Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Carta às sumidades do jornalismo

Acompanho diariamente o noticiário do jornal O Globo e de seu sítio virtual. Não pude evitar, depois de artigo publicado por Zuenir Ventura em sua coluna semanal de terça-feira, 1º de agosto, questionar o colunista sobre a posição do segundo maior jornal do país em relação à política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro. Não obtive sucesso na resposta, e gostaria de compartilhar com vocês tal carta, que se segue abaixo.

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Zuenir Ventura,

Dentre os jornalistas que atuam em O Globo, certamente o de mais bagagem a falar da ‘cidade partida’ que é o Rio de Janeiro é o senhor. Como estudante de jornalismo e interessado no assunto, tenho meus questionamentos quanto a esta partilha da cidade, já que os limites que separam morro e asfalto, classe média e classe baixa, patrões e empregados, importados e falsificados são bastante tênues, às vezes invisíveis ou inexistentes.

Longe de dizer serem os anos anteriores melhores, não vivíamos uma guerra urbana, mas sim uma guerra particular, tão bem retratada por João Moreira Salles e Kátia Lund no documentário Notícias de Uma Guerra Particular. Hoje, o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral Filho, e seu secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, declaram guerra aos traficantes num cenário onde vivem milhões de moradores, como eu e você, que trabalham e levam suas vidas da maneira que podem.

As fotografias do próprio acervo da Agência Globo, tomadas nas invasões ao Complexo do Alemão, além de mostrar o sanguinário conflito, expõem os moradores, pois estes, ao contrário do que pensa quem nunca subiu uma favela, não podem deixar de ir ao colégio, ao trabalho, à igreja. A polícia invadiu seus bairros com o Caveirão, impondo o terror, tanto que aumentaram os atendimentos médicos de casos de pressão alta no único hospital da Maré.

Este é o ‘remédio amargo’ receitado por Beltrame, que só a população favelada tem que engolir. Eu moro no asfalto, sou de classe média, mas não consigo aplaudir estas medidas. Porém os jornalões, como O Globo, onde o senhor trabalha, vêem a receita como única solução. Cegamente, não apuram os casos de extermínio a sangue frio cometidos por policiais, levantando a bandeira da máxima ‘bandido bom é bandido morto’. Não vivi os tempos da ditadura, mas o segundo jornal mais importante do país parece carregar este resquício dos militares.

Ontem, um jovem morador da região da Favela da Cotia, estudante, trabalhador e negro, foi assassinado cruelmente por dois supostos policiais à paisana. Vamos supor que não sejam policiais, porém não é este o caso que quero abordar. Imaginemos que o fato ocorresse com um jovem morador do Leblon, que conversava na orla com os amigos, bebia uma água de coco. Quantas passeatas não iriam ser marcadas? Quantas faixas de protesto não iriam ser ostentadas? Quantos lutos não iriam ser vestidos? Quantas reportagens não iriam ser mancheteadas?

A fala amargurada e consciente do pai da vítima, que vi na reportagem matutina da TV Record, apagava-me as dúvidas se se tratava de um bandido. Vendo as imagens, tive certeza de que era cidadão honesto que, como eu, trabalhava para pagar seus estudos. Digamos que fosse um fora-da-lei: seria a pena capital a melhor forma de se fazer justiça?

O assassinato do jovem William Alves Barbosa, de 26 anos, causou protesto. Mas as revoltas de um povo sem voz geram conseqüências mais evidentes, alaridos, alardes. Sim, houve excessos, mas não é preciso ser nenhum sociólogo ou antropólogo para entender as razões que os levaram a incendiar ônibus. No entanto, as atenções dos jornais, inclusive do Expresso, jornal mais popular das organizações, voltaram-se para os ‘atos de vandalismo’.

O controle do ‘bom-mocismo social’ também é papel da mídia?

Zuenir, sua coluna desta terça-feira reforça a energia eleitoreira que Sérgio Cabral e seu partidão, o PMDB, terão nos próximos pleitos. Nada muda para os moradores de favelas do Rio ou a dura realidade dos habitantes da abandonada Baixada Fluminense. Faz-se uma ‘limpeza urbana’, assim como fez César Maia, ao expulsar os moradores de rua das vias de Copacabana. Gente que não têm culpa por não possuir uma casa para morar.

Recordo-me de uma reportagem do jornal Extra, segundo maior periódico vendido do país, sobre o preço dos aluguéis na Rocinha. Diz a repórter que chega a atingir mais de R$ 600 o valor de um aluguel e que, com a quantia, poder-se-ia solicitar um empréstimo da Caixa a quitar uma casa própria. Parece simples, mas não é.

A pergunta básica, banal, que qualquer jornalista consciente faria, é: mudar para onde? Por que mais de 50 mil pessoas moram na Rocinha? É perto de tudo. Comodismo? Negativo. É necessidade. Quem mora na Rocinha são as faxineiras das madames da Zona Sul e Barra da Tijuca, os operários que trabalham nos empreendimentos imobiliários das grandes empreiteiras, os serventes, os garçons etc. Será que a repórter não viu esse detalhe? E por que a Zona Sul seria área exclusiva a turistas e gente da classe média para cima?

Nos enunciados intrínsecos nos textos dos periódicos das Organizações Globo transparecem estas visões distorcidas da classe média. Sinceramente, pulula aos meus olhos um inconformismo paradoxal de quem, ao mesmo tempo em que faz passeatas contra a violência na orla de Copacabana, prega a invasão nas favelas pela polícia, dentro do Caveirão, atirando para tudo que é lado.

O que está acontecendo no segundo maior jornal do país? Você, como referência do jornalismo brasileiro e colunista deste periódico, poderia esclarecer a um humilde estudante de Comunicação, que tanto pena para entender as mazelas sociais e os seus reflexos na mídia?

Atenciosamente, Pedro Henrique Soares

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Estudante de Jornalismo da Universidade Federal Fluminense