Desde o dia 11 de julho de 2007, de acordo com a Portaria 1.220/07 do Ministério da Justiça, a classificação indicativa (por faixa etária e horário de exibição) de produtos audiovisuais de entretenimento televisivo passou a ser uma autoclassificação, feita pelas próprias emissoras de TV e não mais pelo Departamento de Classificação do Ministério da Justiça. Essa mudança, no entanto, tem uma implicação previsível, já que a vidraça mudou de lado – para o lado que, literalmente, está exposto aos olhos de todos: a televisão.
Não resistindo a mais uma onda de ataque por parte das grandes redes, o Ministério da Justiça renunciou ao poder que há vários anos vinha exercendo sobre elas – de analisar previamente a programação, especialmente as telenovelas – mas não abriu mão do vínculo entre classificação e horário, outro ponto que as emissoras, representadas pela Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), queriam abolir. E a nova portaria ainda criou para a autoridade pública um poder adicional, o de exigir uma reclassificação, caso não concorde com alguma das autoclassificações televisivas. Em síntese, as emissoras não conseguiram a liberdade total desejada e ainda por cima terão de arcar com mais trabalho e mais responsabilidade.
Utilizando-se de um argumento questionado por vários segmentos – da sociedade e do governo –, de que o exame prévio da programação representava um exercício da censura, algo que é taxativamente vedado pela Constituição, a Abert liderou uma campanha contra a suposta inconstitucionalidade da classificação indicativa exercida pelo Ministério da Justiça. Não foi a primeira vez que adotou essa postura, valendo-se de métodos como a arregimentação de artistas famosos na cruzada contra a volta dos ‘censores’. O governo FHC foi igualmente pressionado e, à época, a Abert também acenou com a alternativa da autoclassificação.
Fusos horários
Agora, as emissoras terão a oportunidade de sentir na própria pele o quanto é complexa e passível de críticas a tarefa de classificar conteúdos, ofício que vinha sendo desempenhado por um quadro técnico de 25 pessoas, no Ministério da Justiça, que agora se acha diante de um novo desafio: checar a pertinência das ‘indicações’ feitas pelas emissoras.
Entretanto, se o governo e as próprias emissoras cumprirem com o dever de informar a população sobre essa mudança de responsabilidade, cada cidadão, cada associação, cada movimento e cada ONG poderão atuar como observadores da responsabilidade social das televisões. Ou, quem sabe, governo, sociedade e mercado encontrem formas de se representarem num conselho paritário, sugestão feita em carta dirigida ao ministro da Justiça, Tarso Genro, pela Dra. Zilda Arns, coordenadora da Pastoral da Criança, entidade vinculada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Um colegiado dessa natureza funcionaria como uma instância plural, capaz de dirimir eventuais discordâncias entre os vários setores interessados.
Face a um eloqüente interlocutor preocupado com a defesa da liberdade de expressão, o secretário nacional de Justiça, Antônio Biscaia, orientado pelo ministro Tarso Genro, inicialmente atuou como moderador, promovendo uma audiência pública (em 20 de junho) que lotou o Auditório Tancredo Neves, no Ministério da Justiça, quando se sucederam oradores pró e contra a Portaria 264, alvo das críticas da Abert. Em seguida, encontrou uma fórmula de atender os dois lados. Derrubou a ‘censura prévia’ dos conteúdos, mas manteve de pé outras exigências, entre elas, a vinculação das faixas etárias aos respectivos horários de exibição e o respeito às populações situadas em diferentes fusos horários.
No Acre, por exemplo, são duas horas a menos da hora de Brasília; três, no verão. As emissoras terão 180 dias para encontrar uma solução técnica para esse problema, possivelmente, a ‘reapresentação’ dos programas e capítulos de telenovelas, embora nada impeça que eles sejam captados por quem dispõe de antenas parabólicas.
Dado novo
Durante todo o período em que procurou cumprir com as exigências da Constituição Federal e do Estatuto da Criança e do Adolescente, de classificar conteúdos de diversões públicas, o ministério da Justiça desenvolveu paulatinamente um esforço de se legitimar com relação ao seu ingrato papel de classificador, possivelmente porque o mesmo atraía para si a pecha de ‘censor’.
Não faltaram campanhas de esclarecimento, consulta nacional, audiências públicas, publicações, seminários, cartilhas, livro e convites à participações do cidadão, por telefone e por e-mail. Com a mudança nas regras do jogo, mesmo que o ministério da Justiça permaneça em silêncio e mesmo que as emissoras busquem um perfil discreto sobre a sua atuação auto-regulamentadora, dificilmente as iniciativas do tipo ‘Quem financia a baixaria é contra a cidadania’ (da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados) deixarão de estar atentas.
