Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O cinismo midiático-bancocrático-mecanicista

O desastre aéreo que trouxe no seu rastro o horror de 199 mortes e a desmoralização geral da incompetente gerência governamental mostrou também a verdadeira cara da grande mídia. Durante todo o tempo, ela está cuidando muito bem de cobrir a aparência dos fatos. Mas, a essência deles continua escondida.

Depois de muito assunto vindo à tona, realmente, ficou comprovado o crime da incompetência do governo – este e o anterior – com o dinheiro do contribuinte. Tudo está de cabeça para baixo e pernas para o ar. A irracionalidade tomou conta da administração pública. Os relatórios do TCU são fartos, como mostraram as reportagens de José Casado, em O Globo, no domingo, retrasado e passado, e a do repórter Lúcio Vaz, do Correio Braziliense, também no último domingo. O desperdício é a norma. A corrupção está sempre presente. Virou praga. Os relatos destacam os superfaturamentos de preços, a contabilidade armada. Um caos.

Perfeita, a grande mídia nesse lance muito importante: revelar os podres do Estado. Mas, por que o Estado apodreceu? E a quem interessa seu apodrecimento?

A essência da realidade

A resposta a essa pergunta ajudaria bastante a esclarecer os fatos, que, sob esse aspecto, continuam debaixo do tapete. Depois de pouco discutir as causas e muito as conseqüências dos desajustes da máquina estatal, ficou evidenciado o óbvio: faltou dinheiro para obras importantes nos diversos setores – não apenas o aeroportuário, mas, igualmente, escassearam verbas para educação, saúde, segurança, coisas fundamentais, para dar dignidade à cidadania. Mas, por que faltou?

Se faltou dinheiro para esses setores relacionados à existência humana, certamente é porque não foram considerados prioritários, na avaliação do governo neoliberal, teleguiado, dos banqueiros. O que foi prioridade, então? Claro, os interesses dos banqueiros.

A prova está nos sistemáticos contingenciamentos das verbas públicas para garantir o pagamento dos juros da dívida pública interna, em primeiríssimo lugar. O resto vem depois. Essa essência da realidade presente na vida nacional não está sendo discutida, quando ela quica na área da grande mídia há anos sem que esta a veja ou faça de conta que não existe, para não mexer na sua falsa consciência.

A obra de Jobim

A prioridade número um do governo está em cumprir o artigo 166, parágrafo terceiro, item II, letra b, da Constituição, cuja autoria intelectual, segundo estudo dos professores Pedro Resende e Adriano Benayon, da Universidade de Brasília, sobre a Constituinte de 1988, foi do agora ministro da Defesa, Nelson Jobim.

Tal artigo simplesmente torna pétrea a garantia de pagamento de juros aos banqueiros, enquanto outras cláusulas pétreas, relacionadas às garantias sociais, correm perigo de desaparecer sob pressão dos próprios credores, que não abrem mão do seu privilégio constitucional.

Talvez isso explique porque Jobim é tão influente desde 1988, navegando entre tucanos, peemedebistas, petistas etc. e tal, sempre pontificando, como prêmio, a sua inteligência e esperteza extraordinárias, tipo Rui Barbosa, no comando do Encilhamento, no governo Deodoro da Fonseca, como mostra o excelente livro de Luís Nassif, Cabeça de planilha. O grande Rui, maior jurista do país no seu tempo, era fiel servidor dos credores nacionais e internacionais, ficando riquíssimo.

O aspecto pétreo da garantia absoluta de que o interesse dos bancos é a prioridade maior do governo – algo que a mídia esconde ao máximo para não ter que contrariar seus próprios interesses – se expressa nos elevados contingenciamentos orçamentários, como forma de fazer economia forçada, capaz de garantir a lucratividade bancária via pagamento de juro alto. Criou-se nome técnico para essa forçada economia, ‘superávit primário’, inventado pelo FMI, para consumo interno, depois da crise monetária dos anos de 1980, que originou o Consenso de Washington, ao qual, por pressão dos credores, a Nova República, desde o seu nascimento, se rendeu. O superávit primário é tremenda jabuticaba tupiniquim. Só dá aqui.

