Num mundo sem Deus e ao mesmo tempo num mundo em que Deus se metamorfoseia em outras figuras de adoração e fetiche, como a mercadoria, a idolatria midiática, a ciência e tantas outras megalomanias; neste mundo, três afetividades ou olhares ou práticas ou saberes orientaram-nos e orientam-nos, no decorrer da modernidade: o cinismo, o niilismo e a imaginação utópica.
Essas afetividades ou paixões ou predisposições psicológicas, para agir, ou deixar de agir, não valem por elas mesmas, não são igualmente ruins ou boas, isoladamente, já que dependerão sempre do contexto social em que atuam; dependerão, enfim, do intrincado jogo de interesses que cada período histórico esconde e mostra ao mesmo tempo, em função mesmo das estratégias ideológicas e do estado geral das relações de força, se pendentes para o lado do capital ou se – coisa rara – favorável ao lado da dimensão coletiva, das pessoas e instituições e práticas e saberes, as quais, embora sem pedigree e sem sobrenome, são as anônimas autoras de toda produção de riqueza, material ou simbólica, sendo tudo mais uma retumbante farsa; traição.
Assim, ainda que sabendo que tudo depende dos usos e dos abusos, cada uma dessas afetividades detém suas peculiaridades, são formas singulares de responder a um mundo sem Deus, a um mundo laico, no qual estamos como que órfãos e do qual somos, nesse sentido, os únicos responsáveis.
Imaginação utópica
No fundo e no raso, laico é o mundo em que sabemos mortais, sendo que a grande vantagem da morte é ser desolador destino comum a todo vivente, logo uma fonte inesgotável de potencial de rebeldia e de quebra de hierarquias, umas vez que, perante a morte, como condição universal, ninguém é melhor do que ninguém.
Tendo em vista esses argumentos, cinismo, niilismo e imaginação utópica nada mais são que formas possíveis de responder à condição comum de mortais, sendo que o cinismo é a afetividade que, como um anjo maligno, sabendo da não existência de Deus, e consciente de que as pessoas são manipuláveis antes de tudo porque são tributárias de uma crença qualquer, como um vestígio de Deus, manipula tais crenças com o nítido propósito de angariar toda sorte de vantagens.
Por sua vez, o niilismo é aquela afetividade que desiste de viver, ou simplesmente ‘deixa a vida nos levar’, porque se sente órfã e não consegue existencialmente vislumbrar saídas, pressupondo, e com razão, que toda e qualquer saída – pelo menos até o presente período histórico – não superará a morte. O niilismo, como dizia Nietzsche, em A genealogia da moral, ‘é a vontade do nada no lugar do nada da vontade’. E tudo porque seremos nada, isto é, deixaremos de ter inconsciência/consciência institual, se assim posso dizer, do próprio eu.
Por fim, a terceira afetividade, da modernidade dita laica, a mais promissora, é a imaginação utópica. Esta se manifesta através da coragem inscrita na visão das ilimitadas possibilidades potencialmente experimentáveis ou testáveis ou críveis num mundo em que Deus não existe, mas nós, os viventes mortais. Nessa perspectiva, a imaginação utópica sabe, ou tende, que Deus não é apenas uma questão de religião, mas é antes de tudo um argumento político-ideológico usado para monopolizar e oligopolizar a administração e o usufruto da riqueza, sempre de todos e de ninguém.
Usurpação do esforço coletivo
Logo, imaginar-se utopicamente é imaginar-se sem ter como referência ou interlocutor um padrão qualquer de poder, vale dizer, uma referência ideologicamente divinizada. Nesse sentido, a mulher se imaginando sem o homem, é imaginação utópica. O pobre imaginando-se sem o rico, é imaginação utópica. O sul do planeta imaginando-se sem o norte, é imaginação utópica, assim o é quando também o próprio homem se imagina sem o amparo de sua heterossexualidade patriarcal compulsória.
Destaque-se, a propósito, que se imaginar sem um interlocutor padrão de referência não significa desprezar ou vilipendiar o nome comum atrás do nome próprio, o nome comum do homem, atrás do nome próprio Homem, como referência de poder patriarcal, o mais antigo da terra; ou o nome comum tecnologia atrás do nome próprio Tecnologia informacional, bélica, científica, as quais nada mais são que formas impostoras de garantir vantagens de toda sorte.
