Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O silêncio da TV Globo

No mês do segundo aniversário de morte do jornalista Tim Lopes, o programa Direito em Debate, que vai ao ar ao vivo às quintas-feiras, às 21h, na TV Educativa do Rio de Janeiro, abriu espaço no último dia 17/6 para analisar os desdobramentos do caso Tim Lopes.

Abordando o tema ‘A responsabilidade do empregador pelos danos causados ao empregado durante o trabalho’, o programa contou com a participação do procurador do Trabalho Wilson Prudente – que preside o procedimento preparatório de inquérito que poderá vir a responsabilizar a TV Globo por não ter dado segurança necessária ao repórter –, do jornalista Mário Augusto Jakobskind, autor do livro Dossiê Tim Lopes – Fantástico Ibope, além dos advogados Angelito Porto Côrrea de Mello Filho e André Martins.

Embora não tenha se limitado a tratar apenas do caso Tim Lopes (falou-se de segurança no trabalho de várias profissões, tais como eletricistas, carteiros, operários da construção civil, empregados domésticos etc), o programa possibilitou uma oportunidade única de se debater na televisão questões, levantadas pelo livro, que demonstram como a TV Globo monopolizou a informação e conduziu como quis a cobertura do trágico episódio, não sofrendo qualquer questionamento crítico por parte dos demais órgãos da mídia.

Versão contestada

Pôde-se saber, por exemplo, que a ampla versão divulgada pela emissora – e que dois anos depois é repetida em todo o país toda vez que se faz referência ao caso –, de que Tim estava realizando uma reportagem sobre baile funk, foi contestada no relatório policial, aquele mesmo do qual o Jornal Nacional pinçou a frase de que Tim Lopes, ‘no afã de efetuar melhores imagens dos traficantes, se colocou muito perto do perigo, não vislumbrando a diferença da emoção para a razão, fato que ocasionou sua detenção e morte’.

O artifício de edição destinou-se a chocar a opinião pública, colocando-a contra o inspetor Daniel Gomes, de modo a tirar o foco sobre o restante do relatório, que demonstrava claramente a responsabilidade da Globo na morte do seu empregado.

E mais: a emissora direcionou uma campanha – amplamente abraçada pela grande imprensa – de desmoralização do inspetor, além de fazer uma enorme pressão junto ao comando da campanha petista em Brasília (era ano de eleições presidenciais), cobrando providências da governadora Benedita da Silva, segundo relato do jornal Extra (9/8/02), de tal forma que, algumas horas depois, no Jornal da Globo, era anunciada a demissão do inspetor e do delegado responsáveis pelo inquérito.

Não satisfeita, a TV Globo pressionou, no que foi acompanhada pela grande imprensa, para que se mudasse o relatório, chegando a governadora Benedita a anunciar que determinara a devolução do documento. No entanto, o Ministério Público, autor da ação penal e o único que poderia questionar a qualidade do trabalho apresentado, ofereceu denúncia, dois dias depois, dando início ao processo criminal, com base no relatório, considerando que havia provas técnicas suficientes, junto com confissões, para denunciar os indiciados.

Quem da imprensa se deu ao trabalho de ler o relatório e não embarcar na versão defensiva da Globo?

Lá estava escrito, por exemplo, que ‘a real presença de Tim Lopes no local se justificava a filmar o tráfico de drogas e o seu forte armamento e não o baile funk como foi propagado’. E ainda que, ‘com o primeiro trabalho denominado ‘Feira das Drogas’, Tim Lopes, sendo agraciado, tornou sua imagem pública’; ou seja, ao exibir sua imagem em todos os seus telejornais como ganhador do primeiro Prêmio Esso de Telejornalismo, a Globo tirou-lhe o anonimato, iniciando assim uma sucessão de erros que culminou na morte do repórter na Vila Cruzeiro, exatamente ao lado da Favela da Grota, onde ocorria a tal feira.

