O drama dos refugiados dos conflitos do Oriente Médio que chegam à Europa e a crise humanitária decorrente das dificuldades (ou a falta de desejo) para acomodá-los é mais um exemplo de como o jornalismo – no mundo todo, em geral – falha na sua tarefa de antecipar o debate de problemas sociais graves e mitigá-los.
Não é uma constatação nova. Em 1998, em entrevista à Associação Mundial de Jornais, o secretário-geral da ONU, Kofi Annan, pediu à imprensa mais investimento no “jornalismo preventivo”. Disse ele: “A mídia tende a aparecer quando há um banho de sangue e volta para casa assim que a matéria acaba; acho que devemos continuar fazendo reportagem de modo a induzir as pessoas que detêm autoridade a agir antes da explosão”.
Não tem sido isso o que o jornalismo de todos os países, inclusive os que têm responsabilidade direta pela tragédia atual, vem fazendo. Para muitas pessoas, as cenas terríveis que vêm sendo mostradas há duas semanas parecem inesperadas, pois os meios de comunicação praticamente não se referiam à possibilidade de elas ocorrerem, embora os indícios estivessem à sua disposição por anos.
Também poderão parecer algo não antecipado outras situações que envolverão outras legiões nacionais de “indesejados”, que se acumulam em seus países e um dia, como sírios, curdos, iraquianos e afegãos agora, também vão dar um basta por falta de opção e vão tentar uma vida melhor em algum lugar que lhes pareça melhor que o seu (e quase qualquer um é).
Países que estão diretamente envolvidos no conflito sírio, como EUA, Rússia, Irã, Arábia Saudita e as potências europeias, que armam e dão sustentação material aos grupos que se guerreiam pelo poder na Síria, inclusive com o uso do conceito da “responsabilidade de proteger” como justificativa política e moral, deveriam incluir no escopo de sua missão proteger também as vítimas dessas ações militares.
Não se pode esperar muito de nações que vivem sob regimes que são autocráticos ou ditatoriais. Mas EUA e os da Europa Ocidental, sim, podem fazer muito mais do que têm feito. No entanto, os líderes desses países fingiram que o assunto não era com eles até verem suas fronteiras arrombadas por multidões de refugiados.
Por que Obama, Merkel, Cameron, Hollande e parlamentares de seus países puderam se dar ao luxo da omissão por tanto tempo? Como argumenta Michael Ignatieff, da Harvard Kennedy School, porque ninguém os estava pressionando. A opinião pública estava silente. A imprensa foi omissa.
E do que tratava a imprensa dessas sociedades que têm tudo a ver com essa imensa desgraça coletiva? Provavelmente dos desdobramentos do caso Ashley Madison ou das mais recentes novidades do caso de Tom Brady com a babá. Para ser justo, claro que nos grandes jornais, em algum discreto ponto de sua seção de mundo, uma ou outra reportagem ou artigo sobre os refugiados sírios deve ter sido publicado.
O assunto não é só dos países diretamente envolvidos no conflito. O Brasil é um alvo potencial desses refugiados, e há milhares deles que tentam se abrigar aqui. Muitos pedem asilo por terem parentes que já vivem aqui. Muitos chegam clandestinamente, via Equador, que tem uma política migratória que estimula a ação de “coiotes” que trazem os imigrantes para cá. Nossa imprensa está alheia a isso, com raras exceções, como a reportagem de Isabela Palhares no Estadão deste domingo e a de André de Souza e Eduardo Bresciani no Globo de sábado.
Mas a disposição para, de fato, pautar o assunto na agenda pública só veio com a foto de Aylan Kurdi e a comoção mundial por ela provocada. Esse garoto de nacionalidade síria e nascido numa família curda, como a menina vietnamita Phan Thị Kim Phúc, fotografada em 1972, quando tinha nove anos, correndo nua com o corpo queimado por napalm, se tornou um ícone capaz de mobilizar a opinião pública em poucos dias, embora nem sempre se possa garantir que, além do choque, algo de concreto vá acontecer a partir dessa explosão de emoções.
O papel da fotografia
Quando ocorrem esses casos, a discussão ética na corporação dos jornalistas acaba sendo: pode-se ou não divulgar essas cenas? É o tema da ombudsman da Folha (que não deu a foto mais pungente) deste domingo.
A resposta é clara: morbidez deve ser evitada a todo custo, mas Imagens fotográficas chocantes que podem servir a propósitos humanitários e ajudar a manter vivos na memória coletiva horrores inomináveis e, com isso, dificultar a ocorrência de similares, devem ser publicadas com destaque.
A decisão deve ser tomada caso a caso, mas as imagens de Aylan Kurdi certamente estão na mesma categoria daquelas dos prisioneiros dos campos de concentração de Auschwitz e Dachau, das deformidades provocadas em crianças pela poluição na baía de Minamata, das torturas impostas a prisioneiros iraquianos por soldados dos EUA em Abu Ghraib, dos efeitos de bombas de napalm sobre civis sul-vietnamitas na Guerra do Vietnã.
Nada de errado em fazer a discussão sobre publicar ou não essas fotos. Mas e a discussão sobre o que o jornalismo deve fazer para não se sujeitar mais à crítica justíssima que Koffi Annan lhe impôs há 17 anos? Por que os veículos não estruturam em seu organograma um grupo dedicado à prática sistemática do jornalismo preventivo?
O jornalismo preventivo pode tentar evitar guerras e conflitos étnicos e religiosos ou, como nesta situação, suas consequências para civis inocentes. Ou impedir que se repitam catástrofes decorrentes de desastres naturais, problemas de saúde pública ou quaisquer outras crises sociais. Em todos os verões brasileiros, repetem-se as cenas de desabamentos com mortes e de enchentes catastróficas em todas as cidades, e o que a imprensa faz é apenas e sempre registrar, lamentar, provocar indignação passageira.
O jornal The Independent faz em 4 de setembro o tipo de cobrança ao premiê britânico que, se toda a imprensa tivesse feito há mais tempo a todos os governantes, poderia ter ajudado a evitar as tragédias que testemunhamos.
Quantos dias vai levar para Aylan Kurdi ser esquecido? Quantos outros garotos como ele terão de ser sacrificados para o jornalismo começar a encarar com mais seriedade sua responsabilidade como agente indutor da agenda da opinião pública?