Tapando sol com peneira

Essa prioridade, que é a essência do problema que precisa ser colocado claramente à discussão nacional, é coberta pela grande mídia com quatorze dedos. Tenta, insistentemente, tapar o sol com a peneira, despistando em editoriais pomposos, que a prioridade que defende não é o pagamento dos juros que Jobim garantiu na Constituição e que, certamente por isso, está de volta ao poder com toda a força para despontar e despertar antagonismos naturais no processo político.

Por que não se dá tratamento jornalístico adequado ao tema? É justo que os desajustes financeiros do Estado excessivamente endividado sejam corrigidos, em forma de ajustes fiscais e monetários ortodoxos, somente em cima do orçamento não-financeiro, enquanto o orçamento financeiro é preservado, graças aos contingenciamentos sistemáticos, para que sobre dinheiro mais que suficiente para os credores, enquanto as descartadas prioridades humanas passam a ser consideradas prioridades de segunda, terceira ou quarta categoria?

Dois pesos, duas medidas. O orçamento financeiro é uma coisa, o orçamento não-financeiro, outra. Corpos separados de uma só realidade, vistos pelos neoliberais como fatores que nada têm a ver um com o outro. Entra aqui a visão da moeda pelos neoliberais, que a enxergam como algo neutro que nada tem a ver com o movimento dos bens e dos serviços que dinamizam a vida da sociedade. Se não tem nada a ver, se a oferta da moeda é neutra, não interfere na formação de preços, como quer o neoliberalismo imperante em Eldorado – como se o país ainda estivesse no tempo do padrão-ouro, no século 19 –, nada melhor para os banqueiros.

O orçamento monetário vira um oráculo imexível, enquanto o orçamento fiscal se realiza apenas sobre as contas não-financeiras, isto é, em cima do lombo da sociedade, chamada ao crescente sacrifício. A grande mídia sempre sancionou, e continua sancionando, esse ponto de vista da banca, pregando, insistente e reiteradamente, a manutenção dos elevados superávits primários, a fim de atender aos interesses do sistema financeiro, garantidos constitucionalmente, mesmo que o preço a pagar seja a morte do contribuinte, como demonstra o pavoroso desastre de Congonhas.

Seccionada a realidade orçamentária, deixando o seu aspecto nominal de lado, ou seja, a sua totalidade, compreendida no conjunto dos orçamentos financeiro e não-financeiro, pois ambos coabitam em um mesmo espaço, interagindo entre si, dialeticamente, adota-se o aspecto falsamente real, mecanicista. Perde-se completamente a visão de conjunto, o entendimento de que por trás da moeda, mero fetiche, estão as relações sociais da produção e as forças produtivas, em movimento interativo em torno da distribuição da riqueza nacional.

Passa a imperar a visão parcial, positivista, cartesiana, em prejuízo da visão de totalidade do processo em movimento dialético. A mídia, em seu conformismo, melhor, pro-ativismo favorável ao pleito dos credores, traduzidos em crescentes superávits primários por meio dos contingenciamentos que promovem a escassez de recursos para a saúde, educação, segurança, programas sociais, infra-estrtura urbana e rural, reforma agrária etc., contribuiu para o caos aéreo, quando se verifica que tal estratégia neoliberal-suicida impediu os investimentos que gerariam oferta satisfatória de bens públicos à sociedade.

Ser humano em segundo plano

Qual a prioridade absoluta: o ser humano ou a causa pétrea constitucional garantida aos banqueiros pelo trabalho constituinte de Jobim, segundo os dois professores da UnB?

