Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A matriz ideológica do jornalismo brasileiro

Vinte anos após o processo de redemocratização do país, e alcançado um período suficientemente longo de relativa estabilidade, a imprensa brasileira substitui a agenda econômica, que era seu tema predileto até a primeira metade do primeiro governo do PT, pela agenda política, que supostamente deve balizar nosso futuro. Nessa agenda se revelam nossas chances de construir uma sociedade aceitável.

Não é necessário um mergulho muito profundo para constatar que, infelizmente, são muito remotas nossas possibilidades de assegurar uma nação coesa, democrática, progressista e sustentável para as próximas gerações. Antes que o leitor comece a questionar as intenções do observador, convém lembrar que estas reflexões seguem aqui porque, para o bem ou para o mal, a sociedade depende em larga margem da imprensa para desenvolver e consolidar os valores com os quais promove sua evolução.

A imprensa brasileira não está cumprindo seu papel de iluminar esse caminho. Ela aderiu, quase na unanimidade, a uma agenda política retrógrada, excludente e limitada. A imprensa brasileira se alinhou automaticamente ao viés conservador que vem se consolidando no planeta há cerca de trinta anos, a partir dos primeiros sinais de colapso dos regimes socialistas de Estado. A imprensa, como agremiação coesa, escolheu o papel de freio social.

As oligarquias e a mídia

Para evitar os contumazes bate-bocas entre observadores contrários ou favoráveis ao atual presidente da República no pé deste artigo, convém pontuar que tampouco o governo petista representa um modelo progressista e inovador. Basicamente, os sucessos do atual governo se baseiam em políticas sociais corajosas, é verdade, mas nada que não esteja previsto nos estudos sobre a geração de riqueza na base da pirâmide. (Veja os trabalhos de Stuart Hart e Coimbatore K. Prahalad, respectivamente professores das universidades norte-americanas de Cornell e Michigan, sobre o assunto, bastante discutido nas empresas transnacionais e, especialmente, nas grandes instituições financeiras.) A rigor, há muito tempo se sabe que o capitalismo só encontra um caminho sustentável de desenvolvimento se incluir os 4 bilhões de seres humanos atualmente à margem dos mercados.

No mais, deve-se levar em conta a origem da maioria dos colaboradores do presidente, ele incluído, quase todos amadurecidos no movimento sindical. E ponderar que o sindicalismo é, por natureza, um ambiente corporativista, sem vocação para a universalidade.

Mas é também um governo que se descola da tradição de mando das oligarquias que sempre determinaram o perfil dos ocupantes do posto mais elevado da República. Pelo voto de cabresto, pelo financiamento de campanhas ou pela manipulação da opinião pública, através dos meios de comunicação, o coronelismo sempre garantira o mando. As oligarquias que dominam a imprensa construíram o mito Carlos Lacerda, fecharam os olhos para a profissionalização da corrupção nas últimas décadas – iniciada na construção de Brasília – e deram o suporte para a aventura dos militares em 1964.

Tese conspiratória

O governo Lula é, de fato, uma novidade nessa história. Mas não é uma novidade revolucionária. É um apêndice do próprio sistema, que o sistema mimou descaradamente e passou a rejeitar quando se deu conta de que não podia controlá-lo. Pode-se conjeturar, sem muita margem para erro, que as oligarquias perceberam o risco que corriam de ver a História desviada para um curso que não desejam quando dois aspectos do governo Lula ficaram evidentes: que a economia se encaminhava para um período de estabilidade e crescimento, com maior percepção de bem-estar para a maioria da população (o que criava as bases para a popularização do PT e consolidação de uma força político-partidária difícil de remover pelo voto); e quando se revelou, à margem dos escândalos de 2005, que o grupo político liderado pelo ex-ministro José Dirceu estava cimentando o caminho para um sucessor muito menos palatável que o próprio Lula.

