Cenário 1: fevereiro de 2010. Após o terremoto de 7 graus que devastou Porto Príncipe, o Haiti entra em colapso. Agências de fotografias vendem, nos seus pacotes, imagens terríveis, como a de uma escavadeira retirando dezenas de corpos para atirar em uma vala comum. O sangue daqueles corpos escorria nas pás da escavadeira.
Cenário 2: março de 2011. Um tsunami devasta o Japão após o maior terremoto em 140 anos. Mais de 13 mil pessoas morrem. Dias depois, as principais agências de fotografia não registram imagens de corpos. A diferença em relação ao Haiti é creditada à “cultura de honra e respeito” do povo japonês.
Cenário 3: abril de 2011. Um homem mata 12 estudantes entre 13 e 16 anos em uma escola de Realengo, no Rio de Janeiro. Após o massacre, o homem comete suicídio. A imagem do seu corpo ensanguentado no corredor é divulgada e destacada, por mim, na home do Terra. O motivo: era a prova cabal de que ele realmente estava morto. Uma editora executiva da época afirma ser contra o destaque que eu dei: “As pessoas têm o direito de não querer ver um cadáver na capa do portal assim que o acessam”.
Cenário 4: outubro de 2011. O ditador líbio Muammar Kadafi é assassinado, dois meses depois da tomada de Trípoli por rebeldes líbios. Todos os vídeos do corpo de Kadafi divulgados pelos rebeldes, inclusive alguns que contém atos de necrofilia, são publicados e destacados não só no Terra, como em todos os grandes portais de notícias do mundo. Um redator observa: “Ele é um ditador, mas o corpo dele pode ser desumanizado?”.
Qual seria a sua atitude em qualquer um dos quatro cenários descritos acima? E qual seria a sua atitude tendo em mãos a foto do menino sírio Aylan Kurdi refugiado morto em uma praia?
Tome os quatro cenários acima como um preâmbulo. A discussão sobre os critérios de publicação de fotos sensíveis não é simples, nem cabe em regras.
O ato político de publicar e divulgar a foto
Os direitos à sepultura e à dignidade do corpo não estão na Declaração Universal: as questões culturais são inescapáveis a estes. A cultura islâmica preza pela dignidade do corpo e da sepultura, tornando também nesta repulsiva a imagem do corpo de Aylan Kurdi em uma praia, não apenas na cultura ocidental cristã.
Os atos de publicar e divulgar são políticos e transcendem a informação. Eles servem para descrever e impactar sobre uma realidade: a crise migratória da Europa, que obriga milhares de famílias a arriscar suas vidas para tentarem dignidade no Velho continente. Sobre isso, a explicação do UOL é contundente.
Imagens influenciam o curso da história. Em 1972, a foto de uma menina vietnamita correndo nua após o lançamento de bombas incendiárias perto de Trang Bàng fortaleceu o movimento antiguerra, que terminou três anos depois.
A decisão de hoje não foi fácil. Além de jornalistas, somos pais, mães, filhos, tios. E as fotos nos comovem profundamente. Provavelmente seremos acusados de sensacionalismo e de busca por audiência fácil — quando o cenário mais provável é que a imagem espante as pessoas, em vez de atraí-las.
Mas o jornalismo existe para informar. E palavras não descreveriam com a força necessária a dimensão da tragédia em curso na Europa e Oriente Médio. Não nos compete suavizar a realidade, mas sim retratá-la com precisão.
O debate acerca da audiência envolve números confidenciais, que o UOL jamais revelará ao público. Porém, a experiência mostra um fato: colocar a imagem repulsiva na capa atrai uma audiência enorme, mas ocultá-la atrai a mesma audiência e ainda a audiência da curiosidade. Uma notícia que contém a chamada “IMAGENS FORTES: menino é encontrado morto em praia”, em geral, atrai o dobro de cliques da foto em si. A pessoa do UOL que escreveu o texto acima tem toda razão em dissociar esse debate da audiência: ele envolve política e noções de humanidade acima das questões comerciais, quando falamos de jornalismo.
