Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Do lucro à lama: Uma viagem de Mariana ao fim do mundo – Parte 1

Como sugerem as histórias de terror, o prenúncio do horror foi sonoro. A avalanche de lama, pedras, máquinas pesadas e todo o tipo de natureza retorcida chegou primeiro aos ouvidos dos moradores de Bento Rodrigues. “Pelo barulho que ouvi, achei que era o mundo acabando”, nos contou uma senhora que, um dia após a hecatombe, com os olhos secos de tanto chorar, tentava decifrar o que restou de seu lugar.


Eram quase três e meia da tarde de 5 de novembro de 2015, um dia quente, como de costume na vida do vale, e seco, como tem sido este maldito 2015 no centro-sul de Minas Gerais. Depois deste momento, nada mais foi como antes. A barragem de rejeitos de minério do Fundão, com cerca de 55 bilhões de litros de lama espessa, rompeu-se sobre os 7 bilhões de litros de rejeitos, esses mais líquidos, da barragem de Santarém. A combinação de lama e água virou uma bomba sobre a terra seca. O mundo não acabou como pensou a senhora. Mas uma linda parte dele sim.


“Pelo barulho que ouvi, achei que era o mundo acabando”.
Foto: Bruno Bou

Do Fundão ao Oceano Atlântico, são quase oitocentos quilômetros de morte e tragédia, que expõem, em cada local, um novo problema de uma interminável lista: a exploração minerária em si, a segurança do trabalho de empregados terceirizados, a falta de planos de emergência, a dificuldade do acesso à água, a falta de respeito (e amor) pela natureza; o ancestral descaso com os direitos indígenas. Temas para reflexões inadiáveis.

A equipe dos Jornalistas Livres e do Greenpeace percorreu o trajeto de destruição, como numa viagem a um futuro indesejado (onde a natureza agoniza ou já é morta), e agora conta por que o desastre mineiro/capixaba antecipa como poderá ser o fim da linha de um país que, há cinco séculos, suga suas riquezas mais profundas sem se preocupar com quase nada: nem bicho, nem planta; nem rio, nem mar; nem escravo, nem pobre, nem índio.


Como já ocorria com o ouro no tempo de um Brasil remoto, as riquezas de nossa terra pouco ficam por aqui. No caso da exploração nas Minas Gerais, o trem matou a floresta para cruzar o Estado e levar commodites para o exterior através dos portos do Espírito Santo. Foto: Gustavo Ferreira


O ANÚNCIO DA TRAGÉDIA

Ministério Público mineiro já havia registrado preocupação com a Barragem do Fundão. As mais importantes pistas para entender o que ocorreu nas barragens da Samarco — empresa brasileira de propriedade da Vale e da anglo-australiana BHP Billiton — surgem em 24 de outubro de 2013. Aquela quinta-feira poderia ter salvo a quinta-feira do fatídico 5 de novembro de 2015. Na oportunidade, a tragédia foi anunciada em documento oficial, assinado pelo Ministério Público de Minas Gerais.

O promotor de justiça Carlos Eduardo Pinto encaminhou parecer para o Conselho de Política Ambiental de Minas Gerais (COPAM-MG), órgão do Governo do Estado, sobre os riscos de revalidar a Licença de Operação da Barragem no Fundão, expirada em setembro de 2013. Usando-se de um laudo do Instituto Prístino, o promotor fazia alertas claros, ao apontar o perigo do contato da Barragem do Fundão com pilhas de estéril de uma outra imensa mina em Mariana, essa de exploração exclusiva da Vale, conhecida como Fábrica Nova.

É preciso explicar:

Rejeito é tudo aquilo que não é usado após o beneficiamento do minério, e é armazenado em barragens. Já o estéril é o material que envolve o minério, e é desprezado ou removido no processo de lavra, ainda na mina. Esse material também pode ser alocado na própria mina, disposto em pilhas ou usado para terraplenagem.

