Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A nova rede se enreda

O processo de construção da nova rede pública de televisão – batizada TV Lula pelos adversários e autodesignada, provisoriamente ou não, de TV Brasil – vai se convertendo em mais um exemplo cristalino de que as boas intenções nem sempre conduzem a bons resultados. Apoiado por todos os segmentos da TV pública e por setores importantes da sociedade, em particular os que lutam pela democratização da mídia, o projeto saiu bastante fortalecido do Fórum Nacional de TVs Públicas, o grande evento de reorganização desse campo, que ocorreu em maio, em Brasília. Era tido como a ponta de lança de uma nova estrutura para toda a televisão de utilidade pública no país. Três meses depois, entretanto, os erros de condução no processo estão erodindo a base de apoio da nova rede e podem comprometer a sua viabilização.


Na ‘Carta de Brasília‘ resultante daquele Fórum, documento que consolidou os princípios, finalidades e demandas da televisão pública brasileira, o que se propunha era uma ampla reformulação de todos os setores da TV não-comercial, tendo por eixos a introdução da TV digital, novo sistema de transmissão com estréia marcada para dezembro deste ano, em São Paulo, e a decisão do presidente Lula de dotar o país de uma rede pública de TV forte e competitiva, capaz de rivalizar com as redes comerciais na sedução dos telespectadores.


A tecnologia digital propiciaria as condições técnicas para acomodar novos canais e novos serviços, a nova rede carrearia múltiplos recursos de investimento, e o ambiente favorável permitiria, ao mesmo tempo, consertar o que está errado na televisão pública existente e projetar com precisão o que se quer para o futuro.


Emissoras comerciais


As entidades representativas do campo público da TV e da sociedade civil propunham, especialmente, que a TV digital concentrasse todos os canais públicos numa mesma faixa do espectro e que a sua transmissão fosse feita conjuntamente, sob controle de um ente público, o chamado ‘operador de rede’.


Isso permitira a melhor utilização possível da capacidade do espectro destinada aos canais públicos, que teriam, a cada instante, mais ou menos ‘banda’ disponível para os serviços que oferecessem, dependendo de suas necessidades (muita banda para transmissão de filmes em alta definição, menos banda para a transmissão de debates em definição padrão, por exemplo). Permitiria, sobretudo, maior racionalização no investimento público em transmissores, antenas, retransmissores e sistemas de gerenciamento. O governo federal poria o grosso do dinheiro, os canais públicos complementariam na medida de suas possibilidades, o operador de rede controlaria o tráfego das imagens e todas as demandas seriam compatibilizadas e atendidas.


Para isso funcionar, seriam necessárias também algumas medidas regulatórias, a começar pelas outorgas para que os canais públicos hoje existentes apenas na TV a cabo – os canais legislativos, comunitários e universitários – possam operar em TV digital aberta. A regulamentação da publicidade comercial em televisão pública, assim como a implementação do dispositivo constitucional que obriga a TV a privilegiar a educação e a cultura, a produção independente, o cinema brasileiro e a programação regional, seriam outros aspectos legais dessa ampla reforma de todo o campo público da televisão. Impulsionados pelo governo federal, teriam sustentação política no Congresso e poderiam vencer o obstinado lobby das emissoras comerciais, sempre no combate a toda e qualquer medida regulatória em seu mercado, ainda que as afete apenas indiretamente.


‘Dia que virá’


Nada disso, entretanto, foi acolhido pelo grupo interministerial que implementa o projeto da rede pública, coordenado pela Secretaria de Comunicação Social. Fechado em si mesmo desde o final do Fórum de maio, dialogando pouco com os setores que o apóiam, o grupo vem se concentrando exclusivamente na montagem da TV Brasil, em molde de rede anacrônico, autoritário e irrealista. Não considerou a sério a proposta do operador de rede público. Sequer defende o agrupamento dos canais no espectro. E ainda resiste à implementação imediata, simultânea à da TV Brasil, dos outros canais públicos criados pelo decreto presidencial 5820/06, que instituiu a TV digital: os canais da educação, da cultura e da cidadania. São justamente esses canais, com a funcionalidade da ‘multiprogramação’ (várias programações diferentes transmitidas por um mesmo canal), que podem abrigar as emissoras públicas hoje confinadas na TV a cabo e atender as demandas reprimidas de conteúdo independente e regional.


