Este trabalho tem o objetivo de desenvolver uma reflexão sobre a cobertura das eleições de 2006 para a Presidência da República, com foco na revista Época, das Organizações Globo.
A cobertura jornalística nas eleições é extremamente importante do ponto de vista político e social porque a abordagem, muitas vezes, é capaz de influenciar a decisão do eleitor a ponto de mudar o rumo dos resultados nas urnas.
Uma pesquisa do site Observatório de Mídia mostra que a tendenciosidade implícita tem se tornado, cada vez mais, uma constante no jornalismo brasileiro. Que tipo de interesse haveria por trás dessa cobertura questionável?
A revista Época é a 2ª maior revista semanal em circulação atualmente no Brasil. Publicada pela Editora Globo, tem circulação média, de acordo com a ANER (Associação Nacional de Editores de Revistas), estimada em aproximadamente 420 mil exemplares semanais.
Depois do apoio explícito à candidatura de Geraldo Alckmin no primeiro turno das eleições, a revista Época assume uma postura de ‘defensora’ da candidatura tucana durante as quatro semanas que antecederam o pleito presidencial decisivo de 2006. Coloca o candidato no altar da política brasileira por ter conseguido levar o pleito ao tão almejado segundo turno, numa demonstração de força contra o atual presidente. Em alguns trechos, a revista parece comemorar o resultado: ‘Agora ele passou a ser tratado quase como herói, como o candidato que, numa arrancada surpreendente, pôs em dúvida o mito de que o presidente Luís Inácio Lula da Silva era imbatível’ (Época, 09 de outubro de 06, pág. 27).
Horror a desperdício
As poucas reportagens sobre política publicadas no período dão grande ênfase ao ex-governador paulista, seja na abordagem ou na própria disposição das imagens no interior da revista. A posição é assumida subliminarmente pela própria revista na matéria publicada logo depois da primeira briga nas urnas.
Na edição de 09 de outubro de 2006, a reportagem ‘Como seria o Brasil de Alckmin’, de nove páginas, escrita pelos jornalistas David Friedlander, Guilherme Evelin e Leandro Loyola, tenta convencer o leitor, de olho nos eleitores de Heloísa Helena e Cristovam Buarque, de que o governo tucano não seria tão difícil como pregara o presidente Lula durante a campanha.
Há uma tentativa de sanar determinadas falhas na comunicação da campanha de Geraldo Alckmin. Na página 28, a revista aponta os erros: ‘Ele [Alckmin] fala muito em ‘choque de gestão’ e ‘qualidade no investimento público’, mas não entra em detalhes sobre o que isso significaria. Ele cortaria despesas com o funcionalismo público? Voltaria a privatizar empresas estatais? Como reduziria os gastos? […]’ (Época, 09 de outubro de 2006, pág. 28).
Em seguida, a revista entra em detalhes sobre o dia-a-dia de Geraldo Alckmin durante o período em que esteve à frente do Palácio dos Bandeirantes, em São Paulo, e procura mostrar as ações positivas de seu governo que poderiam ser repetidas no âmbito nacional. Medidas práticas, que explicam como o candidato poderá cumprir suas promessas de campanha e como se comportaria no comando do Brasil. ‘Alckmin é descrito como alguém metódico, com horror a desperdício. No Palácio dos Bandeirantes, sede do governo paulista, mandou trocar as torneiras comuns pelas de pressão, que se fecham automaticamente. O equipamento foi regulado para soltar jatos de água muito rápidos. A conta caiu 70%.’ […] (Época, 09 de outubro de 2006, pág. 28).
Benefícios das privatizações
Ao longo de toda a disputa presidencial do segundo turno, a revista Época mantém o papel de desmistificar fatos que poderiam comprometer a candidatura tucana e se propõe a esmiuçar temas como a privatização, por exemplo, principal arma do presidente Lula contra o adversário tucano.
Além de colocar Geraldo Alckmin no mesmo patamar de realizações, como na reportagem de Ricardo Mendonça intitulada ‘O que ele fez’ (Época, 16 de outubro de 2006, pág. 34), na qual compara os feitos dos dois candidatos para quebrar a imagem negativa desencadeada pela argumentação petista, Época traz reportagens e artigos exaltando os benefícios da venda de patrimônio público nos últimos anos e faz uma crítica à maneira como o candidato se comporta diante das provocações de Lula, deixando subentendido nos debates da TV que os apontamentos do adversário têm algum fundamento.
