Com um enredo de filme ‘B’, a imprensa brasileira deu nesta semana, a partir da edição nº 1.858 da revista Veja, uma demonstração de como transformar em fato relevante uma intriga mal-ajambrada cuja veracidade dificilmente será elucidada.
A história segundo a qual o jornalista Ricardo Amaral, assessor do ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência Luiz Dulci, ou Alon Feuerwerker, assessor do ministro Aldo Rebelo, chefe do gabinete da Coordenação Política, seria o misterioso eixo de uma rede de conspiradores empenhados em desestabilizar o ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, e ainda impedir a reeleição da prefeita de São Paulo, Marta Suplicy, cabe naquele rol dos piores momentos do jornalismo pátrio.
A rigor, pelos elementos que a compõem, a história se encaixaria bem numa dessas colunas de humor que ilustram os cadernos antes chamados culturais, ou, como bem ponderou o colunista Merval Pereira, do Globo, numa das historietas ligeiras do dramaturgo e cronista Mário Prata. Tanto Ricardo Amaral quanto Alon Feuerwerker têm em seus currículos uma relação de proximidade com o presidente do PSDB, José Serra, e ambos são do tipo que troca confidências em voz alta em rodas de amigos. São sociáveis e gostam de anedotas, em cujo repertório apreciam incluir as circunstâncias de suas atividades profissionais. Nenhum dos dois cabe, portanto, no perfil discreto do espião descrito no folhetim ambientado no Planalto.
O único personagem que se encaixa com naturalidade no roteiro descrito pela revista é o ministro José Dirceu, cuja vida tem sido percebida como uma intrincada trama de negociações, dissimulações e manobras, a tal ponto que não se pode desvincular o que sejam seus gostos pessoais e suas estratégias políticas.
Práticas históricas
A partir da edição de Veja, praticamente toda a imprensa nacional embarcou na versão segundo a qual haveria, mesmo, um espião grudado a Rebelo ou a Dulci, conspirando contra os interesses do PT e em favor do candidato do PSDB à prefeitura de São Paulo, José Serra. De quebra, a assunção dessa hipótese como verdadeira serviu como plataforma para afirmações, em editoriais, a respeito de uma suposta guerra interna no governo – e, por extensão, de certa incapacidade do presidente da República de manter sob controle os interesses de seus principais auxiliares.
Chegou-se à beira de insinuar que o país resvalava para a ingovernabilidade. Em outros tempos, essa expressão tanto poderia servir de mote para estimular alianças no Congresso, como se configurar em senha para atentados contra a democracia, com apoio da imprensa.
Veja retoma o tema na última edição (nº 1.859, de 23/6/04). Mas lembra uma velha lição que, tomada com rigor, teria matado na origem a primeira reportagem da série e enquadrado o episódio em sua real circunstância: ‘É raro, raríssimo, encontrar uma equipe que assuma o poder unida e permaneça assim por longo tempo’.
Qualquer repórter ou editor com alguma experiência na cobertura da política sabe que a intriga, em grau maior ou menor, é parte desses jogos de poder, sem que acabem necessariamente estampadas em manchetes. A carreira política do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, foi traçada habilmente numa sala da Câmara Municipal de São Paulo, onde funcionava o diretório do antigo MDB, pelo então secretário do partido, Antônio Roque Citadini, que usou de engenhosas artimanhas para driblar os ciúmes do ex-governador Franco Montoro e os cuidados do então senador Orestes Quércia e encaixar o sociólogo sob as asas de Ulysses Guimarães.
Evidentemente, um governo fundado sobre a rotina das assembléias e habituado às manobras e ‘articulações’ dos encontros e congressos – cujos próceres ainda não aprenderam os rudimentos daquela capacitação que os assessores de imprensa e profissionais de relações públicas oferecem nas práticas de media training – acaba se transformando em prato cheio para o jornalismo preguiçoso e mal-intencionado que se alimenta do declaracionismo.
Um governo com essas características, que não conta com a mais remota boa-vontade de nenhum grande veículo de comunicação comercial do país, deveria ter em seus quadros um núcleo de profissionais especializados em prevenção de crise. Não pode jogar a descoberto como se estivesse em campo neutro.
Não que se devesse esperar da imprensa uma posição de subserviência em relação ao poder central, mas não há de escapar da memória dos observadores a babação deslavada com que a maior parte dos grandes jornais e emissoras do país tratava o ex-presidente Fernando Collor antes da eclosão dos escândalos, e a renitência com que alguns dos mais importantes entre eles aderiram à investigação da rede de corrupção capitaneada por Paulo César Farias.
Por mais que se esforce, por mais positivos e sustentáveis que venham a ser os indicadores econômicos e sociais – realidade da qual estamos distantes –, o presidente Lula nunca deixará de ser o ‘sapo barbudo’ para se transformar no ‘príncipe’, expressão com que alguns destacados editores chegaram, literalmente, a qualificar Fernando Collor antes da derrocada. Será sempre, até o fim de sua carreira, um estranho no ninho do poder.
Portanto, por trás da seriedade com que se tratou de vestir o episódio, rosna o preconceito, insuflado pelo gosto com que o ministro José Dirceu se dedica aos negaceios da política, alimentado pela insistência do presidente em preservar no poder maior da República as práticas de decisões coletivistas com que se fez líder sindical.
Tamanho da trinca
O presidente do PSDB, apontado como suposto beneficiário da hipotética rede de espionagem, também se encaixa tão bem no papel que quase chega a dar alguma verossimilhança à história. Mas ele não precisaria de uma trama como a que foi descrita e fartamente repetida pela imprensa: Serra poderia ouvir possíveis relatos sobre o núcleo do poder petista, diretamente dos dois suspeitos citados ao longo da semana, e de outros personagens igualmente bem situados no governo federal, com os quais mantém boas relações de camaradagem. Em Brasília, como se dizia num antigo programa radiofônico,
tudo se sabe.
O que se ignora, e talvez nunca venhamos a conhecer, é o desgaste que pode causar na credibilidade da imprensa a reprodução literal de intrigas que, a rigor, caberiam numa nota de coluna. Se todo governo, como sabemos, produz intrigas e pratica o jogo de informações e contra-informações como parte das disputas de poder, caberia à imprensa apurar se tal ou qual fato se enquadra no rol das informações acabadas, que acrescentam algum valor de conhecimento ao público, ou se é apenas detalhe de um jogo em andamento.
Como foi explorado, o caso da suposta espionagem não ajuda a entender as dificuldades do governo em equilibrar na mesma corda as variadas tendências de sua base de apoio. E, como a energia da imprensa para investigações alentadas anda escassa, dificilmente a opinião pública virá a conhecer a extensão das rachaduras que efetivamente prejudicam o desempenho do governo.
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Jornalista