Temos todos os motivos para acreditar que o menino refugiado sírio estava desprovido de vários direitos básicos garantidos pela Declaração Universal imediatamente antes da sua morte. As informações sobre a crise migratória mostram que pelo menos os artigos 13º, 14º e 15º — que tratam sobre os direitos de circular entre países, solicitar asilo e ter uma nacionalidade — são negados aos refugiados tanto nos seus países de origem quanto nos países de destino. Assim sendo, o uso da imagem de Aylan Kurdi, como ato político, teve o objetivo, para o UOL, de alertar a sua audiência das violações de direitos ali conferidas. Ele usa o simulacro da imagem em uma tela para mostrar a falta de humanidade que a crise provoca. Esse é um ato que corresponde ao básico da função social do jornalismo.
Entretanto, as questões culturais seguem inescapáveis: ela ainda é uma imagem que causa repulsa, e essa repulsa pode, sim, afastar a audiência inclusive da compreensão do ato político colocado. Em um ambiente inteiramente controlado, como a home de um portal de notícias, essa escolha é dos jornalistas ali responsáveis. As redes sociais, entretanto, não podem ser considerados ambientes inteiramente controlados pelos publicadores, apenas pelas empresas constituídas a partir delas. Logo, a função ideacional da publicação se difere.
Vamos voltar ao cenário 3, descrito no início desse texto. O corpo ensanguentado no corredor da escola não era de Aylan Kurdi, uma criança refugiada, vitimada pela ganância de dirigentes de governos e pelo colapso do seu país de origem: era Wellington, um assassino de adolescentes, que cometeu seus crimes de forma deliberada. Ainda assim, a afirmação vale para ambos, e também se refere ao primeiro parágrafo da citação do UOL aqui nesse texto: “As pessoas têm o direito de não querer ver um cadáver assim que o acessam”. Tirei o termo “na capa do portal” de propósito, para explicar o que quero dizer com funções ideacionais:
- Os usuários que acessam a home de um portal SABEM que ali vão encontrar notícias. Eles podem acessar para descobrir alguns dos seus serviços, como email, cursos, chat, antivírus, mas o ambiente não lhes é inóspito: são marcas consagradas, que têm o noticiário como um dos seus principais produtos.
- Os usuários que acessam uma rede social têm outros objetivos. No Twitter, 70% vêem a rede como principal fonte de informações em tempo real. No Facebook, a maior parte das pessoas espera que o conteúdo fornecido pelos seus amigos se sobreponha ao conteúdo de veículos de comunicação. Em tese, portanto, as pessoas que acessam o Twitter estão mais propensas a entender a lógica de conteúdo de uma home de portal que as pessoas que acessam o Facebook.
- Logo, é normal que a repulsa seja maior aos posts de veículos de comunicação com a foto do menino morto nas suas fanpages no Facebook que no Twitter.
É saudável o debate em torno do ato político da divulgação da foto de Aylan Kurdi. Entretanto, esse debate nem sempre é apenas sobre critérios jornalísticos.
O ato político de conferir humanidade à vítima
As fotos do menino morto foram publicadas e divulgadas uma semana depois de um rumoroso debate sobre a publicação e divulgação dos vídeos do tiroteio de Virginia, que ceifou as vidas de dois jornalistas.
Moreno Osório, da Farol Jornalismo, costuma abordar o tema da divulgação de fotos sensíveis na internet com muita propriedade. Na sua newsletter, ele compilou várias explicações sobre o tema — recomendo a leitura inteira desse texto, para acrescentar a essa discussão. No texto, Moreno traduz uma resenha do repórter Archie Bland, do Guardian, que contém esta citação:
“Deixando de estar atentos a esses fatos óbvios para fazermos pomposas perguntas a respeito da morte na era das mídias sociais, nós perdemos o aspecto crucial da palavra ‘social’: ela significa não apenas transmitir; ela também significa receber. No fim, esses crimes significam o que nós permitimos que eles signifiquem. Nós deveríamos é fazer com que as vidas das vítimas significassem algo”
Aqui temos o debate essencial sobre o menino morto e a divulgação da sua foto: ela cumpre uma função básica social do jornalismo. Porém, ela faz com que a vida dele signifique algo?
