A imprensa disse e escreveu recentemente muito sobre o gesto, por muitos chamado de ‘obsceno’, do assessor especial da Presidência – junto com o assessor do assessor num recinto do Palácio do Planalto – dois dias depois da tragédia com o avião da TAM na qual morreram cerca de 200 pessoas. Muitos associaram o gesto do assessor Marco Aurélio Garcia ao enunciado da ministra do Turismo referente a uma sugestão sobre como deveriam reagir os cidadãos diante da crise aérea, considerada pela ministra como inevitável – os cidadãos deveriam aprender a usufruir os efeitos negativos e incontornáveis da crise nos aeroportos; isso, ainda por cima, foi dito de uma forma muito grosseira.
A propósito, o enunciado da ministra Marta Suplicy foi horroroso, principalmente quando se lembra o modo como, anos antes, ela tratou duramente um adversário político, Paulo Maluf, quando este, referindo-se a estupradores que assassinam suas vítimas, disse: ‘Quer estuprar? Está com vontade de estuprar? Então estupra, mas não mata’. A formulação, não obstante sua forma desajeitada, mostra uma valorização da vida que a violenta detratação foi incapaz de perceber.
Duas observações devem ser feitas sobre a associação entre o gesto feito pelo assessor e a expressão usada pela ministra. Primeiro: a declaração da ministra, expressa semanas atrás, tratava fundamentalmente dos inúmeros e longos atrasos de decolagens de vôos e das cansativas filas que os usuários enfrentavam nos aeroportos. O que ela disse não se referia à tragédia que ocorreu mais de um mês depois de sua declaração. Por mais antipatia que o enunciado da ministra possa merecer (sobretudo vindo de quem participa do governo e é titular de um ministério ligado em algum grau à crise aérea), não é correto – a não ser que se atribua à ministra inexplicáveis poderes historicistas de previsão – associar sua declaração à tragédia ocorrida com as vítimas do acidente do avião da TAM. É anacronismo vincular de maneira forte o enunciado da ministra à tragédia ocorrida posteriormente.
Em segundo lugar, é preciso observar que, pouco depois da declaração, a ministra apresentou um pedido de desculpas inequívoco e em tom de contrição, mostrando assim uma dose de humildade. Por um lado, as desculpas da ministra não foram devidamente ressaltadas na imprensa como talvez devessem ter sido; ninguém na imprensa reparou adequadamente numa eventual demonstração de humildade por parte de quem, se diz, não parecia ser capaz de tal demonstração. À luz do que ocorreu mais recentemente, talvez agora seja possível perceber melhor isso.
Em contrapartida, a nota emitida pelo assessor a respeito de seu gesto pode ser considerada várias coisas, compreendida em vários aspectos, mas certamente não como um pedido de desculpas. Senão, vejamos.
A nota que justifica e defende o gesto
Primeiro, a nota justifica o gesto de seu autor: o gesto foi feito em âmbito privado; seu autor jamais o faria em público. Feita a justificativa, a nota defende o gesto tal como feito: o gesto foi feito em repúdio àqueles que ‘sordidamente’ insistiram ‘na postura partidária de oposição sistemática’ ao governo do qual fazem parte o assessor e o assessor do assessor. A defesa do gesto é feita com um ataque raivoso.
Então, ao justificar o gesto, a nota pretende culpar a publicidade de seu gesto. Por uma torção de sentido, ao fazer a justificativa de seu gesto, o autor da nota se esforça em jogar a luz estritamente na publicidade de seu gesto, esquivando-se de tratar de seu gesto propriamente. No entanto, o sentido do gesto é claro, plenamente compreensível em inúmeros países de diversos idiomas.
Em seguida, ao defender o gesto, a nota vai ao ataque, procurando acusar àqueles a quem o gesto foi endereçado. O gesto foi dirigido para aqueles que criticam o governo pelos problemas estruturais no sistema aeroportuário brasileiro, problemas que geraram a tragédia do avião da TAM. Assim, o gesto, pretende o autor na nota, é plenamente defensável; então, se alguém têm culpa pelo gesto feito são aqueles a quem o gesto se dirigia. A nota, através de uma violenta retorção de sentido, consegue uma proeza: responsabiliza pelo gesto (chamado por muitos na imprensa de obsceno) aqueles a quem o gesto repudia.