Claro está, ou se supõe que esteja, que, sob o ponto de vista de classe, de opressor e oprimido, de rico ou pobre, não existe oposição entre nome comum e próprio, já que ser rico ou pobre são ‘circunstâncias’ advindas, dentre outras possibilidades, da monopolização ou oligopolização do uso dos nomes próprios, os do Homem com H maiúsculo; os da Tecnologia com T de tomada, de usurpação do esforço coletivo, o único, como já disse, responsável pela produção de qualquer forma de artefato.
Ricos e pobres
Não existe, portanto, rico, sob o ponto de vista econômico, com ‘r’ minúsculo.
Ser rico é uma forma inequívoca de roubo da produção de riqueza, a qual, sendo coletiva, oligopoliza-se ou é monopolizada a partir do exercício – que não deixa de ser cínico – do controle divino dos meios de produção, para concordar com o marxismo mais óbvio.
Por outro lado, considerando um marxismo não tão óbvio assim, hoje vivemos numa sociedade planetária em que não é mais possível saber quem nasce primeiro, o ovo ou a galinha, a infra-estrutura ou a superestrutura, o mundo das idéias ou o das reais condições de existência, uma vez que tudo é simulacro de tudo, lembrando, desde já, aos incautos, que essa marca do nosso presente não é uma imutável verdade evidente, sendo, portanto, uma circunstância historicamente determinada. Logo, passível de ser modificada, seja para acabar com ela, seja para torná-la mais ajustável a uma sociedade de justiças gerais.
Infra-estrutura e superestrutura são, por isso mesmo, nomes de um mesmo devir: o fazer e fazer-se humanos, demasiadamente humanos.
De qualquer forma, tendo em vista o nosso presente, este em que infra-estrutura e superestrutura se confundem, não teremos a mínima chance de modificar a grande vantagem – sempre fundada no roubo e na corrupção – histórica dos ricos sobre os pobres, se permitirmos que os meios de comunicação continuem sob o controle monopolizado-oligoplozado em que se encontram.
Biodiversidade ideológica
Num país como o Brasil – mas vale para todos, já que é uma questão planetária – é absolutamente impossível qualquer possibilidade de construir uma sociedade mais justa, que potencialize o nosso transculturalismo étnico-cultural, tornando-o inspiração para toda a humanidade, se não desligarmos o oligopólio monopolizado – porque falam a mesma língua, a dos mesmos interesses – das tevês abertas privadas, argumento que também vale, é claro, para as tevês estatais, as que entram no coro dos interesses privados, reforçando o oligopólio monopolizado do cartel formado pelo bloco dos sinais que respondem pelo nome de Rede Globo, de SBT, de Bandeirantes, de Record, de Rede Tevê.
Por isso mesmo, misturando imaginação utópica e cinismo, basicamente escrevo este texto para propor uma pequena cartilha capaz de nos servir de fonte de informação para não apenas lidar com as mais diversas manipulações editadas pelas tevês abertas, mas, no limite, cinicamente ou não, para também poder ser usada como referência capaz de nos ajudar a democratizar as tevês abertas, o que só é possível acabando com o oligopólio monopolizado, uma vez que a questão não é apenas de quantidade – e as tevês pagas não me deixam mentir, a respeito.
Podemos ter, a propósito, 100, 200, quantos canais abertos de tevês sejam possíveis, mas, se não houver, antes de tudo, biodiversidade ideológica – esta é a mais relevante de todas – de formas de pensar, mal sairemos do lugar.
Eticamente cínico
Se imaginação utópica é imaginar-nos atuando no mundo sem nos referendarmos por qualquer forma de fetichismo e divinização, verdade seja dita, jamais conseguiremos esse prodígio se não admitirmos que existe o fetichismo – da mercadoria ou não –, que existe a idolatria, que existe poderes monoliticamente oligopolizados, estejam eles nas mãos das hierarquias ditas religiosas, das grandes religiões, ou nas hierarquias laicas, como as do sistema financeiro internacional, as das multinacionais de produção de bens materiais e simbólicos, incluindo, nestes últimos, os meios de comunicação.
Se não partimos dessa premissa, corremos o risco do voluntarismo, sob a forma de pensamento mágico. Eis aí porque o cinismo, nesse caso, é bem vindo. Se ser cínico é aproveitarmos de uma situação, dissimulando ou dando pouca importância a outras, porque sabemos que a verdade e a essência não existem, quer queiramos ou não, todos somos cínicos, caso em que o que passa a valer é, cinicamente, a aprendizagem do que ousarei em chamar de cinismo ético, ou a ética do exercício do cinismo, improvável, desde já, se não tem como motivação inicial a efetiva participação da imaginação utópica.
