O brutal assassinato da vereadora carioca Marielle Franco descortinou uma disputa narrativa que diz muito sobre as relações entre jornalismo e poder no Brasil contemporâneo. Da explicitação da difusão de fake news por políticos e magistrados à tendência de direcionar as abordagens em torno do trágico acontecimento para o seu aspecto mais emocional em detrimento da dimensão política, a morte de Marielle abriu novas séries discursivas.
Os paralelos com as jornadas de junho de 2013 sinalizam a retomada de pautas que estavam sufocadas seja pela própria desarticulação da esquerda, seja pela “jogada de mestre” propagada pelo Presidente Temer ao impor a intervenção militar no Rio de Janeiro, num discurso inflado pela grande mídia de redução do combate à violência às forças da repressão.
Análise de Fernando Rodrigues no portal Poder 360 vê no assassinato da jovem liderança pontos em comum com 2013: “Ali começou o mau humor dos brasileiros contra a política tradicional. Agora, pode ser que uma nova onda antiestablishment esteja em formação.”
A palavra de ordem da multidão reunida nas grandes cidades brasileiras e ecoada nas redes sociais — Mariele Presente — é representativa desse desejo de mudança. Na edição de domingo da Folha de S.Paulo, Jânio de Freitas anotou: “Não é sem razões muito profundas, como podem ser a saturação e uma consciência definitiva, que um país vive a sua comoção com a maturidade vista na celebração por Marielle. O que isso nos diz, ainda, não sabemos.”
Os desdobramentos ainda imprecisos da morte de Marielle passam pela disputa narrativa entre visões opostas: a primeira esvaziada politicamente e a segunda capaz de dar vida aos discursos e práticas que justificaram a trajetória de Marielle e foram também a causa de sua execução. Glenn Grenwald, no the intercept Brasil, captou o dilema numa crítica à cobertura no Fantástico no último domingo, considerada por ele como tentativa de retomada da narrativa pela grande mídia.
“Esse não foi um caso em que a cobertura da Globo elevou uma história à proeminência nacional. Muito pelo contrário: O que nós vimos foi a Globo tentando assumir o controle de uma história que explodiu online graças ao ativismo cidadão e à raiva inconformada causada pelo crime, sem que se precisasse de ajuda ou amplificação dos grandes veículos de imprensa. Essa é uma das poucas vezes em que a grande mídia brasileira foi uma espectadora, não o motor, de uma história.”
Greenwald reconhece passagens de bom jornalismo no Fantástico e considera comovente a entrevista com a companheira de Marielle, Maria Teresa. “Esse não foi um momento insignificante na mídia brasileira: uma negra, lésbica, da Maré e do PSOL homenageada e glorificada numa das plataformas de mídia mais importantes da Globo, com milhões de pessoas assistindo. A esposa de Marielle foi incluída com destaque, e não escondida.”
O que faz a relevância jornalística do caso de Marielle, aponta Greeenwald, é o aspecto político ausente na revista dominical. “O Fantástico drenou a política de Marielle de sua vibração, seu radicalismo e sua força, e a converteu em um gibi simplista de clichés vazios que, na prática, não seriam questionados por ninguém”, conclui a análise.
Na mesma linha de Greenwald, a Professora Ivana Bentes, propôs, no site do Mídia Ninja, uma abordagem complexa dos vários fatores envolvidos na cobertura.
“A reação das mídias corporativas foi imediata: Fantástico, o RJ TV, o Jornal Nacional novelizaram a execução de Marielle Franco, e fizeram um perfil humano e digno de sua vida, nos apresentando sua família, sua filha, sua mulher embalados para aquele consumo anestesiante, como fizeram com vários outros personagens políticos, inclusive com uma parte da indignação de 2013 que foi canalizada para o golpe de 2016. Mas as coisas são mais complexas que isso e é possível mesmo celebrar a posição da Globo à esquerda da direita!
O Fantástico e a cobertura massiva de um assassinato político faz o que é possível para colar o carisma de Marielle, sua cara iluminada, seu sorriso lindo, de jovem negra vitoriosa vinda da favela contra o poder de morte do Estado, aos arquétipos de sua teledramaturgia.
O capitalismo trabalha com a potência, se apropria da potência. Sempre tivemos uma bipolaridade no tratamento que a Globo dá as questões de comportamento e do imaginário e as questões do embate econômico-político.
São liberais no comportamento (homoafetividade, comportamentos disruptivos da juventude, afropunk, cultura trans, a potência ligada aos desejos), e traduzem isso como a “periferia legal”, o “novo”, o hype, etc.
A esquizofrenia e perversão é que os mesmo sujeitos do discurso e da potência, transformados em personagens de um multiculturalismo não problemático, são os “elementos suspeitos” e matáveis para o Estado, a polícia e o exército, e recebem respaldo da mídia.
A negra linda e descolada, as Marielles politizadas, as minas pretas com seus cabelos coloridos, o jovem hype da periferia, eles são os mesmos que são matáveis! Essa “dissociação” é perversa! Dissociação cognitiva, política, uma operação de mídia e de linguagem.
Temos sim que celebrar a posição da Globo contra a difamação, as fake news, o discurso de ódio e a apresentação pedagógica da cartilha dos direitos humanos para um contingente que faz apologia da barbárie.
Ou seja, não adianta achar que o PSOL não deveria colaborar com a Globo, e nem que suas lideranças não deveriam aparecer no Fantástico! Seria desinteligente! Ainda mais com a audiência gigantesca que tiveram. Pois sabem vocalizar a potência dos corpos e do imaginário.
Vamos aprender com a Globo, com a publicidade, com Hollywood, a tal da disputa das narrativas”.
Os moradores das periferias brasileiras que conseguem transpor as barreiras históricas de exclusão e se constituem como sujeitos de suas narrativas instauram uma nova força política. Mas a cobertura da grande mídia se distância, com algumas exceções, desse universo e privilegia os assépticos gabinetes palacianos.
O vídeo do YouTuber Spartakus Santiago é um comovente retrato de nosso tempo. Ele e seus companheiros dão dicas do que os negros favelados devem fazer para sair com vida de uma abordagem policial. Essa política que não morre com Marielle pode ser o ponto de transformação. Quanto de nós não a conhecíamos antes de sua covarde execução?
Numa de suas últimas entrevistas, divulgada pela Ponte Direitos Humanos, justiça e segurança pública, Marielle explicita a importância de se contrapor ao discurso da intervenção militar como solução para a violência na sociedade.
“Quais são as alternativas que a gente tem para mudar essa narrativa? Porque eles ganham nessa narrativa que é o debate da segurança. Pra mim, o debate é da segurança do corpo do favelado e da favelada (…). Ao invés da gente falar em algum nível de política de segurança, se fala de militarização, de ministro da defesa, de incursões na vida das pessoas sem considerar o direito.”
As possibilidades de mudança da narrativa se acentuam com Marielle transformada em símbolo mundial e podem ser sintetizadas pelo questionamento da vereadora na última entrevista: “Quem vigia o vigia?”. As cobranças da sociedade sobre o jornalismo farão com que ele seja capaz de desempenhar esse papel e se colocar ao lado dos que sofrem com a violência na periferia, vinda de todos as direções?
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Pedro Varoni é jornalista e Editor do Observatório da Imprensa.