Exatamente nesse ponto se observa a ruptura. Mas ela já estava predeterminada por outro fenômeno, este de abrangência internacional: a imprensa brasileira se alinha automaticamente, desde a época de sua modernização, nos anos 1960, aos grandes jornais norte-americanos. Todos os anos, os principais executivos de jornais brasileiros comparecem aos encontros da Associação Americana de jornais (NAA – Newspaper Association of America), onde se informam sobre novidades de gestão e debatem temas como o poder de influência sobre a opinião pública, credibilidade, fidelidade dos leitores, estratégias de marketing e liberdade de imprensa. Editores de revistas, emissoras de rádio e televisão se alinham às equivalentes entidades norte-americanas.

Praticamente toda a mídia no continente americano forma um bloco homogêneo em termos ideológicos. E segue um padrão conservador, que se articula há trinta anos em torno dos mesmos protagonistas, das mesmas instituições, das mesmas fontes de financiamento.

Antes que o leitor comece a elaborar idéias de aceitação ou rejeição de uma tese conspiratória, cabe a este observador lembrar que um grupo de colaboradores do postulante à candidatura democrata ao governo dos Estados Unidos, Barack Obama, identificou e contabilizou doações de cerca de 40 fundações a entidades cuja missão é apoiar movimentos conservadores, principalmente nos Estados Unidos e na América Latina.

A maior parte dos recursos é destinada a influenciar a mídia e as universidades, mas também há fortes investimentos em instituições multilaterais e organizações não-governamentais, a maioria delas sem vínculos aparentes com grupos políticos. Muitas dessas organizações assumem o discurso de entidades humanitárias e atuam em temas de larga aceitação pela sociedade. Em muitos casos, assumem a função de dirigir e divulgar ações de responsabilidade social e ambiental de empresas com histórico não muito recomendável.

Agenda predominante

Uma curiosidade: pelo menos uma dessas fundações financia a organização Repórteres sem Fronteiras, criada e dirigida pelo jornalista Robert Ménard, ex-anarquista, ex-trotskista e ex-militante da Liga Comunista Revolucionária. Ménard também recebeu apoio diretamente do controverso magnata François Pinault, que comprou em 1998 a revista Le Point, é acionista da emissora TF1 e dono, entre outros negócios, da rede FNAC de livrarias, das lojas Printemps e do Grupo PPR (Gucci, Couture, Yves Saint-Laurent).

A organização Media Transparency, que estuda as fontes de financiamento da mídia conservadora nos Estados Unidos, afirma que se trata de uma estratégia que vem sendo implementada há três décadas e que se consolida na medida em que a propriedade dos meios de comunicação vem se concentrando em todo o continente.

Mas, diferentemente do que pode imaginar o leitor, essa matriz ideológica que influencia majoritariamente a imprensa latino-americana não tem como objetivo combater as chamadas esquerdas. Os adversários preferenciais do conservadorismo organizado – que consegue abrigar sob seu guarda-chuva instituições católicas tradicionais e empresários dos setores de cassinos e produtos eróticos – são os capitalistas de vanguarda, empresários e instituições de visão progressista que projetam um sistema econômico sustentável e socialmente mais aceitável.

Esse entrevero se dá no território do capitalismo, onde se sabe que os movimentos de fusões e aquisições estão próximos do seu ponto-limite, que o mercado de luxo é um nicho de proporções irrisórias e que a economia global não poderá mais se sustentar nas classes médias. A inclusão de 4 bilhões de novos consumidores é o objetivo desse jogo. O troféu são as cabeças e mentes desses futuros cidadãos, que deverão nos próximos anos adquirir um peso respeitável na sociedade globalizada.

Sob esse prisma, faz todo sentido a agenda política que predomina na imprensa brasileira. A popularidade do presidente Lula nas camadas da população que se percebem beneficiadas por seu governo reduz a influência da mídia sobre esses novos cidadãos. O auto-intitulado quarto poder não quer perder esse jogo.

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Jornalista