Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Carniceiros de tragédias

O acidente, o desprezo por vidas ocorrido com o Airbus A320 da TAM, tem oferecido um show macabro, um espetáculo que mostra a degradação da sociedade brasileira. Corrigimos. Escrevemos sociedade brasileira e escrevemos mal porque devemos reescrever: o desastre do avião da TAM tem gerado um espetáculo que mostra a degradação da imprensa brasileira. E assim reescrevemos para ficar nos limites da mais refreada ponderação. Se liberamos as rédeas, deveremos com mais verdade escrever: a negligência da TAM tem gerado um show do nível do que se chama elite, que domina a imprensa do Brasil. Para não adjetivar, deveríamos dizer dessa elite: que gente! E com isso quereríamos apenas escrever: procura-se, com urgência, uma nova definição de gente. A realidade, mais uma vez, corre à frente dos dicionários.

No Brasil de hoje, depois dessa tragédia da TAM, uma prova de equilíbrio mental é o espanto ante o que se vê. Há um circo de horrores maior que o número de mortos. Os vivos, na televisão, nos periódicos, nas revistas, pulam de alegria diante de mais uma desgraça onde o culpado deverá ser, tem que ser, é o governo brasileiro. Abutres, urubus, compará-los a estes seria uma profunda ofensa para os animais que voam e comem carniça. Talvez fosse melhor chamá-los de especialistas em oportunidades de cemitérios, uma expressão gentil que significa papa-defuntos para um golpe.

Apertem o cinto, reprimam o vômito, porque um passeio pela grande mídia vai começar.

‘O que ocorreu não foi acidente, foi crime

Gostaria imensamente de ter minha dor amenizada por uma manchete que estampasse, em letras garrafais, ‘GOVERNO ASSASSINA MAIS DE 200 PESSOAS’. O assassino não é só aquele que enfia a faca, mas o que, sabendo que o crime vai ocorrer, nada faz para impedi-lo. O que ocorreu não pode ser chamado de acidente, vamos dar o nome certo: crime…. Talvez o presidente não se importe tanto, afinal, quem viaja de avião não é beneficiário de sua bolsa-esmola, não faz parte do seu particular curral eleitoral cevado com o dinheiro que ele arranca de nós. Devem fazer parte das tais ‘elites’, que é como ele escarnece da classe média que faz (apesar do governo) o país crescer’.

Um sistema em xeque

Percebam o nível de pensamento e de qualidade da expressão. Se o parágrafo acima fosse escrito por um colegial e publicado em uma folha de adolescentes – perdão, adolescentes, pois queremos dizer, adolescentes com um nível de aprendizado abaixo de médio – compreenderíamos que assim se fizesse. Mas isso foi escrito, pelo menos se assina como tal, por um psicanalista que afirma ter 59 anos e se publicou no Folha de S.Paulo, em 19 de julho de 2007.

Se permitem um abuso de tautologia, o articulista afirma que o governo do Brasil sabia que perto de 200 pessoas iriam morrer em um avião da TAM – e não só nada fez para evitar esse extermínio, como, até, está muito satisfeito, porque, afinal, quem viaja de avião merece morrer desse modo cruel, porque não faz parte do seu curral de mendigos. Muito bem. Mas o que dizer de tão rico pensamento se publicar no jornal de maior circulação do Brasil, e não em um pedaço de papel qualquer? Falhou o controle de qualidade, poderia ser respondido. Mas se olhamos o resto da edição, teremos que responder: pelo contrário, este foi o pensamento à altura da qualidade dos textos desse mesmo dia. Mirem, com os cintos bem apertados:

‘Incompetência, imprudência, tragédia. A despeito das causas do acidente com o Airbus A-320 da TAM, o desastre potencializa a crise da aviação civil, escancara a precariedade do transporte aéreo brasileiro e torna ainda mais urgente uma redefinição ambiciosa e profunda do sistema. É inacreditável que reiteradas demonstrações de inépcia, ao longo de dez meses de crise, não tenham rendido nenhuma demissão no alto escalão do governo Lula’ [do editorial].

‘E as circunstâncias eram desfavoráveis: chovia, a pista estava escorregadia, as reformas são recentes, faltam as ranhuras (riscos para produzir mais atrito nas rodas). Pairando sobre o vôo 3054, havia também o Boeing da Gol e dez meses de crise, greve e prisão de controladores, nevoeiros, trocas de acusações, panes de rádios, suspeitas quanto aos radares. Um sistema em xeque. Seus operadores, sob profundo estresse. Pequenos erros podem virar grandes tragédias. E há a falta de comando do governo e a ganância das companhias’ [de uma articulista, no mesmo dia].

