Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Acidentes, pressões e culpados

Dificilmente alguém que ‘tenha nascido de mulher’ – tomando emprestada uma expressão ao Macbeth, de Shakespeare – poderia ficar indiferente à tragédia ocorrida na noite de 17 de julho de 2007, no aeroporto de Congonhas. A atenção à cobertura do evento, que veio a obnubilar, num certo sentido, a própria realização do PAN, conduz-me a algumas considerações.

A jornalista Tatiane Klein, em seu pronunciamento para o OI no rádio, creio que foi ao ponto certo ao destacar a inexistência de um único responsável pelo fato em si mesmo: a pista foi inaugurada, sem condições, pela administração do aeroporto, sob pressão da opinião pública e das empresas aéreas. Responsável quem postergou a segurança aceitando as pressões; responsável, também, quem fez as pressões. Se estas não tivessem existido, não seria tão provável o risco do acidente; se a administração que inaugurou a pista tivesse mantido firmeza, dado um argumento de natureza objetiva – a segurança – que se sobrepunha aos desejos dos interessados, tivesse oposto a resistência que lhe seria exigível, também não seria tão provável o risco do acidente.

Houve, assim, dois momentos: 1) a deflagração da pressão; 2) o atendimento à pressão. Tanto a deflagração quanto a ausência de resistência constituem, em si mesmas, manifestações de vontade, no pleno exercício de sua autonomia e, pois, acarretam, necessariamente, a responsabilidade de quem toma as decisões.

O caso Bateau Mouche

O problema, quando se procuram culpados, é apenas que já não há muito a fazer, a não ser dar uma satisfação a quem foi agravado: os mortos não serão trazidos de volta, ainda que se achem os responsáveis e que eles sejam punidos exemplarmente, do modo mais atroz ou não. Muitos acreditam piamente que a atrocidade da pena conduz a que não se repitam os fatos indesejáveis: se fôssemos verificar o período em que tivemos no Brasil a pena de morte, de 1969 a 1978 (Decreto-lei 898), veríamos que foi precisamente aquele em que se desenvolveram, inclusive, as operações de guerrilha. Já cheguei, numa ocasião, a assistir a pessoas preferirem ver castigado um eventual culpado pela frustração do atendimento de suas pretensões do que verem arredada a causa da aludida frustração, quando ainda havia como ser arredada tal causa. O prazer da vingança é maior, em muitos, do que o prazer de ver satisfeita uma necessidade.

Curiosamente, situações como a que se verificou na noite do dia 17 não constituem, sequer, novidade: poucos se devem lembrar, hoje, do caso do Bateau Mouche, o qual, no final dos anos 1980, em festa de réveillon, embarcou pessoas além da sua capacidade, na Baía da Guanabara, e soçobrou, levando, entre outros, a esposa de um influente político mineiro, o ex-ministro Aníbal Teixeira.

O que há a fazer

Falar em aura sacra fames (fome amaldiçoada do ouro), como consta do Livro III da Eneida, de Virgílio, é meramente um brado moralista que nada resolve, a não ser que se venha a repensar a redução de todos os valores ao mercado – cujo pressuposto essencial é, como se sabe, a crença de que o equilíbrio espontâneo entre os egoísmos conduz ao bem supremo. Estabelecer conexões mágicas entre fatos que não têm a menor influência para o evento (quem está na Presidência da República ou no governo de São Paulo ou na prefeitura do município, o fato de estar o aeroporto sob comando estatal ou particular, sob comando civil ou militar) é meramente tentar extrair proveitos políticos de um fato que, em sua nudez, simplesmente, privou as famílias de, aproximadamente, duzentas pessoas, de seus entes queridos.

Objetivamente, o que há a fazer é: 1) resgatar os mortos; 2) apurar as causas do acidente; 3) tomar as providências necessárias e exigíveis para que não mais se repitam. Claro que este último ponto envolve um problema muito mais ‘complicado’, porque implica, necessariamente, a realização de investimentos, isto é, despesas. E, com relação a este, entram vários outros fatores.

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Advogado, Porto Alegre, RS