Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A `murdoquização´ do WSJ


Copyright O Estado de S.Paulo, editorial, 5/8/2007


Há mais tempo do que a memória alcança os jornais não publicavam notícia tão má como a que saiu no mundo inteiro na última quarta-feira [1/8] – sobre a própria imprensa. Trata-se do anúncio de que foi consumada, afinal, a aquisição do controle acionário do grupo americano de mídia Dow Jones, que edita o Wall Street Journal (WSJ), pelo magnata Rupert Murdoch. A notícia é má e agourenta para a imprensa, em crise no mundo inteiro, precisamente por serem quem são o jornal e o personagem que, depois de quatro meses de negociações, acabou vencendo os escrúpulos da família Bancfrot, proprietária da companhia há mais de um século, com a sua oferta de US$ 5 bilhões.


O WSJ, considerado com razão ‘a bíblia dos homens de negócios’, não é apenas o mais completo diário especializado em economia e finanças do mundo, em que pese a indiscutível qualidade de seu principal rival, o britânico Financial Times. Duas outras características notáveis distinguem o Journal, como é comumente chamado no circuito da mídia.


A primeira é o alto padrão de suas reportagens – que estão longe de se restringir ao universo da atividade produtiva e do dinheiro. As suas matérias sobre política nacional e assuntos internacionais competem rotineiramente com as do New York Times – ainda a referência planetária do jornalismo de qualidade –, embora as deste sejam mais numerosas e variadas. A segunda característica é o seu padrão de rigorosa distinção entre informação e juízo de valor. Ela complementa a proverbial barreira – própria das publicações preocupadas com a ética e o respeito ao público – entre ‘Estado’ (os interesses negociais das empresas editoras e os de seus anunciantes) e ‘Igreja’ (os critérios estritamente jornalísticos na abordagem dos fatos).


No Journal, a compartimentalização entre a página editorial e as páginas do noticiário é sagrada. Por exemplo, nenhum grande jornal americano o superou em matéria de apoio irrestrito à aventura iraquiana do governo Bush. Nem por isso, no entanto, o seu corpo de profissionais deixou de noticiar e publicar artigos contundentes e bem fundamentados sobre os resultados catastróficos dessa aventura.


Já a trajetória do empresário australiano Rupert Murdoch, de 76 anos, é a prova viva de que o que ele entende por jornalismo é a antítese do que pratica o WSJ, com uma agravante devastadora. Ele não apenas usa despudoradamente o seu império de mídia como gazua para abrir portas para seus negócios, interferindo com mão pesada nas decisões de seus editores sobre o que e como publicar, como não faz a menor restrição ao jornalismo de esgoto, desde que seja lucrativo.


Muito se fala do seu direitismo. Mas isso não o impediu de aceitar mansamente a censura do governo comunista chinês sobre, entre outras coisas, o noticiário de violações de direitos humanos no país, transmitido pela Sky News Television de sua propriedade. Com isso, vá lá o jogo de palavras, fez negócios da China com o governo comunista de Pequim. O homem, pode-se dizer, faz qualquer negócio, desde que seja bom para as contas da News Corporation, o seu conglomerado multinacional de jornais, revistas, emissoras de televisão, editoras de livros, estúdios cinematográficos, sites na internet, etc.


Como publisher que desdenha do termo integridade, não lhe passará jamais pela cabeça deixar que o relato honesto dos fatos atropele os seus interesses empresariais. Os executivos dos órgãos de mídia que ele adquire aprendem num abrir e fechar de olhos que ou se dobram às ‘verdades’ e gostos do novo patrão ou pedem as contas.


Murdoch tem um faro como que inato para tudo aquilo que a cultura de massa tem de especialmente degradante – e sabe como ninguém faturar alto com as emoções baratas instigadas pelo sensacionalismo, o escândalo, a vulgaridade, a pornografia. Na mídia impressa, o seu carro-chefe é o abominável tablóide londrino The Sun. Com 3 milhões de exemplares, é o mais lido diário de língua inglesa do mundo.


Murdoch é sinônimo de ‘tabloidização’, o que designa menos o formato de um jornal do que a sua indigência ética e jornalística. E ‘murdoquização’ é o desfiguramento que ele imprime aos jornais que captura, como foi o caso do outrora venerável Times de Londres. Será de espantar se outra for a sorte do WSJ.


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Isenção para discutir a própria venda


Copyright O Globo, 5/8/2007


Uma empresa que tem visto seus lucros recuarem ano após ano é comprada por um conglomerado presente em todo o mundo. Seria mais uma fusão para o noticiário financeiro, não fosse a empresa a Dow Jones, controladora do Wall Street Journal, e o comprador a News Corp., do magnata da mídia Rupert Murdoch. Isso bastou para que o assunto alcançasse as primeiras páginas dos jornais americanos – inclusive do próprio Journal.


O diário de negócios, fundado em 1889, tratou a discussão sobre a venda de maneira transparente, abrindo espaço tanto para Murdoch – uma extensa entrevista em 6 de junho, pouco mais de um mês após a oferta inicial – como para a família Bancroft, detentora da maior parte do capital votante da Dow Jones.