Falta de cooperação

Outro item do relatório que não interessava à Globo divulgar, e que passou despercebido pelo restante da imprensa, referia-se ao material apresentado pela Rede Globo, que ‘a princípio em nada ajudou às investigações’. Talvez fossem mais úteis se a emissora tivesse – como seria o correto – enviado imediatamente à polícia o celular, a agenda telefônica e o caderno de anotações de Tim – que estavam no carro, foram entregues na redação pelo motorista no início da madrugada do dia 3/6/02, e ficaram rolando pela Globo durante três semanas, só tendo a polícia tomado conhecimento deles durante o depoimento da viúva, Alessandra Wagner, quando então os requisitou.

O relatório que deixou a Globo em polvorosa registrava ainda que estava ‘a cargo do trabalho pericial na memória do telefone celular de Tim Lopes a tentativa de se identificar a real pessoa que servia de guia ao repórter no interior da Vila Cruzeiro, pessoa esta que poderá esclarecer o real motivo da ousada reportagem’. Uma imprensa mais atenta estranharia que, no início de agosto de 2002, a polícia ainda não soubesse (e não sabe até hoje) quem era essa suposta fonte da matéria que, desde o início de junho, já estava sob proteção da TV Globo. Até porque, segundo relato do chefe de reportagem, Marcelo Moreira, no processo 2002.001.072521-3 (que não corre em segredo de justiça, portanto é público) prestado ao juízo do I Tribunal do Júri, ‘tal informante teria sido retirado da favela pela Rede Globo’.

Por que até hoje essa pessoa – que, depois do crime, deixou de ser fonte e passou a ser testemunha – está sob proteção da emissora? Que autoridade a Globo acha que tem para se colocar acima do Estado? E as autoridades – polícia, Ministério Público –, onde estão para enfrentar esta prepotência da emissora e colocá-la em seu devido lugar, de interessada em esclarecer um crime? Até hoje não se sabe com quem Tim conversou pelo celular nos dias que antecederam sua morte…

Exposição ao perigo

Outro ponto bastante discutido no programa Direito em Debate foi a falta de um esquema de proteção e retaguarda ao repórter para a realização da matéria, que resultou numa exposição a perigo (artigo 132 do Código Penal) do jornalista por parte do seu empregador. Foi a primeira vez que a emissora fez uma reportagem com câmera escondida em que alguém da comunidade sabia da presença do repórter. Só isso já seria suficiente para que maiores cuidados fossem tomados.

Sem falar na omissão de socorro, caracterizada pela demora da TV Globo em acionar a polícia. O chefe de reportagem, Marcelo Moreira, tentando tranqüilizar a mulher de Tim, Alessandra Wagner, disse-lhe que, se até o término do primeiro jogo do Brasil na Copa, por volta das 8h daquele dia 3 de junho, o repórter não aparecesse, avisariam a polícia. Isso depois de ela já ter contatado várias vezes durante a madrugada a plantonista Virgínia Coelho. Descaso maior, impossível.

Descaso e omissão como os que já haviam vitimado, em outubro de 2001, sete meses antes, a jornalista Cristina Guimarães, outro episódio levantado no programa Direito em Debate. Autora da reportagem ‘Feira das Drogas’, na Rocinha e na Mangueira – que, juntamente com a ‘Feira das Drogas’ na Vila Cruzeiro, concorreu e deu à TV Globo o Prêmio Esso de Telejornalismo – , Cristina teve de se desligar da emissora e vive atualmente escondida, porque a empresa não lhe ofereceu proteção quando foi ameaçada de morte.

Perguntas sem respostas

Todas estas questões podem ter soado como novidade para os telespectadores do Direito em Debate, mas não para a TV Globo. Elas vem sendo colocadas desde o início, por Alessandra, junto à chefia de Tim. Ano passado, por ocasião das superficiais homenagens pela passagem do primeiro ano de morte do repórter, fiz os mesmos questionamentos – em artigos que circularam quase que exclusivamente na internet –, tendo seis jornalistas da emissora divulgado nota de repúdio às minhas perguntas: Virgínia Coelho, Márcia Monteiro, Marcelo Moreira, César Seabra, Ali Kamel e Carlos Henrique Schroder. Até hoje nenhum deles conseguiu me responder. Optaram pelo silêncio. Talvez porque não tenham mesmo respostas para todas estas questões que não querem calar.

