Lá no estertores da ditadura, quando se começou a falar em final da censura, uma senhora idosa que eu conhecia ficou apavorada:
– Agora vão poder mostrar gente nua na televisão!
Expliquei-lhe que não era bem assim, que o fim da censura significava a gente poder saber as verdades políticas, sociais, econômicas e outras sobre o que se passava no nosso país e no mundo, e ela ficou me olhando meio desconfiada, como se não acreditasse muito naquilo. A verdade é que até agora, tantos anos depois, não aumentou o número de gente nua na televisão, e muitas notícias e novidades que antes não chegavam agora chegam até nós, embora a gente nunca saiba bem os cortes que tais notícias tiveram.
Eu tive o meu momento de glória junto a essa senhora quando aconteceu o massacre de Eldorado de Carajás, e a gente viu as imagens muito bem, embora só recentemente tenha sabido que aquela multidão que corria e era alvejada pela Polícia Militar não era bem como a gente via: o que as câmaras não mostravam é que aquela multidão que corria estava correndo do Exército, que por detrás dela a ameaçava, e sei lá se também não estava a disparar alguma coisa. O povo que lutava pela terra não tinha alternativa: de um lado o Exercito; de outro, a Polícia Militar. Era o velho ditado de ‘Ou mato ou morro’. No desespero do medo, o povo correu para as balas da Polícia Militar e morreu às dezenas.
Então eu sentei com aquela senhora, e nós choramos juntas, e ela entendeu que aquilo que lhe tinham botado na cabeça, de gente nua, era apenas uma arma dos conservadores para enganar gente humilde, como ela.
A grande arma
Daí muita água passou debaixo da ponte, tivemos Constituição nova, elegemos presidente, depusemos presidente a gosto do que o capital queria, fomos manipulados como continuamos a ser. O sistema de representação legitimado por uma democracia conservadora e falsificada usa e abusa daquilo que chamamos de censura para filtrar tudo o que chega até nós, e eu gostaria de fazer um pequeno passeio pela história: o que é o nosso Ideal de Democracia? É aquela que nos contaram, nascida na Grécia, onde os homens livres se reuniam num praça chamada ágora e decidiam por votos diretos todos os assuntos.
Claro que lá não votavam as mulheres, nem os escravos, nem os estrangeiros – na verdade, eram apenas uns 10% deles quem decidiam tudo, e a coisa não melhorou muito desde então. Venderam-nos esta imagem de democracia que temos, e se pensarmos no passado do Brasil, não muito longe, mas lá no começo da República, veremos que a coisa era a mesma: para votar, só os homens ricos – pobres e mulheres não tinham a menor chance. E para não deixar vocês cansados, vamos logo aos tempos de agora, quando nos ludibriam tanto que até eu, com um pouco mais de leitura e de informação, fui altamente enganada na última eleição, e ajudei a eleger um presidente’popular’ que não titubeou em fazer as reformas na Previdência e outras que nos deixam a nós, trabalhadores, com as calças na mão, impotentes para fazer qualquer coisa em nosso próprio favor.
E a propalada democracia falsa (lembram que era governo do povo, pelo povo e para o povo?) legitima o sistema de repressão dos governos mais conservadores, e a censura é a sua grande arma. A gente não deve estranhar, é claro – de mãos dadas com o FMI, nosso governo ‘popular’ toma como exemplo o Grande Irmão do Norte, aquele que sequer divulga para seu povo as baixas ocorridas entre seus soldados que se desesperam no Iraque, aquele que exerce uma grande ditadura fantasiada de democracia – quem é nosso pobre representante tupiniquim diante do semideus lá do outro Hemisfério?
Muitos pobres mortais unidos
E então ficamos aqui no Brasil brincando de democracia, e os veículos de comunicação vão filtrando para nós só as verdades que lhes interessam. Prendem-se lideranças do MST, o maior movimento popular organizado do mundo? Tudo bem, a imprensa fecha um olho, mostra só o que fica bem para o capital. Estudantes apanham nas ruas de Fortaleza? Claro, devem ser uns baderneiros, na visão dessa imprensa repressiva que faz o papel sujo para a propalada democracia. Se há alguma coisa acontecendo na comunidade de Pavão/Pavãozinho, no Rio de Janeiro, logo essa imprensa manca adere aos donos do poder e anuncia que lá há uma briga pelo narcotráfico. Há um genocídio acontecendo na Palestina e uma cronista tem a coragem de botar a boca no mundo? Que tola, determinado grupo pertencente a família judaica do Sul do Brasil, dona do jornal onde ela escrevia e outros veículos de comunicação, afasta-a do jornal sem a menor consideração com a verdade. No caso, a tal da articulista fui eu, mas poderia ser qualquer um. E aposto que vocês olham para um jornal como um espelho de reflexão, e não como um veículo que ‘corta’ qualquer possibilidade de debate que gere polêmica.
Polêmica é coisa que não interessa. Ao povo resta ser levado de cabresto, como cordeirinhos que se dirigem mansamente ao matadouro da ignorância. O negócio é se atrelar à censura, escrever artigos insossos dentro das limitações permitidas, em pleno século 21, terceiro milênio depois de Cristo, ano da graça de 2004.
Não pensem, caros amigos, que o que está aparecendo na imprensa é a verdade. Esta falsa democracia conservadora em que vivemos legitima muito bem o seu sistema repressor, e os pobres mortais como nós somos impotentes para mudarmos alguma coisa. Mas será mesmo? Não seria o momento de fazermos uma discussão ampla, criticarmos tanto a democracia grega, a da escravidão, quanto a atual, a das oligarquias, para ver se em algum momento chegaremos a uma verdadeira democracia ampliada, popular, com a participação dos excluídos, sem a força que as elites têm hoje?
Será que muitos pobres mortais unidos, muitos de mãos dadas, não terão força para, todos juntos, também fazerem valer a sua vontade, e acabar obtendo a verdade que fica engolida pelos meios de comunicação? Eu tenho fé em que é possível. Vamos nos ajudar?
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Escritora e historiadora, Blumenau, SC