Dines elogia postura da mídia americana


Na entrevista com Murdoch, os repórteres do Journal Steve Stecklow e Martin Peers foram diretamente ao assunto: perguntaram se ele faria mudanças no diário caso a venda fosse aprovada. Murdoch disse que não. Sobre o comitê para assegurar a independência editorial do Journal, eles lembraram que esse mecanismo havia sido adotado quando da compra do britânico The Times, em 1981.


Na ocasião, Murdoch prometera não se envolver na demissão ou na contratação do editor-chefe. Só que, no ano seguinte, decidiu demitir o então editor, Harold Evans. Ao ser lembrado do compromisso, sua reação foi perguntar: ‘Vocês não levam tudo isso a sério, levam?’. Na entrevista, Murdoch disse não se lembrar do episódio.


No Times, vieram à tona dois casos de repórteres que se queixaram de que suas histórias estavam sendo cortadas após a compra pela News Corp.


Um foi Jonathan Mirsky, correspondente em Hong Kong, outro foi Robert Fisk – que participou da última Flip, em Paraty, com o livro A grande guerra pela civilização. Ele deixou o jornal em 1988, queixando-se de censura em uma reportagem.


O jornalista Alberto Dines, do Observatório da Imprensa, também ressaltou a forma como a mídia americana em geral tratou o assunto. Jornais como The New York Times, Washington Post e Los Angeles Times abriram espaço a editores e repórteres do Journal, que manifestaram uma mistura de medo e ódio com a chegada de Murdoch ao diário, considerado um tesouro nacional da livre imprensa americana.


– Ao contrário do que acontece no Brasil, onde a imprensa não se permite discutir a concorrência, nos Estados Unidos os jornalistas abrem a boca, os donos de jornais criticam. É como se eles quisessem dizer: ‘Queremos um concorrente decente!’ – afirma Dines.


Em sua opinião, o que se passa dentro de uma empresa jornalística é de interesse da sociedade. Portanto, reforça, é preciso brigar pela integridade da imprensa brasileira, rompendo o pacto de silêncio que existe hoje em torno da mídia em geral. Dines destaca que, enquanto os jornais americanos se manifestam ostensivamente sobre os negócios do concorrente, no Brasil a realidade é outra, e a sociedade não sabe o que se passa intramuros.


‘Primeiro jornalistas, depois empresários’


‘O New York Times tem obrigação de discutir isso publicamente porque Murdoch, além de tubarão, é um dos maiores reacionários no mundo da mídia. Não respeita os princípios de isenção, não tem o menor apreço pelo equilíbrio dos veículos que coleciona e, além disso, tem o maior desprezo pelo que pensam os seus empregados. Mesmo os do primeiro escalão’, escreveu Dines em recente artigo no Observatório da Imprensa [ver ‘O fator Murdoch, lá e cá’ http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=440JDB001].


No caso da família Bancroft, o Journal mostrou as opiniões dissonantes. Christopher Bancroft era contrário e tentou atrair outros investidores para uma oferta rival.


Já seu primo Crawford Hill escreveu uma carta de quatro mil palavras – que o site WSJ.com publicou na íntegra – recomendando aceitar a oferta de Murdoch.


Hill afirmou que eles ‘estavam pagando o preço de nossa passividade nos últimos 25 anos’.


Essa divisão na família foi ressaltada pelo colunista do New York Times Joe Nocera. No artigo ‘A bizarra saga do Wall Street Journal de Murdoch’, ele fez um apanhado das brigas internas na família Bancroft e da surpresa de Murdoch ao lidar com eles: ‘Eu não sabia que eles eram tão desorganizados’, afirmou o magnata. ‘Pensava que teríamos uma série racional de reuniões. Eles não quiseram’.


Nocera conversou com Elisabeth Chelberg, sobrinha de Christopher Bancroft. Ela disse ter aprovado a venda por não achar que a Dow Jones seria beneficiada se continuasse sob controle familiar. ‘Quero dizer, dessa família’, ressaltou.


Murdoch disse a Nocera que o caminho para a liberdade é a viabilidade, ou seja: um jornal tem de ser lucrativo. ‘O que ele não disse é que, se os Bancrofts tivessem rejeitado sua oferta, o inexorável declínio da Dow Jones continuaria’, afirmou Nocera.


Para Dines, é natural que, no mundo capitalista, empresas tentem se reorganizar e se adaptar a novas realidades econômicas, principalmente na área de comunicação, em que novas tecnologias surgem a cada instante. Dentro desse contexto, a venda do Journal é um processo empresarial como outro qualquer, mas, segundo ele, é preciso uma carga de gosto e respeito pelo negócio:


– Jornais não fabricam salsicha. É preciso gostar do cheiro de tinta.


Isso foi ressaltado pelo próprio Journal ao contar a saga da Dow Jones, logo após a venda. ‘Charles Dow e Edward Jones (os fundadores da empresa) eram primeiro jornalistas, depois empresários’.