É a tática do advogado do estuprador que, diante das evidências insofismáveis de que seu cliente cometeu o estupro, trata de acusar a vítima e seu sórdido e sistemático comportamento ‘fácil’. O estuprador efetivamente estuprou, mas a culpa é da estuprada. Ao invés de mostrar o réu em contrição e arrependido, a defesa tenta acusar a vítima (tática que não é problema para o advogado: no final, quem foi preso foi o Mike Tyson, não seu advogado).
‘Ainda assim’ é um pedido de desculpas?
Muitos na imprensa apontaram que a nota assinada pelo assessor só pede desculpas na última frase [em sua edição de sábado (21/7), O Globo ressalta, na primeira página, que, mesmo assim, o pedido de desculpas foi feito no condicional; na matéria interna, chama o pedido de ‘acanhado’]. Se assim fosse efetivamente – se o final do comunicado contivesse um pedido de desculpas –, então o desfecho da nota suspenderia, anularia, cancelaria tudo o que, na nota, o precede: a frase final seria inconsistente com tudo o que foi dito anteriormente na nota.
À luz do que foi dito ao longo da nota, ela não pode se encerrar de forma consistente com um pedido de desculpas – nem mesmo com um pedido acanhado de desculpas. Diz a nota no seu encerramento: ‘Aos que possam, ainda assim, sentir-se atingidos por minha atitude, apresento minhas desculpas’. Se, apesar dos argumentos apresentados antes, alguém ainda se sentir ofendido (mas não deveria), então o autor do gesto termina a nota mostrando suas desculpas.
Quando a nota se refere aos que possam continuar ofendidos mesmo após lerem a justificativa e a defesa do gesto, alude de maneira evidentemente vaga referente a quem teria o direito de se sentir ofendido: o autor do gesto e que assina o comunicado mostra, de maneira ostensiva, que não acha que alguém mereça desculpas pelo gesto vulgar feito por ele. O desfecho da nota repete, numa forma e num grau diferentes, a mesma intransigência e arrogância que tinham aparecido ao longo da nota. Não há um pedido acanhado de desculpas simplesmente porque se trata efetivamente de uma nota intransigente e arrogante.
O gesto, pretende a nota, tem justificativa e defesa. A justificativa é que seu autor não faria o gesto em público; isso lá é justificativa do gesto efetivamente feito? A defesa por o gesto ter sido feito é que o assessor não tolera crítica ao grupo do qual faz parte (cabe lembrar suas reações histéricas diante da imprensa quando ocupou emergencialmente a presidência do seu partido, ano passado), de modo que a culpa por ele ter feito o gesto de repúdio é daqueles que foram repudiados pelo gesto; isso é defesa?
Se apesar da justificativa e da defesa apresentadas, se ainda assim alguém se sentir ofendido – embora, no seu entender, não haja motivos para que alguém se sinta ofendido pelo gesto –, o autor do gesto e que assina a nota diz que apresenta suas desculpas. O autor do gesto que assina a nota não se desculpa; dá os motivos (apresenta suas ‘desculpas’) por que ele entende que seu gesto se justifica e é plenamente defensável. Isso lá é pedido de desculpas? No entanto, num pedido de desculpas efetivo, você as pede, não as apresenta.
A índole da nota
De uma vez por todas: as palavras derradeiras da nota não expressam nenhum tipo de arrependimento nem qualquer pedido de indulgência aos que sintam ofendidos; pelo contrário, os termos finais da nota retomam a justificativa e a defesa apresentadas antes ao longo da nota. Desta maneira, o comunicado apresentado pelo assessor não procura fazer qualquer espécie de reparação, não apresenta, nem mesmo esboça, uma retratação. Assim como a linha final da nota reitera o teor da nota, a nota como um todo reforça a índole do gesto.
Em tempo: aqueles familiarizados – ou mesmo aqueles que, como eu, pelo menos conhecem um pouquinho – reconhecem, nas torções e retorções de sentido efetuadas pelo comunicado do assessor, os procedimentos dialéticos de matriz hegeliana. Servem para, com doses de cinismo (que, afinal, tanto caracterizam o pensamento hegeliano) fazer a nota parecer educada e civilizada, quando efetivamente ela é, no mínimo, da mesma índole grosseira que o gesto vulgar cometido no Palácio do Planalto e defendido na nota.