O estudo diz: “Esta situação [do contato da barragem com as pilhas de estéril] é inadequada para o contexto de ambas estruturas, devido à possibilidade de desestabilização do maciço da pilha e da potencialização de processos erosivos. (…) O contato entre elas não é recomendado pela sua própria natureza física. A pilha de estéril requer baixa umidade e boa drenagem; a barragem de rejeitos tem alta umidade, pois é reservatório de água”.

O contato entre os dois materiais (que pode ser visto nos pontos tracejados da figura), segundo a Prístino, dificultaria a drenagem da barragem.

Em outros trechos assustadores — e agora sabe-se, proféticos — o parecer do Ministério Público mineiro foi além. Pedia que três pontos fossem condicionantes para a revalidação da licença.

a) Realizar monitoramento geotécnico e estrutural periódico dos diques e da barragem, com intervalo máximo de um ano entre as amostragens.

b) Apresentar plano de contingência em caso de riscos ou acidentes, especialmente em relação à comunidade de Bento Rodrigues, distrito do município de Mariana-MG.

c) Realizar análise de ruptura (DAM — BREAK) da barragem, prevista para ser entregue à SUPRAM (Superintendência Regionais de Regularização Ambiental).

Três parágrafos que mudariam a história desta tragédia. Foto: Gustavo Ferreira

Após o rompimento, soube-se que o Conselho de Política Ambiental de Minas Gerais nunca respondeu ao parecer. Afinal, a Secretaria de Meio-Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Minas justificou que as operações na barragem do Fundão estavam legalizadas, uma vez que, conforme norma do próprio COPAM, está garantido: “Nos processos em que se constatar a apresentação de requerimento de revalidação dentro do prazo de validade da licença, este prazo ficará automaticamente prorrogado até decisão da Unidade Regional Colegiada do COPAM”.

Fundão funcionava, assim, com uma licença prorrogada automaticamente, apesar de haver um laudo objetivo a respeito dos perigos para a segurança da barragem em si e, mais especificamente, para o povo de Bento Rodrigues. A possibilidade do rompimento das barragens era conversa frequente nos distritos do noroeste da cidade, segundo muitos moradores conhecidos durante nossos dias em Mariana e região.

Longe de Bento Rodrigues, entretanto, a Samarco era uma empresa premiada por sua eficiência face à crise econômica mundial. Apenas quatro meses antes do acidente, em julho, a empresa recebeu, pela terceira vez consecutiva, o prêmio de “Melhor Empresa do Ano” na área de mineração, conferido pelo anuário “Melhores e Maiores”, da revista “Exame”, publicada pela Editora Abril.

A premiação é resultado da análise e tabulação de dados elaboradas por uma equipe da Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuariais e Financeiras (Fipecafi), da Universidade de São Paulo, que assim justificou o prêmio da Samarco: “Conseguiu crescer mesmo em meio à desaceleração econômica e queda no preço do minério de ferro. Ela obteve a melhor rentabilidade do setor e é destaque pela terceira vez, com um faturamento de US$ 2,6 bilhões e lucro de US$ 1 bilhão. O segredo, segundo a empresa, é planejamento, controle de custos e fidelização de clientes.”

Foi uma performance invejável em condições tão adversas. Segundo a publicação “The Steel Index”, referência do mercado siderúrgico, o ferro vive um momento crítico. O minério com entrega imediata no porto chinês de Tianjin fechou cotado a US$ 44,20 em 24 de novembro. Foi a cotação mais baixa desde o início de julho, quando a matéria-prima do aço tocou a marca dos US$ 44,10, menor nível já registrado pela série histórica iniciada em 2008. Para se ter uma ideia, em fevereiro de 2011, a tonelada chegava a ser comercializada a US$ 187,10. Ou seja, em 4 anos, verificou-se uma queda de 76% no preço da matéria-prima. Especialistas do setor que não quiseram gravar entrevistas disseram que é perfeitamente correto imaginar que as minas da Samarco estivessem trabalhando perto de ou em sua capacidade máxima para cobrir os prejuízos com a brutal queda de valor do minério.