Imediatamente após o ato da divulgação e publicação das fotos, a resposta é sim.
Além de ilustrar a primeira página de diversos periódicos europeus, a foto provocou reações dos premiês da Grã-Bretanha, da França e da Alemanha, em relação à disposição dos seus países em aceitar refugiados. Os traficantes de pessoas que colocaram Aylan e sua família em um bote foram presos. E Aylan deixou de ser um menino sírio sem nome.
As notícias acima mostram uma realidade em muitas das nossas culturas, que muitas vezes foge à compreensão de outras: o ato de chocar, de causar repulsa, é mobilizador. Ele tira os meninos sírios, as suas famílias, de um limbo de eventuais vítimas sem nome de guerras e lhes confere humanidade. O ato de honrar e respeitar (cenário 2) a todos os seres humanos não é naturalizado. Tanto é que a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi ratificada em 1948, quando a humanidade passou a conhecer, através da mídia de massa, os horrores da Segunda Guerra Mundial.
A função das redes sociais nesses atos políticos
O mundo soube da decapitação de James Foley e Steven Sotloff pelo Estado Islâmico através de vídeos divulgados por extremistas. Em ambos os vídeos, Foley e Sotloff são forçados a reproduzir a cruel retórica do Estado Islâmico, antes de terem as suas cabeças cortadas e expostas fora do corpo.
Essa retórica foi a principal justificativa que levou Google e Twitter a censurarem, oficialmente, os vídeos nas suas páginas. A distância de um ano do fato nos permite acreditar que aquele foi um momento definidor na história da comunicação: Google e Twitter se assumem como portadores de um conteúdo midiático; por considerá-lo ofensivo à civilização, se assumem como censores dele. Outros casos de assassinatos pelo Estado Islâmico sucederam a estes e foram igualmente censurados.
Não são os primeiros casos de censura de fotos chocantes nem os primeiros casos de censura por redes sociais, mas são os mais significativos atos políticos relacionados a ambos. Desde então, não é possível crer — se alguém acreditava — em uma “imparcialidade absoluta” nos grandes hubs de conteúdo na internet: Google e Twitter são feitos por humanos, também por isso assumem um lado na luta contra o Estado Islâmico, contrário a ele.
Ok, mas onde Aylan Kurdi entra nisso? Fora a referência óbvia — a família de Aylan só fugiu da Síria por causa do Estado Islâmico — entra naquela questão batida do papel do jornalismo nas redes sociais: ainda que o controle da agenda seja dos usuários, jornalistas também são usuários. E jornalistas usuários, ao colocar uma foto claramente sensível como ato político, desafiando eventuais termos de serviço proibitivos, constroem uma segunda agenda — a agenda do veículo de mídia como influenciador, agente público, muito mais que um mero fornecedor de conteúdo.
O Facebook passou a permitir como regra geral as fotos de mães amamentando seus filhos em junho de 2014, depois de uma mobilização grande de usuárias com a hashtag #FreeTheNipple. Você consegue medir hoje o impacto que teria a censura generalizada das fotos de Aylan Kurdi, caso o Facebook resolvesse levar a cabo todas as denúncias de conteúdo sensível feitas pelos usuários? Isso não acontecerá. Também por que os jornais fizeram a sua própria campanha, não com hashtags, mas da sua própria forma: colocando Aylan Kurdi nas suas capas e nas suas matérias, tornando a imagem impossível de ser censurada.
O exemplo de Aylan Kurdi mostra que, definitivamente, estamos longe do fim do jornalismo; estamos, porém, bem perto do fim de uma ideia sobre o jornalismo. A ideia do jornalismo como agente neutro que cumpre a função de informar a sociedade se degrada; a ideia do jornalismo como agente público que orienta a sociedade sobre dinâmicas políticas e de comunicação se reforça.