Volto ao assunto do artigo ‘Um pedido de desculpas?‘, publicado neste Observatório, para responder a uma objeção feita às ponderações do texto. O artigo talvez não tenha conseguido ser claro ou talvez alguns leitores tenham pulado partes do artigo ou não o tenham lido de maneira detida, mas sua objeção está previamente respondida ao longo do texto. Eles alegaram o direito de privacidade do assessor da Presidência Marco Aurélio Garcia ao fazer o gesto vulgar, ignorando que, enquanto eles trataram, em seus comentários, do gesto em um aspecto isolado, o artigo tratara da nota assinada pelo assessor. As explicações dadas na nota deixam perceber mais do que um aspecto considerado isoladamente, permitindo fazer algumas ponderações relevantes.
A nota efetivamente menciona a questão da privacidade para justificar o gesto – a idéia é que o gesto não seria justificável se feito em público, mas tendo sido feito em privado se justifica. Todos os correligionários que manifestaram apoio ao assessor insistiram basicamente nesse ponto. Acharam os autores daqueles comentários que esse ponto deveria suspender tudo o que o artigo discute além desse ponto.
No entanto, a própria nota assinada pelo assessor vai além da justificativa quanto ao âmbito privado, ultrapassando esse ponto ao explicar o sentido do gesto. O segundo aspecto formulado na nota assinada pelo assessor é o que declara que o gesto expressou repúdio aos adversários. Ora, esse segundo aspecto não se soma simplesmente àquele primeiro aspecto (referente à privacidade), mas o altera. É preciso considerar o efeito desse segundo aspecto para o conjunto das explicações dadas.
A correlação no sentido do gesto
Ao dar o segundo aspecto como explicação, a nota defende o gesto tal como feito, reiterando e reforçando o repúdio de caráter partidário que o gesto expressou. Então, é preciso considerar, o sentido de repúdio do gesto é correlato da falta de consideração quanto às vítimas da tragédia, aos familiares e conhecidos das vítimas e aos cidadãos, de modo geral, que estão mais preocupados com a situação do conjunto de cidadãos do que com qualquer questão partidária. Quando, na nota, o assessor defendeu o gesto devido ao seu sentido de repúdio aos seus adversários políticos, concomitantemente mostrou a prioridade dada aos interesses partidários sobre os sentimentos de pesar e perplexidade dos cidadãos preocupados com a crise aérea. Nesse sentido, eu escrevi no artigo que o gesto, ao ser de repúdio, foi também de tripúdio e que a nota, ao repetir o repúdio que era do gesto, repetiu o tripúdio.
Reiterar e reforçar o repúdio expressado vai além de justificar o âmbito privado do gesto. Assim, ao reiterar e reforçar o gesto, a nota repete o gesto – desta vez, em público. Cabe ressaltar aquilo que aqueles leitores de meu artigo omitiram em seus comentários: esse segundo aspecto suscitado pela nota não é meramente uma desculpa que a nota apresenta como defesa: de fato, esse segundo aspecto – o repúdio – é inerente ao gesto. ‘O gesto foi e é de repúdio’, esclarece o assessor na nota sobre o sentido do gesto. O gesto foi (quando feito) e é (quando defendido pela nota) exclusivamente uma manifestação da postura partidária do assessor e foi (quando feito) e é (quando defendido pela nota), concomitantemente, de desconsideração com as mortes e com os sentimentos de pesar e de angústia da população.
Todos sabem que a atitude do assessor marcou (quando o gesto foi feito) e marca (quando o repúdio é em seguida defendido na nota e novamente em cada uma das manifestações posteriores feitas em apoio ao assessor) a prioridade dada pelo assessor aos interesses partidários sobrepostos às mortes e aos sentimentos de dor e de perplexidade. Assim, o repúdio aos adversários políticos pode e deve ser considerado como tripúdio às vítimas fatais da tragédia e aos familiares e amigos das vítimas em particular e à população em geral quando muitos cidadãos estão em luto. O sentido de desconsideração e de tripúdio é intrínseco ao próprio gesto.
