Jornais regionais normalmente são mais vulneráveis às pressões e influências locais, o que costuma arrefecer o apetite pelo bom jornalismo.E quando os interesses econômicos e outros que tais sobrepujam o idealismo e a combatividade, combustíveis básicos para um jornalismo que se preze, a acomodação e o espírito de repartição pública acabam sendo inevitáveis, transformando-os no mais das vezes em meros carimbadores de notícias. Num mercado cada vez mais competitivo, jornalismo de qualidade passou a ser artigo de luxo, comumente sacrificado em prol da famigerada rubrica de contenção de despesas, em nome do qual uma verdadeira diáspora vem sendo praticada nas redações do mundo todo.
Se grandes jornais se desfiguraram nos últimos anos em função de imposições financeiras, o que dizer dos de menor porte, de circulação e alcance restritos. Para sobreviver, só mesmo dançando conforme a música, ou, em outras palavras, priorizar o balcão de negócios, já que a tiragem, com raríssimas exceções, vem caindo generalizada e indistintamente para o mais tradicional dos meios de informação.
Menos mal para os que puderam diversificar, explorar outros segmentos, principalmente a televisão, que de todos os veículos é o único que vem crescendo regularmente, notadamente a Globo e suas afiliadas. Grupos poderosos surgiram graças à TV, mesmo fora do eixo Rio-São Paulo, como a RBS, no Sul, e algumas redes regionais, como o grupo A Tribuna, de Santos.
Falta de vocação
Abrangendo um público de mais de 5 milhões de telespectadores, que vai da Baixada Santista, ao Vale do Ribeira e ao Litoral Norte do estado, a TV Tribuna desfruta de uma posição privilegiadíssima, dominando cerca de 70% do mercado publicitário, o que compensa largamente a estagnação do braço jornalístico do grupo.
Mesmo acompanhando o avanço tecnológico e atingindo todas as camadas sociais com seus dois diários – o centenário e conservador jornal A Tribuna e o caçula, de 5 anos, Expresso Popular, tablóide de apelo popular – a abdicação de jornalismo mais atuante e qualificado sem dúvida é a causa determinante da perda gradativa de público e credibilidade. Apesar do esforço para se modernizar, A Tribuna continua fazendo jus à pejorativa fama de ‘jornal para cardíacos’ que a acompanha através dos tempos.
Epíteto que parece não incomodar seus proprietários, a família Santini, da alta burguesia da cidade, talvez porque nunca tenha se interessado verdadeiramente por jornalismo. Daí a própria brincadeira que se fazia em sua redação, de que textos dos donos eram como cabeça de bacalhau – ninguém nunca tinha visto. Em compensação, sempre foram figurinhas fáceis em alguma das sete colunas sociais que o jornal chegou a manter – provavelmente um recorde digno do Guinness.
Como um jornal não deixa de refletir a cara dos donos, A Tribuna consolidou a imagem de jornal conservador e avesso a temas polêmicos. Entre fazer um jornalismo instigante e a política de panos quentes, quase sempre preferiu a segunda opção. Agora, então, nem se fala, com uma chefia de Redação que não hesita em fazer o jogo dos patrões, mesmo com isso resultando num arremedo de jornalismo.
Sinal dos tempos, pois nem sempre foi assim. Lá pelas décadas de 1950 e 60, o jornal chegou a reunir um time de primeira categoria, com profissionais que depois ganharam projeção nacional, como Juarez Bahia, Geraldo Galvão Ferraz, Roldão Mendes Rosa, Ouhydes Fonseca, Carlos Monforte e vários outros que abasteceram os grandes jornais da capital. O próprio Bahia foi editor-chefe do Jornal do Brasil dos bons tempos.
Santos vivia então em efervescência política, com as manifestações da numerosa categoria dos portuários – que precedeu a ditadura e, mais tarde, o movimento dos metalúrgicos, berço político de Lula e do PT. Foram tempos difíceis em que o jornal honrou suas origens, mais precisamente enquanto comandado por um dos sócios com sangue de jornalista, Manuel Nascimento Jr. Se bem que coube ao genro, Giusfredo Santini, consolidá-lo comercialmente, depois de sua morte. Enquanto vivo, Giusfredo soube compensar a falta de vocação jornalística com um comando firme, tino comercial e humildade para não se imiscuir no que não era sua seara, a Redação propriamente dita.
Filosofia hegemônica
Quando veio a ditadura, o jornal, por assim dizer, se amoldou aos tempos bicudos da censura, de coerção, da ameaça constante de fechamento. Sobreviveu, mas sem escapar de seqüelas daqueles anos de cerceamento, resultando num embotamento que de certa forma repercute ainda hoje, embora por motivos diferentes.
Se naquele tempo o maior problema foi a acomodação e a desmotivação, hoje o que compromete é a falta de qualidade editorial, competência, em suma, de tesão para fazer um jornal como manda o figurino. Um jornal que realmente se envolva com os problemas e carências da região, que faça um jornalismo criativo e condizente com o papel fiscalizador do qual abriu mãos nas últimas décadas.
Inapetência esta que três décadas atrás já levava alunos da própria faculdade de jornalismo a encaminhar à direção do jornal um abaixo-assinado inquisitório – que, no entanto, pouca ou nenhuma diferença fez no passar dos anos. Acomodação incentivada pela própria falta de concorrência, posto que desde o fechamento do matutino Cidade de Santos, se não me engano em 1973, A Tribuna está à vontade para impingir aos leitores seu jornalismo desfibrado e sem viço, cuja única pitadinha de sal fica por conta de colaboradores e articulistas free-lance, de resto compartilhados pelos assinantes da Agência Estado, do jornal O Estado de S.Paulo.
Em função do gradual afastamento e preterimento dos profissionais mais graduados – e melhor remunerados –, substituídos por principiantes e material requentado, as pautas obviamente não poderiam ter ficado mais superficiais e burocráticas. Um ombudsman diria que com essa postura o jornal acabou sendo fiador do que ele próprio rotulou de ‘a cultura do não’ a propósito da rejeição automática, por parte da elite conservadora, de toda e qualquer iniciativa de vanguarda proposta na região. Como o Museu Pelé, que deveria ser um patrimônio da cidade; o projeto de um parque temático na área ociosa do emissário submarino; uma ponte ligando Santos a Guarujá, para acabar com os tradicionais transtornos da travessia por balsa; um estádio novo para substituir o obsoleto palco da Vila Belmiro; e várias outras coisas que o jornal se contenta em registrar.
Como é típico em todo monopólio, nada indica que essa situação possa mudar voluntariamente, já que a saudável prática da autocrítica, nesse caso, está diretamente vinculada ao retorno financeiro. Se está dando lucro é porque está bom, é a filosofia reinante. Com o respaldo da Rede Globo, A Tribuna pode continuar fingindo que faz jornalismo e seu público cativo fingindo que acredita.
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Jornalista, Santos, SP