Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Distorção eurocentrista no noticiário

Uma das formas pelas quais a comunicação midiática – e, neste caso em específico, o jornalismo – pode ajudar nos avanços sociais se encontra na possibilidade de criação de empatia. A atitude de, idealmente, “colocar-se no lugar do outro” ao ser afetado por uma notícia é um dos mais nobres efeitos que a produção jornalística pode alcançar. Há verdadeiramente alguma chance de transformação da sociedade quando os problemas são tomados como gerais, não somente localizados.

Nas últimas semanas, chegou ao conhecimento dos brasileiros o drama de milhões de pessoas que buscam abrigo em países europeus. São refugiados de locais como Síria, Nigéria, Líbia e Iraque, entre vários outros, que depois de enfrentarem guerras civis (declaradas oficialmente ou não), perseguição e violência de todas as formas, decidem buscar a sobrevivência na Alemanha, Grã-Bretanha, Itália ou Espanha. Vão, em grande parte, com pouco mais que a roupa do corpo, e enfrentam obstáculos como a travessia do Mar Mediterrâneo em embarcações sem as mínimas condições de segurança. O intuito de sobrevivência, materializado no desembarque em território europeu, fala mais alto que o extremo risco da travessia. As notícias sobre a situação dramática desses refugiados em lugares de passagem como Calais (França) ou na estação metroviária de Budapeste (Hungria) só não são mais aterradoras do que as publicadas quase diariamente sobre as centenas de mortos em naufrágios nas costas italiana, grega ou espanhola.

Pois bem: no dia 31 de agosto último, em uma matéria veiculada no Bom Dia, Brasil (TV Globo) sobre o desespero daqueles que tentam recomeçar suas vidas a milhares de quilômetros de casa, a apresentadora afirmou que a crise humanitária, e aqui cito literalmente, “pode ser uma ótima oportunidade para os empresários europeus”. Em seguida, o jornalismo de “boas notícias” analisa a possibilidade de exploração de pessoas em situação de abandono a partir da contratação destas mesmas para trabalhos de baixa remuneração.

A miséria humana se torna portadora de “oportunidades”

É necessário perguntar: o que essas poucas frases expõem sobre nosso ofício? Ou pior: qual a lógica que sustenta a ideia de que, por qualquer motivo, a calamidade que se abate sobre milhões de pessoas possa representar algo positivo para outro grupo? A falta de elementos de identificação com os indivíduos em situação de risco – e, paradoxalmente, a empatia com a “causa” dos empresários europeus – são indicativos do que o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos definiu como pensamento abissal: apenas aquilo que representa ou é abarcado pela estrutura de identificação com o Ocidente é considerado “humano”; o que fica do lado de lá (africanos, muçulmanos, árabes e outros grupos que não sejam considerados herdeiros da tradição ocidental) é “exótico”, “estranho” ou, simplesmente, disforme. Formam grupos de indivíduos sem história, sem valor dentro da escala “humana” de importância. Assim, milhares podem morrer ao cruzar o mar, mas esse ainda é um problema “dos imigrantes”, e não uma catástrofe da humanidade. Onde foram parar aqueles belos ideais do Iluminismo, mesmo?

Não é preciso dizer que o jornalismo brasileiro reproduz o abismo psicológico em seus produtos, tomando como ponto de observação um eurocentrismo estranho à realidade brasileira em dimensão sociocultural e histórica. Aliás, exemplo similar é o da situação dos haitianos que chegam diariamente ao país: o silêncio quase absoluto de nossa imprensa tradicional sobre um atentado no qual seis pessoas foram baleadas na cidade de São Paulo é ensurdecedor. Somente com o barulho realizado nas redes sociais sobre o caso é que ele acabou virando notícia: as versões digitais dos jornais Folha de S.Paulo e O Globo só tratam do ocorrido a partir do dia 8 de agosto, mesmo o crime tendo acontecido no dia 1º, no centro da capital.

Retornando ao caso dos refugiados na Europa, é essencial contextualizar os motivos pelos quais eles tentam entrar no continente. Mas esse trabalho é feito, em geral, apenas parcialmente. Ao passo que é sempre referido sua situação de fuga de conflitos em seus países de origem, pouco é dito sobre as causas desses conflitos. E mais: qual o papel dos próprios países europeus (e dos Estados Unidos) nas crises. Ou seja, o histórico de colonizações ocidentais na África e Oriente Médio tem enorme importância na constituição dos atuais cenários, de mesma forma que recentes ações militares intervencionistas completam o quadro.

E assim seguimos: em momentos nos quais a empatia poderia se tornar uma possibilidade real contra as iniquidades, muitos veículos escolhem o caminho oposto. Além de fortalecer a divisão, aprofunda-se o abismo de tal forma que a miséria humana se torna portadora de “oportunidades”. Aliada a imagens de corpos boiando nas águas que banham as praias gregas e italianas, pessoas vivendo em tendas, dormindo espalhadas pelo chão de centrais de trem ou tentando atravessar o Eurotúnel a pé, essa orientação editorial torna difícil escapar do sentimento de que, enquanto humanidade, falhamos.

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Ivan Bonfim é doutor em Comunicação e Informação, jornalista e historiador