E se antes se alinhavam ao governo, quando este era alvo de críticas, mais um motivo terão, agora, de se fazerem fiscais da mídia, já que é sempre mais antipático para o Estado essa função de leitura crítica, quase sempre identificada, na retranca, como investidas da ‘censura’.
A nova conjuntura classificatória também abre mais espaço para um ator cada vez mais presente no cotidiano brasileiro, o Ministério Público. Junto ao mesmo, o ministério da Justiça prometeu recorrer sempre que não for ouvido pelas emissoras, quando solicitadas a reclassificar programações.
Em tese, qualquer cidadão ou entidade pode fazer o mesmo, ou seja, na lacuna de um Conselho de Comunicação Social aberto à sociedade (o que existe é apenas um órgão auxiliar do Congresso Nacional, sem poder deliberativo), o Ministério Público poderá fazer as vezes de ouvidora pública de mídia, com uma capacidade que outras figuras institucionais não o têm: encaminhar o assunto direto para o Judiciário, como já aconteceu.
Para a sociedade, uma das vantagens da auto-regulamentação é que o exercício da responsabilidade social não elide os recursos civis e penais, embora as soluções consensuais sejam mais encorajadas do que as punitivas.
Desse embate em torno da melhor forma de classificar conteúdos de entretenimento midiático, um ganho adicional para todos poderá ocorrer se cumprida a promessa feita pela Abert, de criar um novo Código de Ética da Radiodifusão Brasileira, em substituição ao de 1993, jamais posto em prática – possivelmente porque se referia à relação entre modalidades de conteúdos e respectivas faixas etárias e horários de exibição. Segundo informaram o diretor-geral da Abert, Flávio Cavalcanti Júnior, e o advogado da Abert, Luís Roberto Barroso, um código ‘mais atualizado’ será feito. Ou seja, as emissoras poderão ter uma bússola para essa dupla tarefa que abraçaram, a de garantir Ibope sem descuidos para com o decoro.
Em suma, há elementos para se concluir que a classificação indicativa – e não impositiva, como sempre desejou a Abert – poderá contar com a participação dos mais variados segmentos da vida pública. Para além do dado novo, que é a auto-regulamentação, o Estado permanecerá atento, já que o ministério da Justiça poderá valer-se do seu bem-treinado olho classificatório para exigir a ‘reclassificação’ sempre que entender que as emissoras foram abusivas. Por sua vez, as ONGs, que integraram toda uma militância liderada pela Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi) em favor da manutenção do sistema classificatório na mão do Estado, não ficarão inertes.
Liberdade e responsabilidade
Em passado recente (2005), as ONGs deram uma surpreendente demonstração de que podem contar com a austeridade do Ministério Público e do Judiciário. Foi quando desbancaram o apresentador João Kleber, então na Rede TV!, obtendo contra ele um inédito e histórico direito de resposta na TV em favor de toda uma legião de humilhados e ofendidos em matéria de direitos humanos.
Falido aqui, sucesso no além-mar. João Kleber foi ter com os lusitanos, onde tem contabilizado em euros muito êxito com testes de fidelidade e outras baixarias. De lá, tem até exportado as suas ‘Tardes quentes’ para outros países. Por aqui, no entanto, teve de ceder o espaço equivalente a 30 dos seus programas (dez dos quais por ele financiados) para um coletivo de ONGs (Intervozes na cabeça) que fazem advocacia de direitos humanos difusos e específicos (igualdade racial; liberdade de orientação sexual etc.).
Em matéria de classificação indicativa de conteúdos de TV, poderemos, então, estar chegando a uma ‘maioridade’, na acepção kantiana. O eterno filósofo da Fundamentação metafísica dos costumes entendia que a verdadeira maioridade moral é atingida quando nos tornamos capazes de agir com autonomia, ou seja, de modo que as nossas ações estejam acima de nossos interesses e inclinações individuais e corporativas. De forma veemente, representantes da Abert repeliram a insinuação de ‘raposa cuidando do galinheiro’ nesse assunto de autoclassificação. Estaremos testemunhando, realmente, o primado da responsabilidade social das empresas? Existirá, de fato, uma genuína ‘cidadania empresarial’, mesmo quando a violência é um dos principais filões mercadológicos?
O fato é que toda essa polêmica pode ter representado um avanço institucional. Nem o Estado, nem o mercado e nem a sociedade estão, agora, isolados ou hegemônicos em relação ao decoro para com as diversões públicas. E a partilha de poder – e de conseqüente interlocução – tem sido uma das fórmulas das democracias modernas. Em outras palavras, a liberdade só não é um valor absoluto porque há a contrapartida da responsabilidade – não apenas do mercado, mas de todos.
******
Jornalista, professor da Faculdade de Comunicação da UnB e co-autor (com Fernando Paulino) de um dos capítulos do livro Classificação Indicativa no Brasil – Desafios e perspectivas, Brasília, DF, Ministério da Justiça, 2006.