“Em 2014, o preço de venda do minério de ferro bruto recuou 47% em relação ao que era praticado no ano anterior, e o aumento da oferta global, combinado à desaceleração de mercados consumidores estratégicos, indica um cenário que não é passageiro; pelo contrário, impõe à indústria mineral um ambiente de negócios diferente, que consideramos um novo capítulo da história da mineração.”

O texto acima consta do “Relatório Anual de Sustentabilidade 2014”, editado pela Samarco. A saída? Altíssima produtividade e controle de custos. Sobre o controle de custos, é fácil exemplificar. Embora diga seguir à risca um Plano de Ações Emergenciais (PAE) das barragens, que teria fundamentado em 2014 um total de 1.356 horas de treinamentos com os empregados envolvidos direta ou indiretamente nas atividades, na prática a empresa não dispunha nem mesmo de alarmes sonoros para emergências, como, obviamente, é o caso da ruptura de uma barragem. As sirenes só foram instaladas dois dias depois da tragédia, “para o caso de novo rompimento de barragem”, informou com candura o engenheiro e gerente de Projetos da empresa, Germano Silva Lopes. O lema da Samarco é “Desenvolvimento com envolvimento”.

Quanto à altíssima produtividade, basta ver os demonstrativos da empresa. Se, em 2009, a Samarco produziu 16 milhões de toneladas de pelotas de ferro, em 2014, comemorou a produção de 25 milhões de toneladas. Trata-se de um crescimento de 56% em apenas cinco anos, dos quais 19% apenas entre 2013 e 2014. O aumento de produção, é certo, gerou uma montanha a mais de rejeitos.

Esferas utilizadas no processo de pelotização do minério também foram carregadas até o Bento. Foto Rafael Lage

Em 2009, a produção de rejeitos batia na marca de 13,7 milhões de toneladas. Em 2014, atingiu o recorde de 21,9 milhões de toneladas (crescimento de 60%, dos quais 33% apenas entre 2013 e 2014). E onde era armazenado o excesso de rejeitos? É a própria Samarco quem responde, em seu “Relatório Anual de Sustentabilidade 2014”:

Na Samarco, todo o rejeito (materiais arenosos e lamas) gerado na etapa de beneficiamento do minério de ferro é armazenado em um sistema, composto das barragens de Germano e de Fundão e do empilhamento na Cava do Germano, na unidade de Germano (MG).”

Se em 2013, o Ministério Público mineiro de 2013 apontava para o risco de “desestabilização” da barragem — o que já era ruim ficou pior — com a deposição de mais dezenas de milhões de toneladas rejeitos na barragem ameaçada.

Operários que trabalhavam na barragem confirmaram para nossa equipe que a empresa realizava obras visando ao aumento da capacidade das barragens de Germano e do Fundão. Em 2013, quando foi elaborado o parecer técnico encomendado pelo Ministério Público, o pedido era de que a barragem do Fundão alcançasse a altura de 930 metros (sobre o nível do mar), dez metros acima dos, até então, 920 metros. Já havia previsão de elevá-la, até 2022, para a cota 940 metros.

Não há números definitivos, mas o aumento da produtividade em um cenário de baixa do preço de muitas commodities deve servir de alerta para um possível crescimento relacionado no índice de vítimas fatais em minas e barragens ao redor do mundo. Para tomar de exemplo: a gigante BHP registrou cinco mortes no ano fiscal encerrado em junho, em operações na Austrália, Chile e África do Sul. Nos doze meses anteriores, nenhum acidente havia sido registrado.


Foto: Gustavo Ferreira


Barragens: São mais de 700 em Minas Gerais. 24 só em Mariana, todas ligadas à mineração. Foto: Bruno Bou

AINDA ANTES DO BENTO, MORTES TERCEIRIZADAS

13 dos 14 funcionários das barragens que estão mortos ou desaparecidos eram terceirizados

Os funcionários da Barragem do Fundão e de Santarém foram as primeiras — e mais numerosas — vítimas diretas da tragédia. Ainda que todo o Complexo da Mina do Germano, onde estão as duas barragens rompidas e mais a Barragem de Germano, seja de exploração da Samarco, os mortos — a maioria ainda desaparecidos — não eram funcionários da empresa. À exceção de um, Edmirson José Pessoa, os outros 13 eram empregados terceirizados. Seis deles de uma mesma empresa, a Integral Engenharia, com sede em Belo Horizonte. Dos 463 funcionários que estiveram no interior das barragens em todo o dia do rompimento, apenas 20 eram contratados diretamente pela Samarco, segundo nos informou o Sindicato Metabase Mariana.