Somos sempre cínicos porque, inconscientes ou não, escolhemos como sê-lo. Se oriento minha vida, por exemplo, no poder do dinheiro, se dou mais importância ao dinheiro que as pessoas, sou cínico com as pessoas, porque não as trato como essenciais, mas não o sou com o dinheiro, porque atribuo um poder hierárquico – logo divino – ao esfíngico papel moeda.
Aprender a ser cínico é, portanto, uma atividade política, a qual, com o impulso da imaginação utópica – esta que nos obriga a pensar o mundo sem nos apoiar em qualquer bengala fetichista ou padronizadora – pode ser experimentada através de escolhas éticas que sejam motivadas pelo seguinte argumento, ainda que pareça cinicamente fetichista: Ser cínico eticamente é ser cínico com toda forma de divinização, de fetichismo, de idolatria; é ser cínico a toda forma de oligopólio-monopolizado, para uso e abuso de poucos.
Devemos ser utopicamente cínicos, portanto, com o oligopólio-monopolizado das tevês abertas.
Para tanto, proponho, não menos cinicamente, ainda que de forma ética, a seguinte maquiavélica cartilha:
1.
Veja o menos possível as tevês abertasNa era dos oligopólios-monopolizadores, que é a nossa, é sempre bom ver um pouco de televisão, pois não temos o direito de deixar de presenciar como são produzidos seus jogos ideológicos, suas ilusionistas estratégias de divina defesa de castas.
Ainda assim, como se trata de oligopólio-monopolizador, para continuar com a estratégia do cínico ético, procure ver o canal de menor audiência, até porque o que passa num passa noutro, seres replicantes que são, na era do clone.
Esse foi o erro básico de Marco Aurélio Garcia. Por que estava vendo a Rede Globo, se todos os canais, no cartel televisivo, falam a mesma novilíngua hipócrita e direitista? Esse é o erro básico do governo Lula. Por que dá tanta importância assim à Rede Globo de Televisão, se não adianta respeitá-la ou bajulá-la, uma vez que ela é, no Brasil, a fiel representante do epicentro do bloco oligopolista-monopolista planetário, o poder norte-americano e, por isso mesmo, ela é convocada a ocupar a linha de frente de desqualificação do atual governo.
Esse, por sua vez, foi o erro básico das esquerdas ditas radicais, principalmente do PSOL, à época da avalanche moralista de denúncias de corrupção contra o governo Lula, em 2005-2006, já que muitos dos seus integrantes receberam um minuto de fama; foram entrevistados, muitos deles, pelos principais jornais locais e nacionais da Rede Globo de Televisão, cumprindo, no geral, muito bem o papel que lhes foi adstrito, qual seja, falar mal de Lula, ajudando a aumentar o coro dos descontentes. Por que não aproveitaram a oportunidade para também criticar, a partir de um olhar socialista, a tragédia da genuína era neoliberal de Fernando Henrique Cardoso?
2.
Ignore as tevês abertasEm época midiática, aparecer nos meios é uma condição indispensável para se apresentar como sujeito de direito, posto que não ter representação midiática é quase o mesmo que não existir e, se não existimos, ninguém se importará que não tenhamos onde morar, o que comer; ninguém, enfim, se importará conosco.
Ignorar, portanto, as tevês abertas é tudo que não deveríamos fazer. Por outro lado, um verdadeiro cínico ético não pode se submeter a esse poder déspota, passivamente, há que partir para o embate, isto é, lutar para ter direito de visibilidade.
Por isso mesmo, ignorar as tevês abertas não pode ser confundido com permitir que elas cometam suas injustiças midiáticas. Ignorar é, simplesmente, não desejar se tornar famoso e conhecido, ou mesmo ter um minuto de fama, comportando-se como um puxa-saco, cooptando-se.
Esse é também um erro crasso de Lula, uma vez que se fez conhecido exatamente porque não cooptou com os meios, pois conseguiu fama exatamente porque as tevês abertas o mostraram para falar mal dele.
Lula não tem motivo algum, portanto, para fazer o jogo das tevês abertas, e muito especialmente da Rede Globo, já que chegou à Presidência da República apesar de todas elas.
3.
Responda perguntas com perguntasCaso, por uma razão qualquer, venha a ser interpelado pelas tevês abertas, adote o estilo Ahmadinejad, nome do presidente do Irã, que é o de responder a perguntas e questionamentos com outras tantas perguntas e questionamentos sobre a história e o modo de operação das tevês abertas.
