Marielle Franco concentrava todos os preconceitos numa pessoa só. Mulher, negra, nascida na favela da Maré, feminista, homossexual, mãe solteira de Luyara, ex-camelô e dançarina do grupo Funk Furacão 2000 que se tornou socióloga – vulgo “comunista” no dicionário bolsonarista – e vereadora crítica da violência da Polícia Militar nas comunidades cariocas.
Tanta insolência merecia quatro tiros na cabeça.
Na segunda-feira, 27/07, ela faria 41 anos. Uma hora depois do assassinato, as redes sociais de fake news disparavam dados biográficos maldosos e notícias desabonadoras sobre ela. Dois anos e quatro meses depois de sua morte, ainda não se sabe, ou finge-se que não se sabe, quem matou Marielle. Ela ganhou outra justificativa para ser morta outra vez: virou mito.
Negras, pretas e pardas só sobem de vida no Brasil por meio de cotas. Devem permanecer invisíveis ou serem mortas, às vezes pela própria mãe, como no romance Amada, da norte-americana negra e prêmio Nobel em 1993, Toni Morrison: a escrava fugitiva Sethe mata a própria filha para que não sofra o mesmo destino que ela teve.
Ainda não se inventou uma vacina contra racismo, doença que ataca do futebol às melhores escolas católicas do Brasil, e concentra nos alunos negros ou pardos 70% da evasão escolar antes de completar o ensino médio.
Marielle era o fenômeno. Não procurou negar seu casamento estável com Mônica Tereza Benício, como fez a ensaísta, escritora, polemista e ativista norte-americana Susan Sontag, que nunca admitiu publicamente seu casamento com a fotógrafa Annie Leibovitz. Famosa, culta, determinando as tendências culturais de sua geração, Susan era uma voz que gritava contra injustiças como fazia Marielle. Seja contra a interferência dos Estados Unidos na guerra do Vietnam ( Hanoi, 1968, Expressão Cultural), contra o descaso para a guerra dos Bálticos onde ela chamou a atenção do mundo em 1993 com a peça de Becket, Esperando Godot, em Sarajevo, ou a culpabilidade de seu próprio país no ataque das Torres Gêmeas no 11 de setembro de 2001.
Com toda exposição “para fora”, Susan não conseguiu se resolver “para dentro”, nem se livrar da dicotomia entre corpo e mente ou fugir da metáfora dos fatos de sua própria vida. Muitas vezes escapava da realidade que dissecou na vida dos outros, como revela a maravilhosa biografia de quase 700 páginas, prêmio Pulitzer deste ano, de Benjamin Moser (Sontag, Cia das Letras).
Susan não levou um tiro como Marielle aos 38 anos. Morreu de câncer em 2004, aos 71 anos, mas nem mesmo a mítica Susan escapou do destino invisível de muitas esposas. Moser aponta Susan como a verdadeira autora do primeiro livro de seu marido, Philip Rieff, em 1959, Freud: The Mind of the Moralist (Freud:A Mente do Moralista). Como muitas mulheres, a brilhante Susan foi obrigada a aceitar o anonimato na capa do livro de Philip para poder ficar com a guarda do filho David ao assinar o acordo do divórcio.
Quem foi assassinada aos 32 anos na praia dos Ossos, em Armação de Búzios, foi Ângela Diniz, em 1976. Destino inverso ao de Marielle, Ângela nasceu rica em Belo Horizonte e tornou-se a socialite mais bonita e desejada até conhecer o empresário e playboy Raul Fernando do Amaral Street. Na época, Doca Street era casado com a milionária Adelita Scarpa, com quem tinha um filho, mas não resistiu à “Pantera de Minas”.
Ângela teve o fim de muitas mulheres quando, cansada das cenas de ciúmes do atual namorado, resolveu expulsar o companheiro da casa onde pretendiam passar o réveillon na praia. Doca saiu, mas voltou. Ajoelhou-se, implorou a volta e Ângela aceitou com uma condição: “Se quiser ficar comigo vai ter de me dividir com homens e mulheres”. Naquela noite, em 30 de dezembro, Ângela morreu como Marielle com 4 tiros, três no rosto e um na nuca, disparados, “por amor”, por Doca.
Na época, o que mais chocou as feministas foi o resultado do julgamento conduzido, na defesa de Doca, por um criminalista brilhante, Evandro Lins e Silva. Quem cuidou da defesa foi o não menos brilhante Evaristo de Moraes Filho, derrotado pelo colega. Ângela foi a vilã, a “mulher da vida airada”, que teria desvirtuado o “bom rapaz” Doca do seu caminho, justamente transtornado por ver a mulher que amava seminua (de biquini) se relacionando indistintamente com homens e mulheres. O júri popular era formado por moradores locais do balneário, mulheres atordoadas pelo feitiço que turistas invasoras, como Ângela e antes Brigitte Bardot, em 1964, provocavam em seus homens. Ali, condenaram a serpente feminina. Doca saiu livre. Quem acabou “vênus lasciva”, acostumada a “amores anormais”, “prostituta de alto luxo da Babilônia”, foi Ângela Diniz. Um julgamento escandaloso, coberto por esta repórter para o Jornal do Brasil.