A grande mídia fez a opção pela segunda, ao ter apoiado sistematicamente a formação de crescentes superávits, a qualquer custo, sob o argumento de que eles reduzem a relação dívida/PIB. Os números da dívida pública interna – dívida externa internalizada – mostram, no entanto, que os gastos com ela continuam em expansão forte, mais além do suficiente, para os bancos – graças aos juros mais altos do mundo – e mais aquém de insuficiente para as forças da sociedade, que paga a conta mediante oferta insatisfatória de segurança, de saúde, de educação, de lazer, de cidadania etc.

Tudo que está na órbita humana torna-se subordinado à órbita financeira do Estado, no qual a banca realiza seus lucros crescentes ao longo de toda a Nova República, república bancocrática, a qual a mídia aplaude.

Se, como a política neoliberal que ela apóia, considera prioridade a realização de superávits na escala atual em que cria os problemas sociais e criminosos traduzidos em mortes em penca, é porque considera os investimentos em saúde, educação, segurança, trabalho, programas sociais etc. prioridade dois, ou três, ou quatro, subordinadas à prioridade número um para os credores. Por isso, prega abertamente ajustes fiscais em cima, apenas, do orçamento não-financeiro, jamais sobre o financeiro, que é maior do que o não-financeiro – quanto mais a dívida cresce no compasso do juro escorchante. O imexível orçamento financeiro está guardado pela ideologia construída à margem da realidade, pelos economistas que trabalham para os bancos, enquanto o orçamento não-financeiro fica sujeito à total volatilidade do mercado.

A mídia, na prática, torna-se propagandista dos argumentos que garantem a lucratividade bancária ascendente, há duas décadas consecutivas, de governos neo-republicanos. Ao mesmo tempo, sangra a dignidade da vida nacional, refletida em insuficiente oferta de serviços públicos de péssima qualidade, apesar de a carga tributária ser, com os juros, super-elevada. Não dá retorno satisfatório em forma de oferta de cidadania digna a prioridade conferida ao estrito cumprimento do orçamento financeiro, enquanto o orçamento não-financeiro encontra-se bloqueado pelos contingenciamentos que se transformam em lucratividade crescente da banca.

Destruição do Estado

Sobretudo, a grande mídia não cobre a ideologia que está por trás do interesse bancocrático, porque mantê-la oculta é de vital importância para sua sobrevivência. Trata-se de produzir o mecanicismo, esquartejar a realidade, como açougueiro. Nesse esquartejamento, foram paridos os dois conceitos de orçamento – o financeiro e o não-financeiro. Este cuida da vida dura dos brasileiros; aquele, da vida boa dos banqueiros.

Evidentemente, aqui está o x da questão. O Estado não pode ser gerido competentemente se não tem dinheiro para cobrir suas despesas de forma a dar dignidade à população que paga os impostos, taxas e contribuições a perder de vista. Se não tem gestão, é melhor privatizar. Ou seja, constrói-se cientificamente a destruição do Estado por meio do contingenciamento, apoiado pela mídia, para que não sejam feitas as obras humanas, mas as não-obras públicas – o lucro bancário realizado em cima da dívida pública interna – dívida externa internalizada.

Pura especulação keynesiana sobre a moeda sem geração de bens e serviços, mas apenas lucro monetário. Satisfação plena da realidade fictícia produzida pelo capital na especulação. É preciso sangrar ainda mais o orçamento não-financeiro, até zerar a capacidade de investimento do governo para cobrir as demandas da realidade não-financeira. Nesse ponto, alcança o neoliberalismo seu objetivo, que é a desmoralização completa do Estado e que faz emergir, vitoriosa, a tese do mercado livre, da privatização absoluta.

A emergência privatizante se justificaria pela incapacidade de gestão ou pela falta de dinheiro, visto que os contingenciamentos, não discutidos em sua essência pelo jornalismo econômico, impedem que o ser humano no Brasil se realize como ser humano, pagando o preço da desumanidade em forma de carência insatisfatória de saúde, educação, segurança etc., para engordar o lucro bancário, garantido pelo jurista Jobim?