Em outra reportagem, a revista volta ao assunto e sai novamente em defesa da privatização, principal ponto fraco da campanha tucana. A impressão inicial é a de que a estratégia de campanha de Geraldo Alckmin deixa a desejar ao prestar esclarecimentos sobre o que é privatização, papel desempenhado gratuitamente pela revista Época mais uma vez.
Na página 28 da edição de 23 de outubro de 2006, foi publicado um box sobre os benefícios do comando da iniciativa privada sobre os serviços públicos que destaca a melhora e o desenvolvimento de setores como telefonia, rodovias, siderúrgicas e energia.
Comparação insustentável
Apesar de todo o esforço da Época para eleger o ex-governador de São Paulo ao Palácio do Planalto, o resultado das eleições no segundo turno não foi o esperado pela revista. O presidente Lula se reelegeu com larga vantagem em relação ao adversário peessedebista. Não havia mais o que fazer. A capa da primeira edição após o pleito, que deu a Lula mais quatro anos de mandato, surpreendeu: ‘Férias’. No interior, ao contrário do que se havia discutido exaustivamente nos últimos meses, nenhuma página sobre política, como se o tema estivesse esgotado e, por isso, ignorado, justamente quando um novo mandato governamental começa, de forma democrática.
A atitude pode ser encarada como um ‘lavar as mãos’ ou ‘dar as costas’ para a vitória petista, demonstrando claramente a opção editorial que, até então, vinha sendo passada sutilmente aos olhos dos leitores mais desavisados.
O quadro colocado pela pesquisa do Observatório Brasileiro de Mídia mostra o quanto a isenção e a objetividade estão longe do jornalismo brasileiro de maneira geral. O leitor é sutilmente manipulado pela opção política adotada pelo veículo. Uma prova real da decadência do jornalismo no Brasil: o jornalista Mino Carta, na revista CartaCapital de 14 de outubro de 2006, no trecho em que responde ao diretor de jornalismo da TV Globo, Ali Kamel, escreve sobre o desprezo da mídia brasileira pelos leitores, ouvintes e telespectadores. ‘O apresentador do jornal [Jornal Nacional], William Bonner, iguala o telespectador-padrão a Homer Simpson, o simpático simplório do desenho animado. Esse desprezo pela platéia não é incomum no jornalismo brasileiro, muito pelo contrário. É a razão primeira da decadência da nossa mídia. […] Mas se a questão moral sempre foi secundária, bastante secundária, para os patrões, vale sublinhar que já houve mais qualidade profissional.’ O jornalista Mino Carta acrescenta que a comparação entre o jornalismo brasileiro e o de muitos países é insustentável.
A autoridade dos âncoras
Diante desse quadro mais amplo da cobertura da mídia, na qual cada veículo de comunicação age em benefício próprio e de acordo com suas tendências políticas, é claro que não é lícito condenar a revista Época, assim como outros órgãos e empresas da mídia, por suas simpatias políticas. O inaceitável é a tentativa de esconder a parcialidade por trás de uma neutralidade que os comportamentos traem a cada passo. Ao contrário do que se prega nos manuais de ética jornalística, jornalismo é informação e opinião. A mídia não é apenas uma mediadora ou transmissora de informações. Ela é parte ativa e interessada no processo e constitui-se, ela própria, em importante ator político.
Nos períodos eleitorais, o papel de ator político da mídia se revela com clareza nas decisões editoriais, nas omissões e nas ênfases da cobertura política. Mas não é só aí. Há uma ação implícita, difícil de perceber e de descrever, que é constitutiva da posição de centralizadora que a mídia atingiu em nossas sociedades. Nos debates com candidatos, por exemplo, a instituição TV – que não passa de concessionária de um serviço público – comporta-se como se constituísse um poder acima dos outros. Os candidatos, que se apresentam aos eleitores como aspirantes aos cargos públicos, estão nesses debates como se estivessem diante de uma banca de examinadores e a autoridade do julgamento é exercida pela estrutura televisiva personificada no âncora, que preside o debate.
A flagrante fragilidade dos candidatos diante da autoridade dos âncoras da TV sugere ao telespectador que eles é quem estariam em melhores condições de gerir a coisa pública, com toda a desenvoltura e sabedoria que a TV lhes confere.
