A TV Globo mais uma vez se vê envolvida num episódio que merece uma reflexão profunda. Câmara escondida e invasão de privacidade com o visível objetivo de atingir uma pessoa com nome, endereço e posição política definida. Na verdade, o que foi feito com Marco Aurélio Garcia, assessor internacional do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, é um exemplo típico de fascismo midiático.
Pior ainda: a Globo foi repercutir o gesto de Garcia, um gesto sem fala e sem que se possa afirmar com precisão a que estava relacionado, embora em princípio fosse atribuído a divulgação de uma informação pela própria Globo de um defeito no avião sinistrado da TAM, o que tira a culpa do governo pela tragédia. Acabou virando uma verdade absoluta, sem nenhum tipo de contestação, só pelo fato de a emissora de maior audiência do país ter decidido divulgar.
Dois políticos foram escalados para comentar o top-top de Garcia – os senadores Pedro Simon e Jefferson Péres. Simon, com o seu estilo teatral de sempre, criticou o que ele considerou uma comemoração, enquanto Peres, ao velho estilo udenista que o caracteriza, seguiu a mesma linha e disse que o gesto de Garcia representava uma afronta ao povo brasileiro. De quebra, o pessoal da Globo foi ouvir um parente de uma das vítimas da tragédia do avião da TAM no aeroporto de Congonhas, que também fez duras críticas ao autor do gesto.
No caso de Marco Aurélio Garcia, como se trata de uma figura polêmica cujas posições em matéria de política externa desagradam os setores conservadores, a TV Globo aproveitou para queimar a imagem do cidadão, ainda mais em um momento que os brasileiros estão chocados e impactados com a tragédia aérea. Só faltou a TV Globo, como estão fazendo outros veículos, ter acionado alguém para pedir a exoneração do autor do gesto.
Ética no jornalismo
É o caso de se perguntar: se alguém vinculado ao conservadorismo fosse flagrado, como foi Marco Aurélio Garcia, a direção da Globo, leia-se Carlos Schroeder e Ali Kamel, autorizaria a divulgação escancarada da imagem? No momento que os jornalistas vão discutir o Código de Ética nos próximos dias 3, 4 e 5 de agosto em um congresso extraordinário da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), o episódio serve para se refletir sobre o tema.
Senadores como Pedro Simon e Jefferson Péres deveriam, isto sim, pensar duas vezes antes de aparecer nos tais cinco minutos de fama que o Jornal Nacional oferece aos políticos, sobretudo àqueles que defendem posições muito próximas aos interesses da mídia conservadora.
Quanto ao acidente aéreo propriamente dito, mais uma vez a mídia tentou, de uma forma equivocada, fazer um julgamento precipitado sobre as causas da tragédia. Antes de mais nada, os principais jornais brasileiros já tinham escolhido o governo federal como o principal culpado. Não se trata de criticar ou aplaudir este governo, que, por sinal, é um dos mais ambíguos da história brasileira, mas aí é outra história. Mas, de antemão, apontar o governo como culpado de uma tragédia, sem nenhuma base técnica, isto tem um nome: manipulação da informação – algo que os meios eletrônicos, sobretudo, têm feito com muita freqüência de uns anos para cá.
Quanto a Marco Aurélio Garcia, não é de hoje que a mídia conservadora tem feito marcação cerrada sobre ele. O colunista Augusto Nunes, do Jornal do Brasil, numa ocasião chegou a mencionar a precariedade da dentição de Marco Aurélio ao criticá-lo. Mas, até aí, como tal comentário só mostra o baixo nível jornalístico do colunista, não há grandes problemas. É um direito que assiste ao jornalista se ocupar dos dentes de Marco Aurélio, em nome da liberdade de expressão… Até porque o Brasil lidera o ranking mundial dos desdentados, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), de acordo com revelação feita pelo cirurgião buco-maxilo-facial Fabio Guedes.
Quando uma emissora de televisão coloca um cinegrafista clandestino para invadir a privacidade do assessor internacional de Lula, ainda mais o gesto filmado sendo comentado com a maior naturalidade, com o visível intuito de queimar Marco Aurélio Garcia, o fato se torna grave. Não é uma questão de liberdade de expressão, mas, como se dizia antigamente, de jornalismo marrom. Muitas vezes na Europa, os paparazzi – os tais fotógrafos que se escondem para bater uma foto sensacional em um momento de privacidade de alguma figura pública, ator, atriz, jogador de futebol, autoridade ou político – perdem processos milionários na Justiça, exatamente porque os magistrados consideram a imagem colhida como invasão de privacidade.
Trata-se, isto sim, de uma corrida desenfreada atrás de audiência. Muitos órgãos de imprensa embarcam nesta canoa aética e publicam as fotos com grande destaque. Quando perdem ações na Justiça, na Europa ninguém é acusado de tolher a liberdade de expressão, um conceito utilizado a todo o momento pelas grandes empresas de comunicação que se sentem autorizadas a fazer o que bem entendem, seja invadindo clandestinamente a privacidade de alguém, seja montando imagens ou simplesmente utilizando meias verdades e mentindo. Até mesmo quando apóiam golpes de Estado e são advertidos ou punidos por isso, os meios eletrônicos botam a boca no trombone em nome da liberdade de expressão. E quando perdem o direito de ter renovado o canal, aí nem se fala.
Às favas com a ética
A TV Globo, ao apresentar a imagem de Marco Aurélio Garcia, simplesmente repetiu o que os paparazzi fazem diariamente em nome de um jornalismo para lá de discutível.
No caso em questão, vale repetir, a emissora de maior audiência do país, ao se sentir ameaçada no telejornalismo por uma outra emissora concorrente, faz o possível e o impossível para ganhar mais pontos no Ibope – pois, afinal de contas, precisa a qualquer custo manter o primeiro lugar. Da mesma forma como o então ministro Jarbas Passarinho mandou ‘às favas os escrúpulos’ ao votar, em dezembro de 1968, favoravelmente à decretação do AI-5, os diretores da Globo mandaram a ética jornalística às favas. Fizeram a opção pelo fascismo midiático. Os senadores Simon e Péres, consciente ou inconscientemente, embarcaram no esquema. O parente de uma das vítimas da tragédia com o avião da TAM foi envolvido na base da emoção.
É bom tirar algumas conclusões sobre o episódio, que deve servir de alerta para os homens públicos deste país atentem sobre até que ponto uma emissora de televisão tudo pode, impunemente. Se, amanhã, alguém que se sinta ofendido com a invasão de sua privacidade entrar na Justiça, como fazem os atingidos pelos paparazzi, aí, podem crer, haverá uma grita orquestrada em favor da liberdade de expressão. E a Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) será acionada por algum big shot midiático.
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Jornalista, Rio de Janeiro, RJ