Como a mídia é hoje um dos principais lugares de produção de fatos sociais (e não mais apenas um dispositivo de veiculação de informações), é lícito chamar a atenção para a emergência de indicações jornalísticas sobre a psicopatia como fenômeno social contemporâneo.
Um artigo recente do colunista Arnaldo Jabor (no Globo), em seu peculiar estilo entre o analítico e o bombástico, apontava a telenovela Celebridade, da Rede Globo, como exemplo de narrativa com personagens cujos supostos traços psicopáticos (aí entendidos como uma inclinação para o Mal) cativariam mais o público do que os personagens ‘bonzinhos’. O êxito junto aos telespectadores da violenta surra aplicada pela personagem boazinha à vilã – em si mesmo, uma ato de fúria narcísica, em nada ‘bonzinho’ – só foi suplantado pelo sucesso da amoralidade sem limites no comportamento da personagem mau-caráter.
Por sua vez, Zuenir Ventura, citava em sua crônica o livro recém-lançado de Michel Maffesoli (A Parte do Diabo, editora Record), em que o sociólogo francês enxerga na cultura pós-moderna diferentes formas do demonismo:
‘Demonismo cuja expressão mais flagrante encontra-se na música, sob suas formas mais violentas, mas que também podemos observar nos happenings artísticos, ou ainda em tantas criações teatrais. Em cada um desses casos, a barbárie, o paganismo e a animalidade recalcados recobram força e vigor’.
Este, aliás, é o tema de capa da revista americana Rolling Stones (maio/2004): a imagem do Emenem, conjunto de funk-hip-hop, ilustra o título ‘American psychos’ – ou seja, ‘psicopatas americanos’. No corpo da matéria, os músicos (se é que assim se deve chamá-los) contam por que ‘odeiam o mundo’.
Jogo de paixões
Evidentemente, não tem nenhum rigor psiquiátrico ou psicanalítico a descrição dos sujeitos desse tipo de comportamento como ‘psicopatas’. Na verdade, nem mesmo os teóricos ou os profissionais da área têm muita clareza quando se trata de fazer diagnósticos.
Os psicanalistas mais modernos, também mais espertos, sabedores de que a noção de saúde psíquica procede de uma exigência cultural prévia relativa à normalização do indivíduo em seu grupo, costumam esquivar-se da dificuldade, recusando a validade dos diagnósticos. Os psiquiatras, sempre aferrados à nosografia médica (exceção feita à antipsiquiatria, que recusa a realidade da doença mental) esbaldam-se descritivamente nas classificações dos tratados.
E assim ficamos sabendo, desde fins do século 19, que psicopatia tem a ver com desvios no padrão ‘normal’ de desenvolvimento da personalidade, particularmente na formação do caráter. Astênicos, psicastênicos, esquizóides, epileptóides, excitáveis etc. – a lista das variáveis é longa.
O cinema e a literatura policial concentraram-se na popularização do serial killer ou do mau-caráter puro e simples. O primeiro é o psicopata, temperado pela violenta excitação histérica, que vive de suas fantasias aberrantes, sem distinguir entre experiências imaginárias e reais, alheio ao controle social. O segundo é como se fosse cocaína ‘encarnada’, onipotente e amoral.
Ora, numa época já descrita pelo sociólogo Richard Sennet como de ‘corrosão do caráter’ (por debilitação dos padrões clássicos de sociabilidade, esvaziamento político, enfraquecimento da disciplina do trabalho etc.), poderia estar chegando ao fim o ciclo do valor absoluto do Bem, sempre entendido como ponto para onde convergem todas as forças de equilíbrio da comunidade. Em seu lugar, estaria emergindo o excesso que, na visão de Maffesoli, ‘mesmo em seus aspectos obscuros, é também um elemento estruturante da nossa natureza. A temática do deus criador do mal, ou do mal que provém do próprio seio de Deus, é, na realidade, uma maneira de legitimar este excesso – ‘parte maldita’ (G. Bataille), ‘sombra’ (C.G. Jung), ‘instante obscuro’ (E. Bloch) – e de reconhecer sua importância’.
A associação entre a psicopatia e o Mal seria, assim, uma incompreensão do trágico presente no jogo humano das paixões, da ambivalência em que implica ir à raiz das coisas.
‘Número 2’
Como se infere, não haveria razões para alarme nessa reiteração contemporânea da força do Mal. Diz o sociólogo: ‘O Mal é um limite, é verdade, mas devemos lembrar que o limite permite ser. Em seu sentido lógico, ele determina alguma coisa ou alguém’.
Sob esta ótica, o temor dos colunistas ante a suposta onda de psicopatia ainda é uma figura do pensamento guiado pela lógica do ‘dever ser’, aquela que de fato tranqüiliza as ‘almas boas’ de todas as tendências.
Seria agora talvez mais imperativo desembaraçar-se do intelectualismo moralista e dos ideais celestes para melhor entender o espírito da época. Por exemplo, a agressividade ‘psycho’ de uma turma como o Emenem pode não ser nada mais que uma teatralização histérico-midiática (ver Histeria na Mídia, de Raquel Paiva, editora Mauad), uma fantasia boba da ‘parte das trevas’. E a novela da Globo? Maldadezinhas, antecipadas por infantis contos de fadas.
Claro, de perto tudo isto é capaz de assustar, a nós e aos colunistas, ninguém está inteiramente a salvo dessa emoção básica que é o medo. Basta pensar na crueldade dos traficantes de drogas, no massacre da Casa de Custódia de Benfica, na indiferença dos governantes etc. Por outro lado, a reflexão pausada pode ajudar-nos a entender a facilidade com que circulam discursos como o do pastor Marcos Pereira da Silva, o homem que pôs fim à rebelião em Benfica. A fala que, segundo ele próprio, toca o coração dos bandidos e dos governantes, nos assegura que o Demônio é responsável por todos os desvios de conduta do ser humano, do adultério e alcoolismo a assassinatos, roubos, estupros, tortura, tráfico e corrupção (Folha de S.Paulo, 6/5/04).
‘A cocaína’, diz o pastor, ‘é o Demônio ralado. A cerveja é a Pombajira em líquido.’ À pergunta sobre por que se desdobra em elogios à governadora Rosinha Matheus e ao marido dela, o secretário de Segurança Anthony Garotinho, o pastor responde que ‘as autoridades são constituição divina’.
É possível, como diria o sociólogo, que aí se ache algo da ‘obscuridade do mundo’ a que se refere Jung como experiência privilegiada de sua ‘personalidade número dois’. Mas não é certamente a correspondência mágica entre o individual e o coletivo. Por demais perto de nós, em meio ao trágico no pior sentido que é hoje a vida pública no Rio de Janeiro, a obscuridade do pastor e suas autoridades divinas é simplesmente aterradora. Vamos acabar chamando o colunista.
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Jornalista, escritor, professor-titular da UFRJ