De acordo com funcionários da segurança (também terceirizados) da Samarco, posicionados na portaria das barragens no dia seguinte à tragédia, era precisamente a Integral que trabalhava na ampliação da barragem. Foram levados pela lama ainda funcionários da Geocontrole BR Sondagens (especializada em sondas), Manserv Montagem e Manutenção, Produquimica e Vix Logística. A diversidade e a quantidade das empresas em trabalho de campo — enquanto os funcionários da Samarco atuam principalmente no administrativo — convoca a um questionamento fundamental em tempos de projetos legislativos que querem ampliar a contratação terceirizada no Brasil. Por que os terceirizados morrem mais?

Quando da discussão do PL 4330/2004 na Câmara dos Deputados, em abril deste ano, o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (o Dieese) apontou uma significativa diferença entre o número de vítimas fatais em acidentes de trabalho no Brasil. Terceirizados morrem mais. Ao apresentar estudos de alguns ramos, a assessora da direção técnica do Dieese, Lilian Marques, disse aos nossos congressistas que

“os números refletem a forma como os trabalhadores terceirizados são tratados pelos seus empregadores, em aspectos como segurança e treinamento”.

Após os incidentes em outras duas barragens, autoridades públicas e a própria Samarco admitiram a possibilidade de rompimento da barragem de Germano. Foto: Gustavo Ferreira

O fio que vai desvelando essa história aponta também para o sindicalismo na região. Fracionados como convêm aos patrões, funcionários de empresas diferentes integram sindicatos diferentes, mesmo que trabalhem no mesmo local, sob o mesmo contexto de perigo. Trata-se de um sindicalismo tão fatiado quanto os morros explorados.

É provável que alguns dos empregados mortos não tenham nem mesmo conseguido sair de cima ou de dentro dos veículos que pilotavam. Segundo depoimentos de familiares, eles não estavam devidamente preparados para a situação de emergência.

Em vídeo, é possível perceber a certeza que um outro funcionário da barragem tem em relação à morte de colegas. Foram vítimas de um golpe brutal, soterrados pela lama, corpos arrastados morro abaixo numa morte certa.


Foto: Gustavo Ferreira


O FUTURO QUE NÃO MAIS SERÁ

A Prefeitura de Mariana sonhava em transformar Bento Rodrigues em rota turística da mineração. A lama terminou com tudo. Cinco pessoas não conseguiram deixar o Bento, e o número de vítimas fatais humanas da tragédia deve alcançar 19, entre encontradas e desaparecidas

Foram as imagens aéreas do distrito de Bento Rodrigues que revelaram para o mundo o que poderia vir a ser o maior desastre ambiental da história brasileira. Era uma cena de pesadelo, algo como o fim dos tempos, que, em vez de meteoro ou tempestade, veio como lama, com nome oficial de rejeito de minério. Em outras palavras, aquilo que não prestou para enriquecer ninguém: “a barragem é a única parte do negócio da mineração que não dá lucro”, como nos contou um engenheiro do setor, em entrevista num laboratório da Universidade Federal de Ouro Preto, uma semana após o desastre.


Foto: Gustavo Ferreira

Ao contrário do que implorava o Ministério Público, a Samarco não tinha um plano de contingência para a comunidade de Bento Rodrigues. O máximo que se soube, na emergência, foram algumas ligações telefônicas para tentar salvar os moradores. Ouvindo o barulho destruidor se aproximar, um corre-corre desesperado começou. Os mais velhos foram recolhidos de carro. Os mais jovens subiram correndo para as partes mais altas da localidade.

