Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O sequestro da comoção popular

Brasil, junho de 2013. Manifestações realizadas em São Paulo contra o aumento do valor da passagem de ônibus foram o estopim para eclosão de inúmeras mobilizações populares em todo o país. Na pauta dessas mobilizações estavam demandas históricas do povo brasileiro, como transporte coletivo urbano decente e serviços públicos de educação e saúde de qualidade.

A princípio, a postura da grande mídia em relação aos protestos foi o que se esperava: qualificaram os manifestantes como arruaceiros, vândalos e criminosos, entre outros adjetivos com forte carga semântica negativa. Cenas de depredações de patrimônios públicos e privados eram repetitivamente exibidas nos principais canais de televisão do país.

No entanto, diante do amplo apoio da opinião pública às manifestações e também da inevitabilidade de conter os protestos em curto prazo, os grandes grupos de comunicação, estrategicamente, passaram a adotar outro discurso em relação a estes acontecimentos. Lembrando o ditado popular “se não pode com o inimigo, junte-se a ele”. Ou seja, se as manifestações são inevitáveis, então é melhor procurar adaptá-las à sua ideologia e assim tentar manipular a população para aderir a temas inerentes ao pensamento conservador.

O que outrora era visto como “movimento organizado por agitadores radicais” passou a ser concebido como “legítima mobilização popular”. “As manifestações, desde que pacíficas, sem vandalismo, são bem-vindas em uma democracia”, passou a ser o mantra repetido ad nauseam pela imprensa hegemônica na época.

Conforme bem apontou o sociólogo Jessé Souza, a mídia brasileira se aproveitou da grande mobilização popular em todo o país para “federalizar” as manifestações que até então estavam centradas em questões municipais (como o preço da passagem de transporte coletivo urbano), direcionando a revolta popular para o governo Dilma Rousseff. Os resultados desastrosos desse sequestro das mobilizações populares pela grande mídia são bem conhecidos: crescente radicalização da sociedade com o fortalecimento de grupos com tendências fascistas, deposição de uma presidenta democraticamente eleita e ascensão ao poder de um governo que coloca em prática medidas extremamente impopulares, que dificilmente sairia vitorioso nas urnas.

Brasil, março de 2018. Em um contexto extremamente caótico, consequência direta dos retrocessos pós-impeachment, a história se repete. Os órgãos midiáticos, novamente, tentam sequestrar as manifestações populares ocorridas após a execução de Marielle Franco, vereadora carioca que tinha como uma de suas principais bandeiras a denúncia da violência policial contra moradores de comunidades carentes. O modus operandi da grande mídia em relação à morte de Marielle foi basicamente o mesmo adotado para as jornadas de junho de 2013. A princípio, omitir ou conceder uma pequena cobertura ao fato, esperar a repercussão frente a agenda pública nacional e, caso haja grande mobilização, procurar canalizar a comoção popular para o seu espectro ideológico.

Como na Era das Redes Sociais é cada vez mais difícil para os grandes grupos de comunicação ocultar determinados fatos, a mídia hegemônica começou uma intensa campanha para, pelo menos, produzir a “narrativa oficial” sobre a morte de Marielle.

Marielle Franco durante as eleições de 2016 no Encontro das Candidatas Feministas à vereança da cidade do Rio de Janeiro. (Foto: Mídia Ninja/Creative Commons)

A primeira medida tomada pelos veículos O Globo, Folha de S.Paulo e Revista Veja, entre outros, foi despolitizar a execução da vereadora carioca, esgotando o trágico acontecimento em sua imediatidade, descontextualizando-o histórica e espacialmente. Em outros termos, tentar passar para o público a ideia de que o assassinato de Marielle não tivesse nada a ver com a chamada intervenção federal em curso no estado do Rio de Janeiro. Não por acaso, uma das primeiras reportagens do G1, portal do Grupo Globo, levantou a hipótese de “tentativa de assalto”.

Como bem observou o jornalista Leandro Fortes, em seu perfil no Facebook, “o Grupo Globo jamais se preocupou com as bandeiras de Marielle, nem muito menos com os grupos sociais que ela defendeu até morrer. Marielle nunca teve voz nem presença nessa mídia simbolizada pela Globo, muito pelo contrário: a Globo e seus mervais, kamels e jabores sempre estiveram do lado oposto do discurso e da vida de Marielle. O que se pretende é capitalizar a comoção popular, com repercussões internacionais, de modo a controlar as reações políticas internas e evitar a construção de um argumento sólido contra a intervenção federal, no Rio, e, por extensão, o golpe”. Nesse mesma linha de raciocínio, Sérgio Amadeu da Silveira, professor da UFABC, enfatizou que, ao retirar o conteúdo político, anti-racista, feminista, em defesa dos direitos humanos das ideias de Marielle, a grande mídia busca anular a sua militância de esquerda.
Por outro lado, os fascistas (os mesmos que foram “libertos” pela mídia após junho de 2013) não titubearam em demonstrar nas redes sociais todo o ódio destinado a Marielle Franco e a tudo que ela representava. Muitos, inclusive, comemoraram abertamente a morte da vereadora ativista.

É a “banalidade do mal” que deixaria Hanna Arendt pasma. Os “argumentos” utilizados para atacar Marielle apontavam que ela “defendia bandido”, “era ex-namorada de traficante”, “engravidou aos 16 anos”, “tinha ligações com o Comando Vermelho” e “não representava os pobres”, pois “teve uma votação considerável em bairros de classe média alta da Zona Sul”, entre outras falácias e calúnias. Realmente, o ódio cega determinadas pessoas. Lembrando um ditado atribuído a Einstein, “Duas coisas são infinitas: o universo e a estupidez humana”.

Por fim, no “calor dos fatos”, é difícil analisar se a comoção causada pela morte de Marielle irá desencadear uma série de mobilizações contrárias ao atual regime (assim como ocorreu após o assassinato do estudante Edson Luís por policiais durante a Ditadura Militar) ou se mais uma vez a grande mídia conseguirá canalizar o sentimento popular, o que certamente aumentará a onda de retrocessos vivida pelo Brasil pós-impeachment. A resposta virá da conscientização das massas, pois, lembrando as palavras de Edmund Burke, “Um povo que não conhece a sua história está condenado a repeti-la”.

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Francisco Fernandes Ladeira é mestre em Geografia pela UFSJ e pesquisador sobre as relações entre mídia e ensino de Geografia na educação básica.