Quinta vereadora mais votada do município do Rio de Janeiro nas eleições de 2016, com mais de 40 mil votos, Marielle Franco foi executada à queima-roupa na noite de 14 de março de 2018, quando voltava de um debate na Casa das Pretas, espaço coletivo de mulheres negras situado no centro da cidade. Ela e o motorista Anderson Gomes morreram depois de sofrerem uma emboscada no bairro do Estácio, no momento em que a vereadora e ativista, engajada na luta antirracista, nas pautas feministas e nas causas da comunidade LGBTQIA+, estava a caminho de casa.
O duplo homicídio virou notícia no mundo inteiro, mobilizou a opinião pública, que passou a cobrar fortemente das autoridades a resposta para duas perguntas essenciais: quem matou e quem mandou matar Marielle e Anderson?
Jornalistas investigativos dedicados ao caso desde o início, Chico Otavio e Vera Araújo mostram no livro-reportagem Mataram Marielle, que será lançado na semana que vem pela Intrínseca, como o duplo homicídio foi determinante para revelar os intrincados meandros do submundo da criminalidade carioca.
Chico e Vera esmiuçaram uma rede complexa que envolve a atuação de traficantes, milicianos, torturadores egressos dos porões da ditadura, bicheiros e policiais altamente treinados, contratados como assassinos de aluguel.
Em sua imersão no que pode ser considerado um dos crimes políticos mais rumorosos do Brasil, os jornalistas construíram uma linha do tempo que ajuda a conectar todos os acontecimentos, descobertas e progressos ocorridos desde 2018.
Além disso, os autores compartilham suas experiências na cobertura do caso, oferecendo uma versão inédita dos bastidores das apurações, pesquisas e entrevistas feitas nos últimos dois anos e meio.
Chico Otavio é repórter e professor de Jornalismo na PUC-Rio. Iniciou a carreira em 1985, na Última Hora, passou pela sucursal do Rio de Janeiro do Grupo Estado, produzindo reportagens para O Estado de S. Paulo, Jornal da Tarde e Agência Estado. Em 1997, transferiu-se para o jornal O Globo, onde cobre Política. Ganhou sete vezes o Prêmio Esso.
Vera Araújo é repórter investigativa em O Globo, além de advogada, tendo passado por Jornal do Brasil e O Dia. Em 2005, revelou a existência de grupos paramilitares na região de Jacarepaguá (RJ) que extorquiam dinheiro de moradores. Foi dela a ideia de batizá-los como milícias. Pela reportagem, ganhou o Prêmio Especial Tim Lopes de Jornalismo Investigativo (2009). Entre outros prêmios, recebeu o Imprensa Embratel (2003), o Esso Sudeste (2009), o Tim Lopes (2010) e o Troféu Mulher Imprensa (2012).
O Observatório da Imprensa fez uma entrevista por e-mail com os autores do livro. Quem mandou matar Marielle e Anderson? É a pergunta que segue sem resposta, avaliam. Eles falam também das grandes contribuições do jornalismo investigativo nesse caso.
1) Como foi o processo de construção do livro, quanto tempo durou e como foi feita a divisão do trabalho entre os autores?
Chico Otávio: A rigor, o livro começa quando entramos no caso, logo após o crime. Claro: nos primeiros meses, nem pensávamos no projeto. Mas, quando a ideia vingou, já tínhamos um considerável volume de informações apurado, futura base dos nossos escritos. Um repórter que gosta de apurar sempre acaba frustrado pelo limite da mídia diária, mesmo a digital. Neste sentido, o livro é uma maravilha. Nos oferece a chance de contar melhor tudo aquilo que apuramos. E, quanto à divisão, prevaleceu o conceito usado na própria cobertura. Vera, experiente na cobertura de segurança pública, cuidou mais da área criminal, enquanto eu fiquei com os desdobramentos políticos do caso.
Vera Araújo: Como me especializei na área de segurança pública, principalmente na questão das milícias, escrevia mais sobre essas questões. Chico, por acompanhar as investigações no campo político, principalmente as da Lava-Jato, cuidava dessa parte no livro, mas isso não impedia que trocássemos ideias um sobre o assunto do outro. Afinal, o nosso objetivo era discutir as linhas de investigação e buscar a nossa própria. A divisão dos trabalhos na hora de escrever a obra seguia essa lógica da área de atuação um do outro. Levamos, mais ou menos, dois anos e dois meses escrevendo, uma vez que a história tinha muitas idas e vindas.
2) Há informações que foram divulgadas primeiro na imprensa e mudaram o rumo das investigações. Qual o papel do jornalismo nas investigações do caso Marielle?