Esse é o ponto principal sobre o gesto: ao sentido de repúdio é correlata a desconsideração à população em geral, mais especificamente às vítimas imediatas e indiretas. Este é o ponto central na polêmica: o assessor primeiramente, na nota, e todos os que o apoiaram em seguida tentam obliterar o desrespeito aos sentimentos de pesar e preocupação da população contido no gesto. Ao insistirem somente na questão do âmbito privado do gesto, os comentários feitos não consideraram as conseqüências das explicações dadas na nota assinada pelo assessor.
Exemplos nas formas abertas de sociedade
Feitas essas ponderações sobre os dois sentidos, correlatos (de repúdio e também de tripúdio às vítimas da situação), contidos no gesto, cabe voltar à alegação – feita pela nota do assessor e repetida pelos correligionários do assessor que o apoiaram e presente novamente nos comentários ao artigo anterior – sobre a privacidade.
Anos atrás, quando foi flagrado em estúdio de televisão falando uma indiscrição (algo parecido com ‘o que é bom o governo apresenta ao público; o que é ruim o governo omite’), o então ministro Rubem Ricúpero, é desnecessário observar, também tinha expectativa de estar falando em âmbito privado (ele pensava que a câmara estava desligada, de maneira que não esperava que a cena vazasse, por satélite, para as antenas parabólicas). Por menos do que ser flagrado cometendo, em recinto do principal palácio governamental, obscenidade cujo sentido denota desconsideração com os sentimentos de pesar e de perplexidade de parcela considerável da população, Ricúpero apresentou rapida e dignamente tanto seu pedido de desculpas quanto sua demissão.
O assessor, agora, após a ocorrência marcada pelo seu gesto vulgar e desrespeitoso, sequer pedido de desculpas apresentou em nota, reiterando a falta de compostura e reforçando sua desconsideração. Apesar disso, recebeu apoio de seus correligionários (o que diz menos sobre seu gesto do que sobre os que o apoiaram).
Na Inglaterra, importante político encerrou abruptamente sua ascendente carreira pública quando se tornou conhecido seu relacionamento extraconjugal com uma mulher remunerada para tanto – e o comportamento do político nem foi flagrado. Com quem a figura pública tem relacionamento sexual entre as paredes de um quarto pertence, é desnecessário lembrar, ao âmbito privado – mas isso não impediu que a carreira do político inglês terminasse imediatamente. Diferentemente, o gesto vulgar do assessor é de interesse público, pois denotou falta de consideração com os sentimentos da população.
O pedido de demissão do ministro no Brasil e a desistência da carreira pública por parte do político inglês são exemplos (evidentemente, outros poderiam ser lembrados) que denotam como é praxe se proceder nas formas abertas de sociedade.
A falta de consideração contida no gesto do assessor e a reação de perplexidade e indignação que essa desconsideração provocou é uma questão política de uma forma aberta de sociedade, não é uma questão jurídica nem policial, menos ainda uma questão política de uma forma fechada de sociedade. Os correligionários que apoiaram o assessor querem que a população em geral e os familiares e os conhecidos das vítimas esqueçam o gesto porque ele foi flagrado quando o assessor teria expectativa de privacidade em recinto do principal Palácio governamental? A população deveria, assim, fingir que o gesto não existiu? Querem recusar às pessoas que se sentiram ofendidas com o gesto o direito de assim se sentirem apenas porque haveria expectativa de privacidade?
As responsabilidades
O que é preciso acrescentar, então, é que, de fato não houve nenhuma invasão de privacidade na filmagem da cena. Quem filmou a cena não cometeu nenhuma invasão nem ‘grampeou’ o recinto: não houve nenhum subterfúgio ao se fazer a filmagem. O assessor e o assessor do assessor foram descuidados. E não assumem a responsabilidade nem de seu descuido nem do gesto, mas, pelo contrário, querem responsabilizar outrem quando alegam privacidade. Similarmente, ao explicar o sentido do gesto, a nota do assessor responsabiliza aqueles que foram repudiados pelo gesto: nesse aspecto da nota, o assessor não assume a responsabilidade da desconsideração contida em seu gesto.