Ao conversar com moradores do Bento, percebia-se um profundo alívio de que o rompimento não tivesse ocorrido durante a madrugada, o que certamente teria matado muito mais gente. Ao total, sabe-se que cinco pessoas não conseguiram sair do vilarejo a tempo. Vulneráveis, três idosos e duas crianças.

Uma delas é Emanuelly Vitória, de apenas 5 anos, que, na hora do desespero, se perdeu de seu pai, Wesley Isabel, e foi levada pela enxurrada. Thiago Damasceno, de 7 anos, foi atingido dentro do quarto da avó. Maria Elisa Lucas, de 60 anos, estaria visitando o distrito para pescar na hora do incidente. Maria das Graças Celestino, de 65, tentou buscar pertences em casa e não foi mais vista. Antônio Prisco de Souza, o Totó, de 65 anos, também não conseguiu fugir, assim como tantos animais, de cachorros a gatos, bois e cavalos, passarinhos em gaiolas que ou morreram na hora, ou agonizaram na lama nos dias seguintes.

Para conhecer mais sobre a história de vida das vítimas e de seus familiares, assim como os nomes e sobrenomes que escrevem esta tragédia, que não cabe em números, vale conhecer o registro feito pelo estudante de jornalismo Leandro Barbosa em seu site História Incomum.


Foto:Bruno Bou

Foto: Gustavo Ferreira

Daqueles que conseguiram escapar para as partes altas do lugarejo, muitos não conseguiram deixar o Bento imediatamente após a tragédia. As equipes de resgate não chegaram antes do cair da noite e muitos foram os que sofreram madrugada adentro no cenário do caos. Menos mal que os heróis existem, como Danilo Caetano. No dia seguinte à tragédia, seu nome era o mais falado no sobe e desce das ladeiras de chão batido. O homem de 39 anos, hoje morador da vizinha Santa Rita Durão, usou o conhecimento adquirido nos anos vividos na comunidade e abriu picadas para criar caminhos alternativos para dezenas de pessoas deixarem o pesadelo. Uma servidora da Secretaria Municipal de Saúde — que não quis dizer seu nome, mas que também passou a noite salvando gente da barragem rompida — contou que Danilo escalou até as copas das mangueiras para salvar cinco jovens. “Ele subia e descia esse morro com água e comida para alcançar as pessoas que não podia resgatar.” Quando o dia amanheceu, exausto, Danilo deixou para trás a sua história. Em vez do agradável bar sob as mangueiras, lama. Em vez do campo de futebol, da igreja ou de sua escola, mais lama.

Neste link da GlobalGeo, é possível ver fotos de satélites impressionantes de como era o Bento antes e depois da lama.


Imagens produzidas pela GlobalGeo

O rejeito de minério “acabou com o Bento”, nas palavras repetidas de muitos moradores que, ainda incrédulos, subiam até o morro vizinho, que servia de plateia, para observar a cena grotesca.

Bento Rodrigues era um subdistrito do distrito de Santa Rita Durão — ambos com origem no século XVIII e ambos berços do desenvolvimento da mineração em Minas Gerais — no extremo noroeste do município de Mariana, próximos aos limites com as cidades de Catas Altas e Ouro Preto, aos pés da Serra do Caraça. Só não podia ser chamado de lugar pacato porque as explosões das minas ao redor chacoalhavam o povoado repetidas vezes — em especial, na hora do almoço.

“Naquele dia, ouviu-se, perto do meio-dia, uma explosão especialmente forte”.

Foi o que nos contou Jean Roberto, vice-presidente da Associação de Moradores de Santa Rita Durão. Ele sabe como poucos a história das cercanias e nos provou que havia um plano da Prefeitura de Mariana de transformar Bento e Santa Rita em atrativos de uma rota turística da mineração, a Estrada Parque Caminhos da Mineração. A ideia era retirar carros comuns da MG-129, trajeto dos grandes caminhões a serviço das mineradoras, e direcioná-los a uma estrada turística a ser construída, com vistosa sinalização, ciclovias, espaços para contemplação da paisagem e (por que não?) realização de eventos de negócios do setor. Para usar um termo da moda, a ideia era “gourmetizar” Camargos, Bento Rodrigues e Santa Rita Durão, ao gosto das mineradoras.