Chico Otávio: Destaco pelo menos quatro furos de nossa cobertura. A brilhante sacada da Vera, voltando ao local do crime uma semana depois e encontrando duas testemunhas que foram desmerecidas pela polícia, mas que posteriormente prestaram depoimentos vitais para a reconstituição do crime; a entrevista que fizemos, por escrito, com o miliciano Orlando da Curicica, que praticamente arruinou a principal linha de investigação da polícia, que desde aquele momento revelou-se equivocada; a revelação da existência de uma falange de pistoleiros, até então desconhecida, chamada “Escritório do Crime”, e o envolvimento da milícia com a construção ilegal da Muzema, reportagem publicada um ano antes do desabamento de dois prédios do local.
Vera Araújo: Ótima pergunta! O caso Marielle tirou os repórteres da zona de conforto. De receberem as informações exclusivamente vindas das autoridades que investigavam o caso. Até porque os dados eram escassos. Quando o crime ocorreu, o Rio passava por uma intervenção federal na área de segurança. O general do Exército Walter Souza Braga Netto, atual ministro da Casa Civil, era o interventor na época. As investigações eram mantidas em sigilo. Para manter a sociedade informada, os repórteres tinham que arregaçar as mangas, gastar sola de sapato e buscar outras fontes. Isso fez com que crescesse a importância do jornalismo investigativo. Jornalistas pegaram imagens de câmeras que flagraram a passagem dos carros da vítimas (a vereadora Marielle Franco, o motorista Anderson Gomes e a única sobrevivente, Fernanda Chaves) e o dos assassinos, localizaram testemunhas que a polícia não havia encontrado, além de apurar outras possíveis motivações para o crime. Por isso, o papel do jornalismo nas investigações foi fundamental para ajudar a elucidação dos homicídios.
3) O que o livro traz sobre o assassinato de Marielle que não havia sido divulgado na cobertura do caso pela imprensa? Quais detalhes não foram abordados na cobertura ou abordados de forma superficial?
Chico Otávio: A meu ver, o grande mérito do livro é juntar, numa única narrativa, todas as histórias que envolveram a investigação e correram, muitas vezes, em direções opostas. Sendo assim, a leitura de “Mataram Marielle” permite não apenas entender todas as reviravoltas, avanços e lacunas do caso, como também oferece uma radiografia completa do submundo do crime na cidade.
Vera Araújo: A cobertura pela imprensa de um caso com reviravoltas, de longa duração, muitas vezes, deixa o leitor confuso. Mesmo os textos de memória e flashbacks nunca são suficientes para a pessoa entender totalmente a história. Na cabeça de quem acompanha o desenrolar do crime, sobram apenas highlights. Tudo picotado, na verdade. Além disso, na correria do dia a dia, detalhes da história e bastidores acabam ficando de fora. À medida que nos aprofundávamos, surgiam algumas informações exclusivas que são talhadas para a divulgação em livro. É interessante mostrar também como chegamos ao material, afinal, há estudantes de jornalismo e curiosos que desejam saber o desenvolvimento das matérias, como puxamos o fio da meada de algumas investigações. O livro não é uma biografia de Marielle, mas sim um livro-reportagem, o que é bastante complexo. Tem muita novidade no livro, mas, para não estragar a surpresa, vai um spoiler. Mostramos como uma investigação, ao ser aprofundada, quebra a privacidade das vítimas e de seus algozes. Há revelações, por exemplo, como a batalha travada por Marielle dentro do partido, que mostra a força dela como mulher, preta e bissexual. Também mostramos os bastidores das investigações envolvendo os policiais e o Ministério Público. Não vamos contar mais para não estragar a surpresa.
4) O livro analisa uma rede de grupos criminosos que dividem o controle da capital carioca. Como foi o processo de pesquisa para montar esse cenário? Encontraram alguma restrição?
Chico Otávio: Restrição, até onde percebi, foi a lei do silêncio que impera nas comunidades acossadas pela violência e nas organizações criminosas. Ao contrário dos crimes políticos, não há delação no crime comum. Abrir a boca, acredita a maioria, é como assinar uma sentença de morte. Mas, fora isso, fui surpreendido com a transparência (quando possível, é claro) dos órgão envolvidos na investigação.