‘Esmolas oficiais’

Note-se, no editorial, a frase ‘a despeito das causas do acidente com o Airbus A-320’, o que em bom português quer dizer: ainda que haja causas do acidente contra o sucesso do acidente, não importa a causa do acidente. Isto não é bem um ato falho. É a perseguição de um objetivo, que não se consegue disfarçar. Observem ainda a frase da articulista, depois: ‘Pairando sobre o vôo 3054, havia também o Boeing da Gol e dez meses de crise, greve e prisão de controladores…’. Percebem? Há um céu acima da aviação do Brasil. Sem dúvida, este céu é o governo Lula e as tragédias que teria gerado. Nesse azul ou névoas, que importa a causa da última desgraça? O acidente virou pretexto. A sentença está perfeita e irretocável, antes do julgamento. Mas apertem o cinto.

‘Duzentas pessoas estão mortas, duzentas famílias choram suas perdas, a maior cidade brasileira convive com os escombros à margem de uma de suas avenidas mais movimentadas, o País está aturdido com a tragédia de dramaticidade acentuada por ter sido anunciada e o cidadão que, embalado pelos números de pesquisas, se pretende a síntese do Brasil, tira o corpo fora.

Ontem, 48 horas depois do segundo sinistro aéreo gravíssimo em 10 meses de exposição do colapso do setor aéreo, o presidente Luiz Inácio da Silva ainda examinava a conveniência de se dirigir à Nação hoje, quatro dias depois… Estas sim (é que são, as pesquisas) o termômetro das ações do Palácio do Planalto, que trata como cidadãos de segunda pessoas que supõe sejam de primeira classe porque viajam de avião, lêem jornais, compram ingressos para ir ao Maracanã, vivem do trabalho, não estão entre o público alvo das esmolas oficiais.’

Em busca da morte

O trecho acima é um clássico do oportunismo brasileiro. Há desgraça, estou presente. Há cadáveres, vou cheirar sua carniça. Publicado em 20 de julho, vem de uma senhora que escreve artigos sob encomenda e aplauso da reação do Brasil. Atende pelo nome de Dora Kramer, mas é tão exemplar e repetida em suas frases e convicções, que poderíamos dizer ser este um pseudônimo coletivo de jornalistas, quer se chamem Ricardo Noblat, Merval Pereira, Eliane Cantanhêde, quer se chamem Ali Kamel, Augusto Nunes, James qualquer coisa, ou discípulos mais medíocres que se espelham nesses insuperáveis mestres. Ela escreve em O Estado de S.Paulo, mas poderia ser em qualquer outro periódico da nossa mais alta inteligência: Folha de S.Paulo, O Globo, Jornal do Brasil, Zero Hora, Veja e outros que a poeira dos próximos 10 anos irá comer. Sem sequer um dobre de sinos.

Pero não esmoreçamos. Há um pouco mais. Os grandes portais, portadas, também não iriam deixar tamanho sofrimento escapar. Passemos pelo UOL, ‘o maior provedor de acesso à internet do Brasil. O maior provedor de conteúdo em língua portuguesa do mundo’, como ele próprio se anuncia. O portal solicitava, incentivava: ‘Você tirou alguma foto do local do acidente com o avião da TAM, em São Paulo? Envie para vocemanda@uol.com.br‘.

No que foi atendido, em profusão, e com profusão, até a morbidez mais descarada e aberta. E o efeito conseguido foi um segundo desastre. Não sei se os devoradores de mortos sabem de um limite para o horror que, ao ser ultrapassado, gera o seu contrário, a letargia, o deboche, a zombaria. Há uma lei do trágico, da tragédia, que impõe limites para o despudor, para o exibicionismo. Em busca da morte flagrada, o portal recebeu e publicou, com destaque na home, a foto de um corpo em queda, a cair entre chamas, do alto do edifício da TAM Express. Que pena. A imagem era falsa, não passava de fotomontagem. Era uma brincadeira… Em nome da justiça deve ser mencionado que o portal, ao ser descoberta a fraude, retirou a foto e se penitenciou com um ‘Erramos’.

Telenovela invade jornalismo

Mas não desistiu do supremo objeto de ser mais lido, pois publicou uma entrevista com outros abutres profissionais, ao reproduzir texto da Agência Estado:

‘O presidente da Federação Internacional de Controladores de Vôo (Ifatca), Marc Baumgartner, declara que não é seguro voar ao Brasil e acusa o governo de estar `brincando com a vida das pessoas´.’

E mais:

‘`O governo sabia de todos os problemas em Congonhas e não fez nada. Eu não voarei no Brasil como passageiro. É assustador´’, declara o presidente. Para ele, novos acidentes podem ocorrer a qualquer momento se o governo não modificar sua postura. Baumgartner alerta que o governo é o principal responsável por não ter tomado medidas necessárias. ‘O acidente é conseqüência da lógica dos problemas estruturais enfrentados no Brasil e da tentativa dos militares de tentar esconder qualquer tipo de problema ou aspecto que não esteja indo bem.’

Mas voemos mais. Nem o céu é o limite.