Jean Roberto faz questão de nos mostrar um vídeo, hoje irônico, que apresenta um futuro que nunca chegou. Foto: Gustavo Ferreira

O vídeo do projeto parece um sonho inverossímil. Em vez de localidades soterradas, é anunciada “a primeira Estrada Parque que alia o desenvolvimento econômico, o turismo e a preservação do patrimônio cultural e ambiental”. A estrada chegaria ao Bento pela Fazenda do Tropeiro, que, como o nome diz, é um antigo reduto de descanso para tropeiros em viagem. “Nela, se propõe a criação de um espaço multiuso, voltado para cursos, treinamentos, palestras, workshops, feiras agropecuárias, rodeios, utilizado de acordo com demanda de empresas sejam elas públicas, privadas ou não-governamentais”, diz o locutor do vídeo. Em resumo, um investimento que o Bento nunca teve. Na Fazenda Cata Preta, o plano era o Museu da Mineração — aquele que seria o primeiro museu do Bento.


Só no vídeo: Prefeitura transforma o Bento num pólo de investimentos. Reprodução da internet

Agora soterrada, a Capela de São Bento era o depósito da fé local. Mesmo para os mais esperançosos, é difícil crer que a lama não tenha terminado com Bento Rodrigues para sempre. O campo de futebol resta apenas na nostalgia dos boleiros mais rodados de Mariana. Pior ainda será a saudade do Bar da Sandra, mais prestigiado empreendimento do Bento. Há 8 anos, a propriedade de Sandra, cozinheira astuta e empreendedora, fazia sucesso. Aos pés de imensas mangueiras que, guerreiras, resistiram em pé à enxurrada, visitantes e locais encontravam “cerveja gelada, truco, um excelente molho pardo, coxinha, torresmo. Esse era o meu barzinho”, como nos contou Sandra. Na sexta-feira anterior à tragédia, o bar sediara o 5º Campeonato de Truco do Bar da Sandra. “Foi a despedida do Bento”.


Mangueiras sobre as quais ficava o Bar da Sandra. Foto Gustavo Ferreira

A Associação de Hortifrutigranjeiros de Bento Rodrigues fabricava a pimenta biquinho, um diferencial da economia local. Bento era especial também pela existência de “duas cachoeiras deliciosas”, segundo nos contou Jean Roberto, liderança em Santa Rita, ex-bancário em Belo Horizonte e ex-proprietário de um terreno no Bento, negociado com a própria Samarco.

A relação da Samarco com os povoados da vizinhança, claro, era intensa desde a sua chegada, no fim da década de 70. Conhecemos dois moradores do Bento que suaram seus corpos para a construção das barragens. José das Graças Caetano, hoje com 62 anos, pilotou tratores que colocaram abaixo uma floresta de eucaliptos para dar lugar à Barragem do Fundão. “E agora eu perdi na tragédia quase tudo de material que eu tinha: casa, documentos, roupas, fotos. Só restou a roupa do corpo e o meu Golzinho”. Foi o carro, em disparada morro acima, que salvou a vida da família Caetano.

Para os olhos leigos como os nossos, era fácil julgar inadequada a posição das barragens em relação ao Bento. Santarém, barragem mais líquida, que servia também de reservatório de água a ser lançada na pedra na rotina do trabalho de mineração, ficava a menos de 2 quilômetros de Bento Rodrigues. A hipótese de um grave erro de localização da barragem ganhou força logo no dia seguinte à tragédia. Geólogos do Instituto de Geólogos do Brasil não aceitaram gravar entrevistas, mas confirmaram: um povoado não pode estar no sopé de uma barragem — muito menos de três. Ou melhor: três barragens não podem estar sobre as cabeças de quase 600 pessoas.