As torções de sentido são tais que, a se acreditar no teor do comunicado, quem deveria se justificar e pedir indulgências pelo gesto são aqueles que foram repudiados pelo gesto. O comunicado procura fazer o impossível: separar o repúdio e o tripúdio intrínseco ao gesto. Como ressaltou Dora Kramer em sua coluna de sábado (21/7) no Estado de S.Paulo, o gesto mostra a prioridade que o autor do gesto dá aos interesses do grupo que está no governo a despeito de uma preocupação e respeito em relação às vítimas da tragédia e seus familiares e conhecidos em específico e à população em geral. Assim, o gesto é percebido pela população como evidência da postura partidária, feita de maneira sistemática, do grupo no governo em enfatizar exclusivamente seus interesses políticos em detrimento dos interesses da população.
A nota repete o gesto ao tratar com irrelevância a tragédia, as vítimas e seus familiares e conhecidos e a população, preferindo enfatizar seu repúdio aos críticos. A observação de Dora Kramer sobre o conjunto formado pelo gesto e pela nota explica a reação forte de familiares e amigos das vítimas, inconformados com a cena do gesto e com a explicação da nota a ponto de chamarem o assessor e o assessor do assessor de ‘patifes’. Nesse sentido, Zuenir Ventura escreveu que, mais do que meramente obsceno, trata-se de ‘gesto cafajeste’ – mas cabe ressaltar, os adjetivos empregados para o gesto podem e devem ser estendidos para a nota. Por sua vez, trata-se de um procedimento caracteristicamente hegeliano procurar denegar o fato evidente de que o repúdio manifesto do gesto vulgar foi concomitante e inseparável de um tripúdio.
Se há mais de um mês atrás a declaração da ministra Marta foi considerada o cúmulo da grosseria, é apenas porque era difícil de se imaginar então as manifestações vulgares e prepotentes, sem a menor tentativa de reparação ou de contrição, do gesto e da nota tripudiantes do assessor.
Por fim: o assessor, tudo indica, foi extremamente precipitado ao fazer o gesto repudiando, segundo sua explicação, aqueles que ele considera sórdidos por terem dúvidas sobre se a tragédia foi um simples acidente aéreo ou tem relação com os inúmeros problemas ocorridos no sistema aeroportuário. Afinal, o gesto foi uma reação a uma reportagem na televisão que mostrava falha mecânica no avião. O autor do gesto, aparentemente, pensou naquele momento que isso isentava completamente os problemas na infra-estrutura aeroportuária.
O assessor inverteu a relação de causa e efeito: a eventual falha mecânica no avião não terá sido a causa primária do desastre; o resultado desastroso da eventual falha mecânica ocorreu em conseqüência dos problemas no sistema aeroportuário. O autor do gesto não foi capaz de perceber no momento que a própria reportagem mostrava sinais do que foi dito e repetido nos dias imediatamente seguintes: que a falha do reverso do avião não era suficiente para provocar a tragédia ocorrida.
Ou o assessor achava que o problema no reverso daquele avião é responsável pelos inúmeros problemas que ocorreram no sistema aeroportuário nos meses que antecederam essa tragédia e pelos vários problemas ocorridos nos dias imediatamente posteriores à tragédia? Ele pensava, quando fez o gesto, que o avião é culpado pela falta de aderência na pista? Ele realmente achava que o reverso do avião pode ser acusado pelos inúmeros atrasos e cancelamentos de vôos, pelo desconforto dos passageiros e pelas demonstrações de falta de segurança do sistema aeroportuário nos últimos meses antes da tragédia e nos dias seguintes a ela?
O açodamento do assessor ao fazer o gesto foi decorrente do que aparece como sendo sua postura sistemática de priorizar os interesses políticos de seu grupo. Talvez ele possa, no futuro, ser compreensivo com as manifestações e os eventuais gestos de repúdio, por parte dos familiares e amigos das vítimas e da população em geral, a essa sua postura.
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Historiador e doutor em Filosofia pela FFLCH-USP; Campinas, SP