Se sabemos que o oligopólio-monopolizador age com má-fé, não temos motivo algum para aceitar suas intervenções. Ele não é o que tenta parecer ser, a voz geral da sociedade, mas, pelo contrário, é o seu engodo, a sua farsa, a sua usurpação. Logo não temos obrigação alguma com as tevês abertas privadas, mesmo que sejamos, por um motivo ou outro, suspeitos de algum crime, posto que só devemos justificativas e explicações para quem de direito, a saber: o publico de alta-voltagem coletiva, representado pela sociedade civil organizada, pelos pobres, pelas pessoas mais simples; pelos sem mídia, enfim.
E como todo oligopólio-monopolizador é, em sua própria natureza, criminoso, e só se tornou oligopólio-monopolizador à custa de muito crime, indiferença, contradições, aberrações, traições, omissões e roubos, temos sempre muitas perguntas questionadoras para fazer, nesse sentido, às tevês abertas privadas.
O ideal, para que tenhamos mais êxito nessa estratégia de responder perguntas com perguntas, é que estejamos preparados, o que só é possível se conhecemos as suas histórias, a fim de que possamos conservar um repertório de perguntas questionadoras de modo que estejamos prontos a lançá-las, como respostas, a qualquer repórter das tevês abertas, sempre que nos fizerem alguma pergunta – principalmente se ocupamos cargos públicos legitimados pelo supracitado público de alta-voltagem coletiva.
4.
Procure fazer-se tão ou mais aberto que as tevês abertasO oligopólio monopolizador assim age, de forma compacta, porque sabe que é a maioria que interessa, porque sabe que as minorias não mudam ou alteram nada. Todo poder é tanto mais poder quanto mais transforma seus interesses em clichês universais.
Achar, portanto, que somos rebeldes porque aprontamos na internet, porque temos uma rádio pirata, ou comunitária, legalizada ou não; porque dizemos tudo que pensamos no interior de uma universidade pública, porque somos de esquerda, enfim, por qualquer razão, é importante, mas não é suficiente se não concentramos os nossos objetivos na produção de lugares comuns universais.
Para tanto, é fundamental que lutemos para comunicar com a comunidade planetária, e não apenas a do nosso bairro, da nossa tribo, ou entre iguais.
5.
Tenhamos tanto ou mais disposição e alegria para seduzir e criar fogos e artifícios ilusionistas quanto as tevês abertas oligopolistas monopólicas têmA propósito, além, é claro, do poder bélico, o oligopólio monopolizador também detém poder simbólico de produzir ilusões, de seduzir os mais diversos segmentos sociais. Não vamos ir muito longe com palavras de ordem carrancudas. Somos, como todo vivente, seres de ilusão e sedução. As tevês abertas oligopolistas sabem disso, por isso são tão eficientes, por isso gostamos tanto de vê-las.
A luta pela justiça é também uma luta pela democracia da sedução e da ilusão, pelo direito de pecar, o que só é possível se iludimos e somos iludidos, se seduzimos e somos seduzidos por tudo que as tevês abertas desprezam, ignoram, vilipendiam, desqualificam, não representam.
O mundo é infinitamente maior que as 14, 20, 29, 40 – seja lá quantas forem – polegadas das tevês abertas oligopolistas monopólicas. Temos que trabalhar dia e noite para a produção de uma espécie de biodiversidade de sedução e ilusão.
Só assim habitaremos este mundo sem destruí-lo e respeitando os outros seres nele existentes, quando nos iludirmos e seduzirmos a todos, e não apenas os iguais de classe, de etnia, de identidade cultural, de credo religioso, de gênero, de espécie.
6.
Todo esforço rebelde deve ser orientado para os sem mídiaSe não quisermos que nossa imaginação utópica e nosso cinismo ético degenerem em niilismo de reprodução das mesmas lógicas impostas pelos oligopólios monopolistas, é crucial que tenhamos clareza e coragem para entender que seguir os pontos dessa cartilha só produzirá efeito revolucionário, de produção de justiças étnicas, econômicas, epistemológicas, sexuais, culturais, se, e somente se, os experimentarmos em nome do nome comum; em nome dos sem mídia, sem terra, sem casa própria, sem afeto, sem aura, sem Deus e Diabo.
Em nome dos órfãos que somos.
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Professor de Teoria da Literatura, UFES, Vitória, ES