Não é à toa que em Minas Gerais jurista é considerado aquele que vive de juros.

A Nova República tem sido essencialmente composta de juristas, agora, no comando da Defesa nacional. Que faria a empresa que mantém seu negócio em baixa lucratividade, sem poder investir, enquanto o concorrente investe e põe na praça preço do produto mais barato e de melhor qualidade? A bancocracia nacional, engordada nos contingenciamentos sistemáticos impostos pelos governos neo-republicanos, cuja governabilidade é assegurada, no Parlamento, mediante medidas provisórias, que impedem a discussão democrática da distinção entre orçamento não-financeiro e orçamento financeiro, tem sido o poder real. Ela estabelece a prioriade aos juros, ou seja, a prioridade dela, e condena à morte, se preciso, os contribuintes em forma de tragédias, como a que levou à morte as 199 vítimas do vôo 3054 do Airbus A354, PA-SP, 17.07.2007, 18,50 h, em Congonhas. Vítimas do contingenciamento imposto pelos credores.

Os banqueiros financiaram obras na infra-estrutura superficial do aeroporto de Congonhas, mas cuidaram de impor ao governo contingenciamento dos recursos que seriam destinados à segurança do ser humano nos aeroportos. O não-prioritário nas considerações da contabilidade financeira é a segurança humana. Ao negar discutir a questão central, a mídia fica na aparência, descuidando da essência. A grande mídia tem prestado inestimável serviço à acumulação financeira quando cuida de esconder, e não mostrar, o fato como ele é em sua interatividade dialética com a realidade, essencialmente, dual em processo de negação.

Valor absoluto e valor relativo

O valor absoluto dado pela Constituição ao pagamento dos juros aos banqueiros em detrimento dos interesses da sociedade em forma de competentes serviços públicos e sociais, em quantidade suficientemente satisfatória, é fruto da tendência neoliberal de homogeneizar uma realidade que é fundamentalmente heterogênea, visto que é composta de classes sociais antagônicas, em um contexto social, econômico e político, como ocorre no Brasil, onde vigora péssima distribuição da renda nacional.

Do total da renda nacional, segundo o IBGE, 30% correspondem aos rendimentos do trabalho, enquanto 70% significam os rendimentos do capital. Logicamente, o capital não consegue mais se remunerar apenas no trabalho. Tem que se descolar da produção, para se realizar, potencialmente, na especulação.

É o paraíso da bancocracia. É nele que a grande mídia embarcou. Perdeu a capacidade de exercer o que ela mesma prega, ou seja, a objetividade. Resta-lhe ser parcial. Fora disso, ela se auto-condena à falta de oxigênio financeiro, caso fuja dos conceitos ideológicos mecanicistas anti-críticos que precisa, continuamente, consumir para ir levando a vida capitalista financeira a seu favor.

Não é por acaso que os ex-ministros da Nova República, que serviram, fielmente, aos credores, estão hoje pontificando nos conselhos de administração dos bancos e na grande mídia, com seus comentários que comandam o pensamento midiático-bancocrático-mecanicista que faz a cabeça nacional. Resta esperar o avanço democrático, pois a situação atual que favorece os banqueiros foi construída em um momento, logo depois da ditadura militar em que a consciência democrática não se encontrava suficientemente desenvolvida. Por isso, as causas da crise monetária dos anos de 1980, provocada pelo aumento dos juros norte-americanos, não foram tratadas, adequadamente. A sociedade engoliu o mecanicismo ditado pelo Consenso de Washington, plenamente avalizados pelos editoriais da grande mídia. Continuará engolindo se nova crise monetária emergir, pelo que sinaliza a derrocada do dólar, jogando o cenário internacional em completa polvorosa, num novo contexto democrático?

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Jornalista, Brasília, DF