Assim como Marielle, a morte de Ângela desencadeou um movimento. Desta vez, contra a violência doméstica, e deflagrou uma campanha que revolucionou os costumes tradicionais, “Quem Ama não Mata”. Foi o que conduziu o caso a um segundo julgamento, onde Doca acabou condenado a 15 anos de prisão.
Assim como Susan Sontag, Ângela Diniz cativou não um escritor, como Benjamin Moser, mas o cineasta Bruno Barreto, que a conheceu aos 19 anos enquanto filmava um comercial no restaurante carioca Antonino. Outra socialite, Kiki Garavaglia, apresentou a mineira, então com 29 anos, namorada do colunista social Ibrahim Sued, que tinha efeito de bombshell nas noites do Rio. Ela tinha pedido a separação do marido e engenheiro, Milton Villas Boas, com quem viveu dez anos e no ato perdeu a guarda dos três filhos. Com vida social intensa, a “Pantera de Minas”, viveu alguns escândalos e foi morar no Rio.
Numa entrevista à ABI, Bruno contou que vai realizar a minissérie para a Globoplay sobre Ângela partindo do assassinato em 1976, passando pelo julgamento dois anos depois, e desenrolando os fatos até o início do segundo julgamento de Doca em 1981. “Talvez eu inclua alguns fatos marcantes da vida dela um pouco antes de se mudar para o Rio, como a morte do seu caseiro de 18 anos, Zé Pretinho. Ela se apresentou como autora alegando ter sido assediada mas quem assumiu o crime foi o verdadeiro culpado, seu amante Tuca Mendes”.
O que marcou o cineasta, além do jantar na noite em que a conheceu, foi a reação à morte de Ângela. “Quatro anos depois eu estava em Nova York para o lançamento de Dona Flor e seus Dos Maridos quando fui interpelado por uma mulher numa festa, “Ah! Você é daquele país onde o marido pode matar”.
A minissérie será a 28ª produção de Barreto entre longas e curtas, e vai estar pronta entre outubro e novembro do ano que vem. O cineasta conta que assistiu ao documentário “O Vício da Liberdade” da neta Flávia sobre o avô Evandro Lins e Silva quando ele já estava com 88 anos. No julgamento que o tornou famoso, ele tinha 67 e, para comover a platéia e o júri enquanto rodopiava diante do juiz, alegava ser aquele seu “canto do cisne” na carreira. Ela interpelou o avô sobre a acusação à Ângela e a absolvição de Doca justificada pela “defesa da honra”. “Nenhum advogado escapa da dose de 1% de cinismo”.
Autor do livro sobre Susan Sontag, Benjamin Moser também foi entrevistado pela ABI e disse que “uma biografia tem de ficar madura, levar de três a quatro anos para ser escrita e deixar o autor entender a personagem”. No caso de Susan, Moser levou sete anos para publicar o livro. Foi assim com sua biografia anterior, sobre Clarice Lispector (Clarice, Cosac Naify), onde Moser revela outra marca trágica da história feminina: a mãe de Clarice Marian Lispector teria sido estuprada por soldados russos durante a Primeira Guerra, e contraído sífilis.
Marielle Franco ainda não tem uma biografia como Susan Sontag ou Clarice Lispector. Não é personagem de ficção com Seth nas mãos de uma escritora Nobel como Toni Morrison. Nem se tornou minissérie, como vai acontecer com Ângela Diniz.
Mas como disse Bruno Barreto, citando Mark Twain, “a realidade é mais estranha do que a ficção”. Marielle é uma forte candidata à imortalidade simbolizando, numa só, todos os preconceitos, e todas as mulheres do mundo. A liberdade, já dizia o filósofo Jean-Paul Sartre, é a coisa mais difícil do mundo, e quando praticada por mulheres como Seth, Susan, Clarice e por Marielle, é inaceitável.
A frase que Carlos Drummond de Andrade escreveu na época do primeiro julgamento de Ângela Diniz cabe para Marielle, enquanto não se “descobrir” seu assassino. “Aquela moça continua sendo assassinada todos os dias de diferentes maneiras”.
Texto publicado originalmente no site da ABI.
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Norma Couri é jornalista e diretora da Comissão Mulher&Diversidade da ABI.