A fotografia documental de guerra é um interessante ponto de partida para a análise tanto do desenvolvimento tecnológico do meio quanto do modo pelos quais, em diversos períodos, os conflitos foram representados. Por documental entende-se aquilo que não foi alterado; que comprova que algo ‘realmente aconteceu’. E as fotografias, embora representações da realidade, revelam ao mundo os fatos acontecidos e eternizam o passado em um instante eterno.
As primeiras fotografias de campos de batalha foram aquelas realizadas pelo fotógrafo Mathew Brady e sua equipe, durante a Guerra da Secessão norte-americana. As câmeras do século 19 não eram portáteis. O tempo necessário de exposição era extenso, o que não permitia a fixação de um objeto em movimento. Um ambiente naturalmente bem iluminado era imprescindível, já que o flash só apareceria alguns anos depois. Brady utilizava o método do calódio úmido, inventado por Frederick Scott Archer no ano de 1851. Consistia no revestimento de uma placa de vidro com uma solução de nitrato de celulose e sua sensibilização com o nitrato de prata. A chapa de vidro era umedecida com a solução antes de ser exposta e depois revelada com pirogasol, ou com um sal ferroso. A mobilidade do fotógrafo era complicada. Havia a necessidade de utilizar algum meio de transporte de tamanho considerável – geralmente uma carroça-estúdio – para viajar com todo o material fotográfico necessário. Em uma zona de guerra, onde todos os sistemas de transportes estão comprometidos com a logística bélica, a reposição do material era difícil e demandava tempo. Mesmo assim, Brady conseguiu obter excelentes resultados. Ali estão representados muitos homens, fixados na eternidade do tempo. Brady fotografou corpos estendidos em campinas onde, horas antes, confederados e ianques haviam se matado em uma guerra fratricida. Um jovem jazendo em uma trincheira, ao lado de sua arma. Sua cabeça, ensangüentada, pende para o lado, sem vida. E neste triste caso, ironicamente o tempo de exposição não foi um problema. Os mortos já não se mexem. O cineasta John Huston, já falecido, usou as imagens de Brady como base histórica e iconográfica para a direção de arte de seu polêmico filme A Glória de um Covarde. Mas isso é uma outra – e interessante – história.
Imagens polêmicas e memoráveis
Também temos trincheiras em um emaranhado de sulcos sinuosos e com uma longa fila de homens mortos nas fotografias da Primeira Guerra mundial. As câmeras haviam se tornado mais portáteis. A fotografia já havia se colocado ao alcance de quase todos. A Kodak de George Eastman havia disponibilizado em 1890 um equipamento mais barato que, além disso, dispensava uma manipulação mais complexa, como a necessária com as placas de vidro. Curiosamente, este aparelho, que já utilizava filmes em película, foi denominado de câmera-detetive, por serem mais leves, de tamanho menor e simples operação, e irem a todos os lugares. O tempo de exposição também havia sofrido uma queda considerável. Com isso, foi possível perceber o movimento dos combatentes, as unidades marchando, as carroças com suprimentos e olhar um jovem escrevendo uma carta que bem pode ter sido a última de sua vida.
Durante a Segunda Grande Guerra, os fotógrafos usavam uniforme militar. Apesar de câmeras menores e mais ágeis, havia fortes restrições quanto à disponibilidade de material, que só poderia ser publicado mediante autorização militar. Há poucos mortos nas representações feitas durante os conflitos de uma guerra que ficou em nosso imaginário – no sentido de imagem – como a mais sanguinolenta de todas as histórias. Havia a proibição, por exemplo, de publicar fotos em jornais norte-americanos que contivessem seus soldados mortos. As fotos, geralmente, são heróicas. Insinuam ação perigosa e homens destemidos. Desembarques, navios. O dia que ficou conhecido como o ‘da infâmia’ foi documentado pelos fotógrafos que estavam na base de Pearl Harbour. O Dia-D está ainda entre nós, documentado pelas lentes do húngaro Andrei Friedmann, naturalizado cidadão norte-americano sob a alcunha de Robert Capa. Um outro cineasta usou essas imagens, de maneira semelhante a Huston, para a produção de seu filme O resgate do soldado Ryan. Seu nome é Steven Spielberg. Capa já era um experiente correspondente de conflitos. Havia feito a cobertura da Guerra Civil espanhola e produzido algumas das imagens mais polêmicas e memoráveis desse período.
