Há muito tempo não via nada tão pungente e devastador como a imagem de Aylan Kurdi, 3, com seu corpinho emborcado na areia, o rosto encoberto pelo refluxo da maré. A foto atinge quem olha com a intensidade de um soco no estômago. Dói.
Seguramente foi essa força perturbadora que fez com que a maioria dos grandes jornais do mundo relegasse o retrato para suas páginas internas. Foi para as capas a variação menos impactante, com Aylan já nos braços do policial turco. Quem escancarou a imagem mais crua teve o cuidado de explicar por que o fazia. Do ponto de vista do leitor, pode ter sido acertado; do ponto de vista jornalístico, era uma briga que valia a pena ter comprado.
No Brasil, os três maiores jornais ficaram com a versão light. A Folha, normalmente audaciosa na publicação de imagens fortes, foi surpreendentemente a mais acanhada: deu em tamanho modesto, no pé da página e soterrada por um enorme e dispensável close de Dilma Rousseff; no alto, uma foto absolutamente irrelevante.
É compreensível e louvável que o jornal tenha se preocupado com a sensibilidade de parte do leitorado, embora se possa discutir a utilidade da medida, já que a imagem havia viralizado. Mas a soma de equívocos continuou na cobertura: “Mundo” preferiu abrir sua edição com o desfile das forças militares da China em comemoração dos 70 anos do fim da Segunda Guerra.
A publicação de imagens fortes é um desafio perene nas Redações, e a tomada de decisão é sempre precedida de muita discussão. Os jornais temem ser acusados de explorar a desgraça alheia e de apelar para vender. Não há política que sirva para todos os casos, nem receita segura para separar o que é sensacional (no sentido de provocar emoção) do que é sensacionalismo (a busca do choque gratuito). Qualquer decisão tem muito de subjetiva, mesmo quando feita em nome do leitor.
Algumas respostas são mais fáceis. “É realmente necessário estampar na capa a foto das moças esfregando o chão coberto de sangue, no bar onde ocorreu a chacina em Osasco, ou a foto do momento em que o repórter atirou na colega jornalista nos EUA?”, escreveu Clarice Paranhos, cujo filho de seis anos costuma pegar o jornal para ver “Esporte” ou a página de Atmosfera.
A primeira, sem dúvida. Era o retrato possível (e publicável) de um massacre que deixou 19 mortos nas franjas de São Paulo. A segunda, depende -mas a discussão não está no que ela mostra. A imagem é fruto do narcisismo doentio de um desequilibrado que planejou zelosamente a divulgação de seu crime. Publicá-la, defendem alguns, é seguir o roteiro previsto pelo assassino e incentiva outros malucos. O argumento é bem-intencionado, mas de eficiência duvidosa (e a internet?) e eticamente questionável: quando temos o direito de omitir notícia?
O caso Aylan trafega em outro registro: a foto em que é carregado pelo policial ameniza o drama e seu desfecho exige legenda. Ela é despida da dramaticidade que provoca a catarse em quem vê a imagem ao lado, onde está explícito que o socorro chegou tarde –da mesma forma como falhou para outros 2.000 mortos da onda migratória.
Se sua crueza puder ajudar a mudar os rumos da tragédia humanitária que se desenrola aos olhos de todos, está justificada sua publicação, ainda que ao custo do choque e das críticas de parte dos leitores.
Termino com uma dúvida: neste sábado (5), a Folha estampou no alto da capa um “cineminha” de dois assassinatos filmados na escadaria da Sé. Por que a exibição do corpinho do menino náufrago seria um atentado à sensibilidade de leitores, e o dessa violência explícita, não?