A Rede Globo de Televisão deu um show de teledramaturgia. Aliás, o sonho dessa emissora é ser Hollywood nos trópicos, cinematográfica que é em todos os programas. O gênero de telenovela há muito invadiu o seu jornalismo. Em dúvida, vejam por favor qualquer peça, qualquer jóia do Jornal Nacional. Os títulos são um primor de folhetim:

‘O maior desastre da aviação brasileira … Duas tragédias em dez meses… Tristeza e indignação na madrugada em São Paulo… A aflição das famílias das vítimas em Porto Alegre… O medo de quem mora próximo a Congonhas’.

‘O apagão virou rotina’

Em qualquer desses capítulos de telenovela, que são mostrados como breves documentários, como autênticos momentos-verdade, há um conjunto de imagens espetaculares, fogo, choro, convulsões, desespero e reconstituições por meio de recursos de computador que, misturados à narração do repórter, são uma aula, uma lição de insuflar emoção nas… reportagens. Lágrimas, choros, prantos, fotos de crianças mortas, de jovens sem vida no vigor dos seus anos:

‘O abraço solidário na hora da dor. Em Congonhas, parentes buscam informações. São momentos de desespero e angústia pra quem nunca imaginou estar tão perto de uma tragédia.

Carmen Elisabete perdeu as filhas Júlia e Maria Isabel, e a mãe, que viajava de férias com as netas. ‘Minha mãe era apaixonada por elas, fazia tudo por elas’, chora a professora. Outra mãe perde as forças ao saber que os filhos de 12 e 17 anos nunca mais chegariam.

Depois da confirmação dos nomes, os parentes das vítimas enfrentam o doloroso calvário da identificação dos corpos: 86 pessoas foram trazidas para um hotel em São Paulo, onde recebem assistência médica e psicológica. Boa parte veio de avião de Porto Alegre trazendo documentos, fotos, fichas médicas e histórias daqueles que perderam.

É por causa da insegurança aérea que a tia de Michele, outra vítima, manda um recado. ‘Para que as autoridades tomem vergonha na cara e comecem a fazer alguma coisa pra esse país ir pra frente’, diz a advogada Sônia Miranda Vieira.’

Berlusconi não sabe o quanto aprenderia com uma semana de estágio na redação do Jornal Nacional. Ali, ele veria, por exemplo, editoriais de tragédias com ares de reportagens. Porque, entre imagens, há também espaço para a narração de textos com recuo no tempo:

‘Num período de dez meses, que começou em setembro do ano passado, os brasileiros assistiram às duas maiores tragédias aéreas da nossa aviação. Enfrentaram nos aeroportos uma seqüência assustadora de problemas e aborrecimentos.

Em setembro do ano passado, um Boeing da Gol e o jato Legacy se chocaram, matando 154 pessoas. A tragédia marcou o começo de uma crise que se arrasta há quase dez meses e expôs as deficiências do sistema aéreo brasileiro. Os controladores de vôo, insatisfeitos, iniciaram uma queda de braço com o comando da Aeronáutica, fizeram operações padrão com atrasos e cancelamentos de vôo. O apagão virou rotina…’

Quanta pedagogia…

Os últimos capítulos dessa teledramaturgia de cadáveres foram: em 19/7, a descoberta de que o avião possuía um defeito no reversor da turbina direita muito antes da explosão do dia 17 de julho – o que, é claro, não retira a culpa do governo, sem dúvida; em 20/7, a divulgação de imagens do assessor especial do presidente da República, filmado na privacidade, às 20h30 no interior da sua sala, a fazer gestos que significam coito, (‘estão fodidos’). Isto significa, na tradução da luta política, um escárnio, um insulto à memória das vítimas, porque o governo estaria a comemorar uma nova versão para os 200 mortos, os fodidos. Conforme palavras da… reportagem:

‘A imagem é do assessor especial da Presidência, Marco Aurélio Garcia, e de um funcionário, assistindo ao Jornal Nacional de ontem. A notícia da possibilidade de ter havido problema mecânico no avião da TAM foi recebida com uma reação de Marco Aurélio e outros gestos obscenos…

`Olha, foi uma das cenas mais dantescas, mais cruéis que eu já vi. A nação inteira chorando, o PAN parando pra chorar e o Palácio festejando. O cara levantando as mãos, dizendo que a culpa não é do governo! Claro que é do governo. Agora, mesmo que não fosse do governo, comemorar é uma bofetada no povo brasileiro´, afirmou o senador Pedro Simon…

Parentes de vítimas do acidente estão indignados. `Isso é um descaso com a gente. Estamos indignados. Já não bastasse toda a dor que a gente tem tido, ter que passar por isso agora´, chora Renato César Rubinick, pai de duas vítimas.’

Aguardemos os próximos capítulos. Quanta pedagogia houve na condução dessa tragédia por nossa imprensa. A lição desta semana foi que uma guerra não se faz somente com bombas, fuzis e metralhadoras. O fundamental é que possua cadáveres.

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Jornalista e escritor, Recife, PE