Mortos aos montes
A Segunda Grande Guerra é o tempo das fotografias icônicas. Há a foto de Joe Rosenthal e dos jovens que hasteiam a bandeira norte-americana sobre o monte Suribachi, na ilha de Iwo Jima; a célebre foto do general Douglas MacArthur, responsável pela campanha norte-americana no Pacífico, tirada por Carl Mydans – outro pioneiro do fotojornalismo. Nela, o militar parece caminhar sobre as águas. A assinatura da rendição, a bomba atômica explodindo. As fotografias desta guerra foram basicamente norte-americanas. Foram eles que escreveram essa parte da história.
A Guerra da Coréia trouxe um novo elemento na estética da cobertura fotográfica de guerras. Talvez o nome mais significativo desse período seja o de David Duncan Douglas. As câmeras estavam, então, absolutamente portáteis e mais sensíveis à luz. Os filmes de rolo permitiam fotos seqüenciais e não havia mais a necessidade de ensaiar uma foto ou contar com a sorte. A câmera poderia ser disparada. Douglas não captava os soldados em pose, mas em close e no cansaço da guerra. Seus rostos não são heróicos, mas sujos e exaustos. A guerra de Douglas não tem heróis. Os soldados cumpriam uma função que lhes era penosa e ingrata. Correm abaixados pelo matagal. Lutam em condições desumanas. Duncan trouxe gravidade à guerra. Revelou a sua face negra para os parentes que aguardavam os seus filhos. Há mortos aos montes. Inimigos abatidos. Mulheres em sofrimento. Resgates. Prisioneiros.
Um toque de nonsense
E então veio a guerra do Vietnã, onde a fotografia foi capaz de produzir um impacto tão grande que alterou os ânimos populares e o rumo do próprio conflito. As fotos ganharam as cores verdes das florestas da região e estamparam rostos de garotos perdidos; aldeias sendo consumidas pelo fogo do napalm; um jovem que parece retirado de um outro filme, de Francis Ford Coppola, toca, entristecido, seu instrumento musical. ‘Lar é aonde você cava’, é o que está escrito em um pequeno cartaz onde três soldados comem, descansam e escrevem cartas. Um garoto vietcong é rendido e parece não ter mais do que doze anos e uma menina corre nua com o frágil corpo coberto por queimaduras. Os fotógrafos são Dana Stone, Don Macculin, David Burnett, Tim Page, (ver aqui), Larry Burrows, Henri Huet (ver aqui), Robert Ellison, Catherine Leroy e Gilles Caron (ver aqui) Esse último, um expoente da técnica francesa de fotografia na década de 60 e que alterou a estética da representação. Caron tornou-se fotógrafo aos 25 anos de idade e morreu no Camboja em 1970, em território controlado pelo grupo de extrema-esquerda Khmer Vermelho. Estava, então, com 30 anos.
Esta geração de jovens franceses, que havia vivido as manifestações de maio de 68, imprimiu ação às fotografias. Tudo era movimento. A guerra era um constante correr para matar e não ser morto. As câmeras ultra-portáteis eram uma extensão do corpo do fotógrafo. Os palcos desta nova safra de fotografias foram a guerra civil no Líbano e as guerras de libertação nos países africanos. O que era então representado em nada lembrava as heróicas campanhas da Segunda Grande Guerra. Nada parece ter um propósito claro e objetivo e a impressão da seqüência rápida dos acontecimentos é reforçada pelas imagens sangrentas que se sucedem, uma após a outra, nas páginas de todos os jornais diários. Há um toque de nonsense.
História do mundo
A credibilidade do fotojornalismo advém, historicamente, da coragem de seus agentes e da pressuposição de que não houve manipulação técnica no original, além do indefectível recorte e enquadramento ideológico de quem opera o equipamento. E, então, na década de 90, surge o novo padrão digital de representar o mundo e com ele uma nova questão ética em ambientes nos quais as fotos podem facilmente ser manipuladas em sua essência, nas seqüências de zeros e uns que a perfazem. Em 2006, o primeiro escândalo assumido. A agência internacional Reuters publica e distribui a foto de um bombardeio israelense, na guerra entre Israel e o Hezbollah no sul do Líbano, na qual o fotógrafo em questão havia aumentado a quantidade de fumaça. Na época, a agência prometeu uma maior fiscalização no seu material disponibilizado.
A história do fotojornalismo, apesar de todas as censuras sofridas, do etnocentrismo e das inclinações ideológicas, é maior do que os seus percalços. Foi o modo que o mundo encontrou para ser apreendido e representado. As imagens que fizeram a história do mundo continuam a fazer presentes aqueles que já não estão entre nós há muito tempo. Essa é a sua função e o que as imagens têm a ensinar. Que o vínculo direto que ela mantém com a coisa representada não seja quebrado pela ausência de confiança naqueles que a produzem.
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Estudante de Jornalismo da Universidade Fumec, Belo Horizonte, MG