Havia interesse comercial da Samarco no Bento. Alguns moradores do subdistrito garantem que a empresa tinha conhecimento do risco das barragens e que pretendia fazer uma quarta barragem ali — ou mesmo uma área de escape para caso de um acidente. O certo é que, mais de uma vez, a Samarco cadastrou as famílias em extensos relatórios. Em uma reunião com os moradores após a tragédia, um deles disparou: “a Samarco sabe mais da gente do que nós mesmos”.

Mesmo com tantos interesses numa região abençoada por abundantes recursos minerais, não há contra-partidas relevantes da Samarco ou da Vale — ou das autoridades públicas — para melhorar a vida da vizinhança, o que muito revolta Jean Roberto.


Vice-presidente da Associação de Moradores de Santa Rita Durão, Jean Roberto, não se conforma com a falta de investimentos em seu canto da cidade. Foto: Gustavo Ferreira

O prefeito não diz que 80% da arrecadação de Mariana vem da mineração dessa região? Então por que não temos uma ambulância por aqui? Por que não temos cursos profissionalizantes? A Vale sempre diz que não há mão de obra qualificada — e não tem mesmo — , mas, claro, não há cursos, apenas a escolinha. Deixa eu mostrar para vocês como é o nosso esgoto!”


Jean e seu vizinho fazem questão de mostrar que o esgoto deságua in natura em Santa Rita Durão. Foto: Gustavo Ferreira

Muito antes de melhorar a vida do noroeste do município de Mariana, a Vale estraga o meio ambiente da região. É o que fica claro na dissertação de mestrado em Engenharia Ambiental da Universidade Federal de Ouro Preto de Tatiana Gomes Ferreira, defendida em 2011. No resumo do estudo, ela é enfática: “A mineração foi considerada (pela população de Santa Rita) como uma atividade negativa, devido ao desmatamento e à degradação de edificações, e os que apontaram como positiva levaram em consideração unicamente a geração de empregos. O principal impacto causado pela mineração (após o aumento da exploração na Mina Alegria, também na região) foi a intensificação da degradação das edificações, devido ao tráfego intenso de veículos pesados. As águas naturais e de algumas residências do distrito estão com sua qualidade alterada devido, principalmente, à contaminação bacteriológica e níveis de enxofre acima do permitido por lei”.

Além de poluir os recursos hídricos, degradar as casas, não devolver em investimentos o que recebe em oportunidades, a Vale se sente dona do pedaço. De certa maneira, entende-se: boa parte da região de Mariana e Ouro Preto está loteada para a maior mineradora do país.


Mina de Timbopeba, Ouro Preto (MG). Fotos: Gustavo Ferreira

Barragem do Doutor, Ouro Preto (MG).


Entrada da Mina Alegria, Mariana (MG)


Público ou privado? Reportagem foi constrangida em estradas de acesso às minas da Vale nos municípios de Mariana e Ouro Preto.

Em localidades imediatamente vizinhas à catástrofe do Complexo da Mina Germano, outros três imensos empreendimentos (a Mina da Alegria, a Mina de Timbopeba e ainda o Complexo de Fábrica Nova) dominam a paisagem — e muito mais do que isso. Nossa equipe fotografou ao longe Timbopeba e Alegria e percebeu que, mesmo em rodovias públicas de acesso livre, são as regras da Vale que valem. Após negarem nosso acesso em Timbopeba, seguranças seguiram de perto o carro em que estávamos. Paramos para uma conversa surreal.

–  Não fica em propriedade da Vale, não. Senão, vou chamar a polícia prôceis… — disse o segurança, em um mineirês quase incompreensível. — Essa estrada é propriedade da Vale?, perguntamos. — Foi a Vale quem construiu. — Mas é propriedade da Vale? — Vai dar na Vale. — A rua que dá na sua casa é sua?

O segurança, agora tímido, fechou o vidro do carro e desistiu da conversa. Afinal, o recado já tinha dado.


Foto: Gustavo Ferreira

Aos leitores – A segunda parte da reportagem especial sobre a tragédia de Mariana e suas consequências será publicada na segunda feira, dia 21/11/2015, e a terceira (última) parte no dia 28/11

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Caetano Manenti é jornalista do projeto Jornalismo em Pé.