Ou seja: o grupo interministerial está cuidando da ‘sua’ TV e deixando todo o resto para depois, para um futuro absolutamente incerto.


Quem tem um mínimo de vivência nas questões de política de comunicações sabe que as chances de mudança nessa área são raras, e que condições institucionais como as propiciadas pelo Fórum de maio são irrepetíveis. Portanto, as mudanças desejadas na televisão pública deveriam ser feitas já, agora, neste momento, antes que estréie a TV digital e se feche a janela de oportunidade. Mas o grupo interministerial parece acreditar no mitológico ‘dia que virá’, o amanhã radioso em que todas as utopias se materializarão por si mesmas, como se não fosse necessário construí-las desde o presente. E como se não houvesse sucessão de governo no Brasil, não houvesse inimigos da TV pública esperando chegar ao poder para prejudicá-la.


Interesse social


A TV Brasil está se organizando como uma rede de TV em formato convencional, na qual uma emissora central, resultante da fusão da Radiobrás com a TVE do Rio de Janeiro, apresenta-se como ‘cabeça-de-rede’, isto é, como grande provedora de programação a outras emissoras, possíveis afiliadas. Oferece seu conteúdo em troca da distribuição de seu sinal, na área de alcance da afiliada. Mantém uma estrutura vertical de organização, produzindo a maioria dos programas que exibirá. De lambuja, oferece alguns espaços aos programas regionais e independentes em sua grade de programação. Recusa, entretanto, a idéia de uma rede horizontal, organizada sem hierarquias entre as emissoras aderentes, com múltiplas formas de compartilhamento de programação, estrutura e serviços.


A TV Brasil organiza-se, em resumo, como a Globo e as demais redes comerciais, cujo formato é a fonte de todos os problemas de centralismo, baixa diversidade e marginalização cultural que a televisão pública combate. Formato anacrônico e autoritário, repita-se. E também irrealista, porque:


1. presume que as emissoras públicas regionais, sob controle de interesses políticos paroquiais, correrão de braços abertos a reforçar uma estrutura federal de comunicação, o que só beneficiaria o governo central;


2. só seriam admitidas na rede emissoras regionais que adotassem o modelo público, livrando-se da ingerência dos governos que as mantêm, o que demandaria um ‘desprendimento’ que esses governos certamente não têm.


Sem dúvida, o maior avanço no projeto da TV Brasil reside na disposição do grupo interministerial em promover uma relativa ‘desestatização’ da nova rede, criando-a sob o modelo de fundação pública de direito privado – o que a manteria, teoricamente, independente do governo. Essa é uma velha demanda política de todo o campo público da televisão: a de que os canais sejam utilizados para os interesses amplos da sociedade, não para conveniências de governantes. Ao estruturar-se como rede sob efetivo controle público, não-governamental, a exemplo da sempre festejada BBC britânica, a TV Brasil estaria livre de ser TV Lula, ou TV de qualquer futuro governante.


Mudanças necessárias


Ocorre que, mesmo nisso, o projeto da TV Brasil vai se equivocando. Delineia-se um modelo em que a emissora seria controlada por um Conselho de Gestão, composto por personalidades nomeadas pelo governo, em vez de representantes de entidades da sociedade civil, por elas indicados. Mesmo as personalidades não poderiam escolher livremente os seus sucessores, sendo substituídas por novos indicados do governo, quando concluíssem seus mandatos.


Os diretores da emissora, embora subordinados ao conselho, também seriam nomeados pelo governo. Ou seja: TV pública, ma non troppo. Na verdade, TV estatal em versão light, supostamente autônoma, mas de fato monitorada.


A medida provisória formalizando o projeto da TV Brasil será editada nas próximas semanas. Ainda há tempo para que a rota seja corrigida. O ministro Franklin Martins, que comanda o processo, tem a opção diante de si. Pode atirar fora o capital político acumulado em anos de lutas da televisão pública brasileira, que apóia a reforma do segmento, ou pode liderar as profundas mudanças necessárias ao reordenamento dessa área, como se espera dele.


Vamos torcer pelo bom senso.

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Jornalista, diretor de televisão e presidente da ABTU (Associação Brasileira de Televisão Universitária)