Vera Araújo: Sem dúvidas, esta pesquisa foi a parte mais difícil. Buscar documentos e dados confiáveis. Eu tive que procurar fontes do submundo do crime, além de policiais que não atuavam no caso, para pedir informações de quem seria capaz de cometer um crime tão bem planejado. Planejar um ataque tão profissional. Foi dessa apuração que surgiu o Escritório do Crime e os nomes do ex-capitão do Bope, Adriano da Nóbrega, do sargento reformado Ronnie Lessa, do Mad (Leonardo Gouvêa a Silva) e outros. O interessante é que Adriano, executado em fevereiro deste ano na Bahia, já havia sido citado por mim em matéria escrita em 2003, sobre a “guarnição do mal”. O grupo de policiais militares era conhecido com esse nome por pertencer ao 16º BPM (Olaria) e sequestrar moradores das favelas de Parada de Lucas e Vigário Geral, no subúrbio do Rio. Num dos casos, a vítima denunciou e foi executada na porta de casa pelo bando de farda de Adriano, usando a patamo da Polícia Militar para seus crimes. Eu fiquei estarrecida, pois aquele nome já circulava há quase 17 anos! Busquei muitos processos judiciais, alguns arquivados, nos quais os suspeitos apareciam como réus, além de relatórios sigilosos da então Secretaria de Segurança do estado. Também contou muito o nosso trabalho de campo. Houve a análise de dezenas de processos, além dos autos referentes aos homicídios de Marielle e Anderson. Neste, foram mais de 25 volumes, sem contar os anexos sigilosos e o inquérito que apura os mandantes do crime, ainda em segredo, o que restringe um pouco nossa apuração.
5) Por que os conflitos que Marielle enfrentava dentro do próprio partido, o PSOL, são importantes para entender o contexto de seu assassinato?
Chico Otávio: Sinceramente, não acho que a referência a isso no livro tenha o objetivo de entender o assassinato. Zero. Nunca foi um dado para a investigação. Porém, ao citá-lo, o objetivo foi mostrar qual era o momento político de Marielle, com os méritos e contradições de seu partido, na semana em que seu carro foi emboscado no Estácio.
Vera Araújo: O conflito dentro do PSOL mostra as barreiras que Marielle enfrentou principalmente por ser mulher. Isso chegou a ser investigado pela polícia. Era importante mostrar como a cabeça dela estava cheia de problemas e dúvidas em relação ao partido quando sofreu o ataque. Tem uma frase dela numa das conversas encontradas em seu celular, após a quebra do sigilo telefônico autorizado pela Justiça, que sinaliza muito isso: “Sobra sempre para as mulheres se acotovelarem”. A expressão foi dita por ela por conta da demora da direção do partido em definir quem viria como vice do vereador Tarcísio Motta, candidato ao cargo de governador nas eleições de 2018. O partido anunciaria, no dia seguinte à morte da parlamentar, se havia decidido por ser ela ou a então vereadora Talíria Petrone.
6) A trajetória de Marielle é também a de uma violenta interrupção numa carreira política promissora. A partir da investigação de vocês, qual o futuro político possível de uma liderança como ela?
Chico Otávio: A tragédia de Marielle, embora pareça um paradoxo, deixou alguns legados. Um deles — e talvez o mais importante — foi levar a Polícia a fazer um enfrentamento inédito dessas organizações criminosas, especialmente a milícia de Rio das Pedras, alvo da operação Intocáveis, em janeiro de 2019. O outro foi dar visibilidade e consolidar a agenda de lutas da vereadora. Se a esquerda no Rio teve algum mérito nas eleições de 2018, foi justamente a de eleger uma legião de herdeiras de Marielle, tendência que certamente terá seguimento nas eleições de 2020.
Vera Araújo: Havia uma expectativa, principalmente do público antirracista, feminino e LGBTQIA+, que Marielle continuasse em defesa dessas pautas. Às vésperas do crime, ela se tornara um quadro importante no PSOL e achava que, como senadora, poderia atender de modo mais amplo às demandas de seus eleitores e seguidores. Ela cresceu, tinha luz própria e não dependia mais tanto de seu criador, o deputado federal Marcelo Freixo. Hoje, mesmo morta, Marielle se tornou ainda mais forte. Ela é um símbolo. Não à toa, deixou seu legado e conseguiu eleger três ex-assessoras ao cargo de deputadas estaduais.
7) Quais perguntas seguem sem resposta no caso Marielle? Como o jornalismo pode ajudar a buscar essas respostas?
Chico Otávio: O julgamento dos executores — Ronnie Lessa e Élcio Queiroz — deve acontecer no ano que vem. As provas são bem razoáveis, mas não cabais. Então, a investigação ainda aposta em colher outros indícios importantes para a carga acusatória. Neste sentido, a mídia pode também fazer o seu papel e não ficar refém de vazamentos. Mas, sem dúvida, a resposta que todos querem ouvir é “quem mando matar Marielle”. Eis o grande desafio do caso. Para as autoridades e para o jornalismo.
Vera Araújo: A principal delas: “Quem mandou matar Marielle e Anderson?”. Não há dúvidas que o jornalismo investigativo tem que prosseguir. Aprofundar as linhas existentes e buscar, quem sabe, outras. Cruzar informações sobre as ligações de Ronnie Lessa com pessoas que podem pagar por seus serviços de matador. Esse crime não pode ficar impune. Foi um atentado à democracia e às vidas de Marielle, mulher preta, mãe e bissexual, e de Anderson, pai de um menino de apenas três anos.
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Pedro Varoni é jornalista
Thallys Braga é estagiário de jornalismo no Observatório da Imprensa