Em cada passo das explicações dadas, evita-se sempre assumir sua responsabilidade. Assim, enquanto não houve subterfúgio na filmagem do gesto vulgar, houve subterfúgio ao evadir-se da responsabilidade de seu descuido e do sentido pleno (incluindo a desconsideração) de seu gesto. Há subterfúgio quando se insiste apenas na pretensa privacidade, recusando-se a admitir a falta de respeito contida no gesto.
O assessor foi flagrado numa das sedes do republicanismo num gesto que, para além de sua vulgaridade patente, marca uma atitude de desrespeito ao republicanismo posto que de desconsideração com a população. Ainda assim, não bastasse o gesto filmado, o desrespeito foi repetido na nota. E, além da repetição do desrespeito, novo tripúdio é feito: a nota simula um pedido de desculpas que não existe efetivamente.
Falei dos correligionários do assessor que expressaram apoio ao gesto, porém, é preciso ressaltar como a deputada gaúcha Maria do Rosário, co-partidária do assessor, não aprovou o seu gesto: ‘Explicações foram dadas’, disse ela, ‘mas o gesto foi lamentável’. Cabe acrescentar, a análise ponderada das explicações dadas mostram que todo o conjunto – o gesto, a justificativa, os sentidos do gesto, os apoios enunciados – é amplamente deplorável. Cada elemento, cada aspecto suscitado na defesa, só intensifica a falta de consideração e o tripúdio com o público.
A diretriz de privacidade e a liberdade individual
Enfim, a objeção quanto à privacidade é irrelevante. Tanto porque há o aspecto de interesse público na desconsideração contida no gesto e que é repetida na nota pública e novamente em cada apoio (e isso já basta para evidenciar definitivamente a irrelevância da objeção) quanto porque a situação ocorrida não é marcada por nenhuma invasão de privacidade (não há qualquer forma de violência, de subterfúgio ou de violência na filmagem).
A diretriz sobre a privacidade é tão importante numa forma aberta de sociedade, na medida em que remete diretamente à fundamental questão da liberdade individual, que é ofensivo que seja empregada de maneira tão inconsistente apenas porque é taticamente conveniente no intuito esquálido de evitar reconhecer a responsabilidade daquilo que é efetivamente relevante na cena: a desconsideração de pessoa pública, em cargo público, com o público. Um uso tão apelativo é uma depreciação sórdida da diretriz de privacidade e dos direitos referentes à liberdade individual.
Definitivamente, não se trata, neste caso, de privacidade: o que está em questão é a noção de civilidade das formas abertas de sociedade.
A alegação de privacidade nesse caso é uma peneira em que cada furo é um pouquinho maior do que as mãos que fizeram o gesto e que redigiram a nota. O que ela procura tapar é a desconsideração no que tange às mortes, à dor e às apreensões dos cidadãos. Cabe observar: ninguém – nem o assessor, nem o assessor do assessor, nem o filho do assessor (que prontamente se colocou a escrever de Londres para defender o pai) nem nenhum dos correligionários que expressaram apoio ao assessor sem sequer lamentarem o gesto – nega a desconsideração que há no gesto. Rápidos e ligeiros em invocarem o preceito da privacidade e atrevidos em prontamente atacarem os que apontaram a índole desrespeitosa do gesto, não foram afoitos a ponto de negar o óbvio. Procuraram ser hábeis em escamotear o tripúdio aos mortos e ofendidos, mas não ousaram denegá-lo.