Marketing perverso
Confirma-se também a importância relativa da mídia não só em relação ao tipo de eleição – majoritária ou proporcional –, mas, sobretudo, de acordo com sua abrangência, isto é, se ela é nacional, regional ou local. A recondução, ao Congresso Nacional, de vários deputados insistentemente associados, pela mídia, a alguns dos ‘escândalos’ da crise política de 2005-2006 é uma prova destas peculiaridades.
Por outro lado, reitera-se a importância da mídia impressa paulista de referência nacional que, aliás, caminha junto com a relevância do estado de São Paulo no resultado das eleições nacionais pelo enorme peso de seu eleitorado.
O setor de comunicações é, infelizmente, por decorrência, inclusive do comportamento da própria mídia, esquecido ou deixado de lado durante os debates sobre políticas públicas.
Como escreve Venício A. de Lima em 02.10.2006 no site de informações sobre mídia Comunique-se (www.comunique-se.com.br), ‘nas sociedades contemporâneas, incluindo o Brasil, o debate das políticas públicas de comunicações deveria ser uma exigência da cidadania. Não só porque a economia da cultura – em que a mídia se situa – já representava, em 2003, cerca de 7% do PIB mundial, mas, também, porque não se trata de uma atividade econômica qualquer, mas, sim, do espaço no qual são construídas as representações das coisas, inclusive da política e dos políticos’.
A imagem de imparcialidade vendida pela revista Época como o trunfo da publicação, assim como a independência editorial e o comprometimento do conteúdo com a informação e a ética, estão longe da realidade vista semanalmente nas bancas. Tudo não passa do mais perverso marketing para induzir o leitor à alienação proposta pelas Organizações Globo, à qual a publicação pertence.
Omissões e ênfases
Não se trata aqui de julgar a maneira pela qual a revista se posiciona diante do quadro político do país, mas a tentativa de escamotear a opção política encoberta pelo argumento da isenção jornalística. Ficou claro, durante todo o período eleitoral 2006 para a Presidência da República, o esforço da revista Época para eleger o candidato tucano.
O poder da mídia foi e é usado sem escrúpulos para manipular a opinião pública, especialmente os mais leigos, sobre como devem refletir sobre determinado assunto, como se fossem verdadeiros fantoches nas mãos de um grande artista disposto a receber o maior dos cachês pelo melhor dos espetáculos.
No caso, as reportagens nitidamente tendenciosas publicadas pela revista Época, numa demonstração de que o que está em jogo não é o mérito da informação na sua essência, de interesse público, de prestação de serviço, de reflexão crítica.
Mais uma porção de interesses que demonstram claramente a posição de agente político adotada pelos meios de comunicação, que tem se tornado cada vez mais constante no jornalismo brasileiro. Trata-se da decadência do jornalismo puro.
A mídia não é mais apenas informação, mas principalmente opinião, uma mediadora no processo de convencimento da opinião pública, constituindo-se num importante ator político.
Esse papel se revela com clareza nos períodos eleitorais, como o analisado, nas decisões editoriais, nas omissões e nas ênfases da cobertura política.
Decisão pronta, sem rótulo
No caso específico da revista Época, a publicação assumiu a posição de defensora da candidatura de Geraldo Alckmin (PSDB) à Presidência da República e chegou a publicar mais de uma vez explicações sobre o principal ponto fraco da campanha, e alvo de críticas do adversário político – as privatizações. Em nenhum momento o conteúdo promoveu interação com o leitor, dando-lhe a oportunidade de refletir de forma neutra e imparcial, sobre o tema apresentado.
Portanto, é inegável a influência da revista Época no processo eleitoral analisado, agindo como uma claque impressa a favor de um único candidato, o que, certamente, pesou no resultado das urnas no pleito de 2006.
Sem políticas públicas que regulem um setor tão importante para a democracia brasileira, não haverá democracia plena que dê ao eleitor a possibilidade de estudar cada candidato e decidir por si só quem deve escolher para governar o país, estado ou município. Para quem dá o voto de credibilidade imbatível aos meios de comunicação, a decisão das urnas já vem pronta, enlatada, mas sem o rótulo.
Os meios de comunicação não são atividades econômicas como outra qualquer, mas formadores de opinião que nada contribuem para o verdadeiro interesse da população.
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Jornalistas; texto publicado na edição número 21 da revista Griffe, Jundiaí, SP