Enquanto no Brasil programas jornalísticos cobriram o assassinato de Marielle Franco com abordagens que utilizaram a morte da vereadora até para justificar a intervenção militar no Rio de Janeiro (a exemplo do que aconteceu no Fantástico do último domingo), os jornais europeus, sobretudo os franceses, optaram por indicar as relações políticas do ocorrido, bem como destacar as dezenas de manifestações suscitadas, uma delas realizada em Paris, no último sábado.
Dados biográficos sobre Marielle, destacando-a como “rosto da renovação da esquerda” (“visage du renouveau de la guache”), “garota das favelas cariocas” (“enfant des favelas cariocas”) e “negra carismática” (“femme noire charismatique”), juntaram-se às citações em relação à militância pelos direitos humanos numa “cidade em pleno caos, minada pela corrupção, arruinada e atormentada pela guerra do tráfico” (“une ville en plein chaos, minée par la corruption, ruinée et tourmentée par la guerre des gangs”), como se refere o Le Monde, o principal jornal francês.
Apesar de citar trechos de veículos da TV Globo, como o RJTV, o Le Monde deixa explícita a possibilidade de o assassinato se tratar de uma vingança policial (“vengeance policière” é o termo que o jornal traz em letras capitulares). Esse é, inclusive, o intertítulo da reportagem, que destacou ainda falas de Marielle se referindo à abordagem da Polícia Militar como um “batalhão da morte” (“bataillons de la mort”).
Produzindo um jornalismo menos preocupado com imparcialidade (como é que ainda se fala nisso?, deveríamos nos questionar), e mais com interpretações, a abordagem do Le Monde termina por mostrar que o “Brasil oferece, com esse assassinato, a imagem de uma nação em que as forças de ordem perderam todo o crédito” (“le Brésil offre, avec cet assassinat, l´image d´une nation où les forces de l´ordre ont perdu tout crédit”). Temer merece não mais que a última linha do texto, quando se diz que o presidente prometeu que os autores do crime serão punidos o mais rápido.
Na linha de uma argumentação em torno de evidências que, mais do que causado pelo caos no Rio de Janeiro, o assassinato seja político, os textos trouxeram dados sobre a violência contra negros no Brasil e lembraram que, antes de ser assassinada, a vereadora carioca participava de uma roda de discussão sobre mulheres negras. É o que ocorre, por exemplo, no Le Figaro, outro importante diário francês, que destacou ainda a força das redes sociais em organizar movimentos no Brasil. Além disso, apresentou dados sobre mortes de negros no País, definindo a situação como um genocídio (“le genocide noir”). Esse termo não deixa de ser inquietante, numa sociedade como a europeia, bastante xenófoba, e marcada por diversos episódios de declaração de morte às minorias.
Em outros países da Europa, o tratamento dedicado ao caso Marielle não foi diferente. Na Inglaterra, o The Guardian destacou a postura ativista da vereadora, apresentando indícios da motivação política do crime. Em Portugal, um apresentador de televisão do Canal Q usou imagens da Rede Globo para ironizar, dizendo que “das duas uma: ou foi uma execução política ou a conferência [da qual Marielle havia saído] foi daquelas chatas que qualquer coisa teria sido melhor”.
Além de produzir uma crítica bastante contundente à situação brasileira, a cobertura da morte de Marielle nos jornais franceses e europeus, de um modo geral, mostra uma regularidade nas aparições do País nos veículos do velho mundo. Em dois meses, três fatos mereceram ampla discussão nos jornais, ocupando espaços que vão de reportagens a editoriais: a cobertura do julgamento de Lula, o Carnaval — com destaque para os desfiles politizados deste ano — e agora o assassinato de Marielle. Nos três casos, denúncias muito contundentes de que nada vai bem no Brasil, nem mesmo a Justiça. Essa imagem tem sido tão forte, que, nas ruas, os franceses começam a abordar brasileiros substituindo as perguntas sobre Carnaval e praias por questionamentos sobre os rumos da política e da segurança. A antes corriqueira abordagem “de país do futebol e do Carnaval” vem, aos poucos, sendo substituída por “um país perigoso” e com “situação muito complicada”.
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Duílio Fabbri Júnior é jornalista, professor universitário e doutorando em Linguística pela UFSCar, em estágio de pesquisa na Universidade de Toulouse, na França. Professor na pós-graduação no Centro Universitário Senac-SP.
Fabiano Ormaneze é jornalista, professor universitário e doutorando em Linguística pela Unicamp, em estágio de pesquisa na Universidade Sorbonne Nouvelle, em Paris.