Então, os autores dos comentários feitos trataram do gesto insistindo unicamente num traço isolado, ignorando que meu artigo tratava da nota para ponderar como outros aspectos não eram anulados por esse traço inicial. Entretanto, eles não podem dizer que estavam desavisados: desde o próprio título, aquele artigo apontava inequivocamente que tratava da nota, não do gesto. Afinal, se a própria nota do assessor teve a necessidade de apontar pelo menos dois aspectos ao explicar seu gesto, porque ao comentar meu artigo os comentadores trataram apenas da justificativa e obliteraram a defesa apresentada? Teimosamente, eles ignoraram o conjunto das explicações dadas pelo assessor na nota e, mais ainda, ignoraram os argumentos ponderados de meu artigo anterior que mostravam que o sentido correlato contido no gesto arruinava definitivamente a justificativa dada. A esta altura, devo garantir aos autores daqueles comentários que, pelo menos, não serei cínico de cometer a descortesia de dizer que lhes ‘apresento minhas desculpas’.
O distanciamento frio
E mais não pretendo escrever a propósito daqueles comentários. Não pretendia tornar a este tema, mas sua provocação me obrigou a fazê-lo, de modo que aproveito agora para desdobrar rapidamente um conjunto de considerações que o artigo anterior não pôde desenvolver.
As inclinações e as posições trotskistas assumidas pelo assessor são conhecidas de longa data. Dois caracteres constitutivos da doutrina trotskista – mas que não são singulares a ela, já cabe ressaltar – são particularmente importantes aqui porque transparecem no conjunto formado pelo gesto, nota e declarações feitas em apoio ao assessor. Um dogma que pauta o trotskismo refere-se à consideração estrita em termos da guerra política: neste sentido, os trotskistas priorizam sobremaneira as conquistas de poder e a obtenção de espaços políticos. Outro traço é a ausência de valorização da vida.
Neste sentido, cabe lembrar como, anos atrás, o assessor se esquivou de responder uma pergunta sobre a então recente execução de jornalistas pelo regime cubano, mostrando a ausência de valorização da vida. Em contrapartida, importavam mais valorizar a aproximação e os interesses político-doutrinários.
No gesto do assessor e nas explicações que a nota dá para defender o gesto aparecem correlacionados esses dois caracteres que pautam o trotskismo. É fácil perceber, assim, que a atitude do assessor – de priorizar o repúdio aos adversários em sobreposição às mortes, ao pesar de parentes e amigos das vítimas e à consternação e perplexidade dos cidadãos indignados e apreensivos – não se deve à sua índole individual (a propósito: em obediência à sua doutrina, o assessor não deve dar a mínima para a noção de indivíduo, mas a despreza sumariamente), porém é expressão da índole dogmática e inflexível de um doutrinado. Os que apoiaram o assessor, obliterando sua desconsideração com as vítimas imediatas e indiretas e ressaltando sua preocupação tática com as conquistas político-partidárias, mostraram semelhante índole dogmática.
O gesto e a nota não devem surpreender. Se não houve manifestação de apreço pela vida quando da execução dos jornalistas, por quê se deveria esperar efetiva manifestação de apreço pela vida agora, por ocasião do desastre com o Airbus, quando o assessor está muito mais preocupado e tenso com a disputa político-partidária que o envolve muito mais direta e fortemente? Esse distanciamento frio mostrado em relação às mortes e aos sentimentos de pesar e de indignação dos cidadãos e, correlatamente, a atitude quente ao comemorar eventual conquista de espaço político são plenamente compatíveis com a doutrina seguida: àqueles que não entenderam porque ele tem esse distanciamento, a nota apresentou suas desculpas – bem entendido, suas explicações – frias.
É provável que, nem se multiplicando por mil o número de vítimas da tragédia, um doutrinado fundamentalista se constrangeria por priorizar os interesses partidários e a conquista de poder sem lamentar as mortes, que para ele formam apenas uma estatística.
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Historiador e doutor em Filosofia pela FFLCH-USP; Campinas, SP