fez: San Thiago tinha mesmo razão.
******
Jornalista, professor titular da UFRJ