A mídia, por sua vez, ressalvadas raríssimas exceções, não se interessou em divulgar os artigos, preferindo polemizar sobre a fraude do repórter Jayson Blair no New York Times. Afinal, é mais fácil falar do que está distante!

Também no Direito em Debate informou-se sobre a existência de ‘uma fita de um turista de Cuiabá’ que, segundo Ali Kamel, diretor-executivo de jornalismo da TV Globo, em depoimento no programa Observatório da Imprensa, na TV Educativa (11/6/02), estaria no tal baile funk na Vila Cruzeiro e ‘presenciou o momento em que Tim Lopes foi preso’. O fato está relatado no livro Dossiê Tim Lopes, não tendo sido desmentido até o momento. A fita até hoje não apareceu, e muito menos o tal turista, que, ainda de acordo com o mesmo Ali Kamel, ‘no dia seguinte, dada a repercussão, já está em Cuiabá de novo’.

Ou seja, poucos dias depois do desaparecimento do seu repórter, a TV Globo diz que tem uma fita e uma testemunha (a segunda) e não as apresenta à polícia? De que tem medo a TV Globo? Por que a falta de interesse em colaborar com as investigações?

O jornalista Ali Kamel, agora que já é titular de um espaço quinzenal em O Globo – depois de inúmeros artigos com o recorrente assunto das quotas raciais nas universidades e três páginas inteiras sobre a história do islamismo, Osama bin Laden e a al-Qaeda –, bem que poderia aproveitar para esclarecer todas essas questões, em especial a do turista, fazendo o verdadeiro jornalismo que é bem informar a sociedade.

Imprensa desafiada

Foi também Ali Kamel, conforme lembrado no Direito em Debate, que lançou o desafio aos colegas de Tim Lopes, em plena Cinelândia, no dia 7/6/02, no primeiro dos muitos atos que o Sindicato dos Jornalistas do Rio e a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) iriam realizar pela cidade, servindo de biombo para ajudar a emissora a desviar a atenção de sua responsabilidade no caso. Ali Kamel conclamou os jornalistas do Rio a terminarem a matéria sobre o baile funk que Tim não conseguiu terminar. Tudo retórica, palavras que o vento levou naquela praça pública… Nenhum jornalista – nem os da Globo, comandados por Ali Kamel – se dispôs a fazê-lo. Por quê? Talvez porque não existisse o tal baile funk com cenas de sexo explícito envolvendo menores. Talvez porque a matéria fosse outra…

No site (www.impunidad.com/cases/timlopesP.html), que abriga relatório da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) sobre o caso, o jornalista Marcelo Beraba, atual ombudsman da Folha de S. Paulo, lançou desafio semelhante, propondo que a imprensa carioca se unisse para dar continuidade ao trabalho iniciado por Tim: ‘Temos que ir até o fim na morte do Tim e no que ele estava investigando’.

Aliás, Marcelo Beraba é fundador e primeiro presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), criada justamente a partir do assassinato de Tim para trocar informações, experiências e dicas sobre reportagens, principalmente investigativas. A idéia de sua fundação surgiu no seminário ‘Jornalismo Investigativo: ética, técnicas e perigos’, organizado pelo Centro Knight de Jornalismo nas Américas, da Universidade do Texas, em cuja direção está o jornalista Rosental Calmon Alves.

Desde então, a Abraji, que reúne um grupo de jornalistas brasileiros da área investigativa, realizou somente congressos e seminários (ou seja, muito blablablá), de forma a colaborar para o aperfeiçoamento dos jornalistas que trabalham com investigações. Gostaria de acreditar que a Abraji pode prestar melhor serviço à sociedade brasileira em relação ao caso do Tim.

Pelo visto, o desafio agora é bem maior. O de realizar, em homenagem ao profissional sério e ético que ele foi, o verdadeiro jornalismo investigativo do caso Tim Lopes. Que órgão de imprensa ou instituição jornalística se habilitará a enfrentar esta pauta ainda não realizada?

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Jornalista e cunhada de Tim Lopes.