Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Diretor do WikiLeaks: “Assange pode enfrentar décadas de prisão nos EUA”

Publicado originalmente pela Agência Pública.

Se condenarem Assange nos EUA, nenhum jornalista estará seguro em lugar nenhum do mundo, avalia Kristinn Hrafnsson em entrevista exclusiva à Pública

Após a prisão de Julian Assange em Londres na última quinta-feira, a equipe do Wikileaks se prepara para uma nova batalha judicial. Assange foi condenado em um tribunal Londrino por não ter se apresentado à Justiça Britânica quando pediu asilo na embaixada do Equador, o que pode levar a uma pena de até 12 meses de prisão. Mas a maior preocupação do WikiLeaks é com o pedido de extradição para os Estados Unidos – um risco que a organização tem apontado por mais de oito anos.

“Trata-se de um pedido de extradição para os Estados Unidos, com a possibilidade de Julian enfrentar muitos anos na prisão por ter publicado documentos que revelaram crimes de guerra cometidos pelos Estados Unidos no Iraque e no Afeganistão”, diz em entrevista à Pública o editor-chefe do WikiLeaks, o jornalista islandês Kristinn Hrafnsson.

Para ele, a acusação dos Estados Unidos – de que Assange teria conspirado com Chelsea Manning para obter documentos do governo americano – é uma questão de liberdade de imprensa. “Se eles levarem adiante essa acusação, significa que nenhum publisher, nenhum editor, nenhum jornalista está a salvo em lugar nenhum do mundo”.

Leia os principais trechos.

O maior crime é a maneira como as autoridades do Equador trataram o Assange, diz diretor do Wikileaks à Pública. (Foto: JD Lasica/Flickr.)

O Twitter do Wikileaks afirma que desde 4 de abril Julian Assange seria expulso da embaixada por causa do vazamento dos documentos sobre contas offshore do presidente Lenin Moreno. Vocês já esperavam por isso?

Sim, já estávamos esperando, porque tem havido extrema animosidade do governo de Lenin Moreno. Já era sabido, desde que ele tomou posse, que ele era hostil ao Julian e queria se livrar dele. Desde o ano passado ele tem colocado uma pressão extrema sobre Julian: ordenou ao embaixador para cortar a internet, proibiu a entrada de visitantes… Foi um longo processo que foi ficando cada vez pior. No final, a embaixada já era bem pior do que qualquer prisão.

A que tipo de condições o Julian era submetido?

Havia limitações sobre as pessoas que podiam visitá-lo – eles que faziam a seleção – e não permitiram a visita de dezenas de jornalistas e ativistas. No ano passado eles instalaram câmeras de vigilância de alta resolução em todos os cantos da embaixada, monitorando todos os movimentos de Julian em áudio e vídeo. A embaixada tinha se tornado uma operação de vigilância massiva.

Nós fizemos na quarta-feira [10 de abril], um dia antes da prisão, uma conferência de imprensa aqui em Londres na qual revelamos a extensão da operação de vigilância sobre Assange, feita através da coleta de materiais via câmeras de segurança, gravações de áudio, e coleta de documentos.

Nós acreditamos que por causa dessa conferência de imprensa eles decidiram agir no dia seguinte. Todo esse material, de alguma maneira, foi parar nas mãos de um grupo de indivíduos espanhóis que tentaram nos extorquir, dizendo que se não pagássemos 3 milhões de Euros eles iriam publicar tudo. Eu fui até Madrid, relatamos o caso para a polícia espanhola, e agora abriram um caso de investigação criminal contra eles. Mas o maior crime não é esse. O maior crime é a maneira como as autoridades do Equador trataram o Assange, que é vergonhosa.

Eu chamo de vergonhosa porque um país independente que permite que uma polícia estrangeira entre na embaixada para arrastar Assange para fora de uma maneira inaceitável, foi um cenário muito bem calculado por eles. E desde então as autoridades equatorianas têm feito acusações ultrajantes sobre Assange.

Por exemplo?

Coisas sobre o que acontecia dentro da embaixada. Não podemos esquecer que Lenin Moreno, que está sendo investigado por causa do vazamento dos documentos chamados INA Papers, está acusando Assange de estar envolvido no hackeamento do seu celular, o que é uma afirmação estranha vindo de um líder de Estado, aliás.

O WikiLeaks não esteve envolvido na publicação dos INA papers, documentos que apontam para uma empresa offshore em Belize constituída pelo irmão de Lenin Moreno?

Nós não temos nada a ver com os INA Papers. A história foi publicada em outro site. A única vez que mencionamos essa história foi em um Tweet sobre uma investigação dessa denúncia que foi aberta no Equador. E já era uma coisa bastante pública. O Wikileaks não teve nada a ver com a publicação ou a obtenção dessas informações. Acho que é bastante óbvio que se trata de uma tentativa de desviar a atenção dessa investigação sobre ele [Lenin Moreno].

Durante a campanha presidencial, Lenin Moreno havia prometido manter o asilo a Assange…

Sim, ele havia feito essa promessa logo no começo, mas é uma promessa de um Estado, não de uma pessoa. Não é um indivíduo que tem a capacidade de mudar o que o Estado concordou em fazer. Se o Estado garantiu a alguém um asilo político, ele está comprometido, de acordo com a lei internacional, com aquela proteção. Mesmo que haja uma mudança na liderança não se pode arbitrária e unilateralmente decidir que você vai retirar aquela proteção. É como se você, no meio de um naufrágio, entregasse um bote salva-vidas a alguém e depois decidisse atirá-lo desse bote.

Você encontrou Assange antes da prisão?

Eu o vi há duas semanas. Ele estava aguentando bem, mas é claro que sete anos trancado na embaixada traz consequências à saúde. Ele tem um problema no ombro que precisa de um raio-x que não pode ser levado para dentro da embaixada, um problema dentário que não pode ser tratado dentro da embaixada. E o Reino Unido não permitiu que ele saísse para ir a esses médicos.

No final do mês o relator especial da ONU para o direito à privacidade estava agendado para visitar Assange na embaixada para verificar a sua condição.

Na verdade, essa visita já estava marcada para antes mas o Equador não a permitiu, então remarcaram para dia 25 de abril, junto com outro Relator Especial da ONU para Privacidade. E sabíamos que Lenin Moreno iria expulsá-lo antes disso. Porque eles iam ver as condições chocantes às quais estavam submetendo uma pessoa que prometeram proteger.

Vocês acreditam que essas condições seriam equivalentes a tortura?

Sim, é similar à tortura viver nessas condições. E não vamos esquecer que a ONU havia declarado há algum tempo que Julian estava sendo mantido em detenção arbitrária, e instruído o Reino Unido a fazer o máximo possível para garantir sua liberdade e recompensá-lo pelo tempo que ele passou na embaixada.

Tanto o Reino Unido como os Estados Unidos – e a Suécia – negaram diversas vezes haver um pedido de extradição nos EUA. Como vocês receberam essa notícia?

Nós soubemos desde o ano passado através de um erro que aconteceu em outro processo judicial que havia uma denúncia secreta contra Assange. E vimos ontem no tribunal o documento de fato. E ao longo dos anos a imprensa nunca acreditou em nós quando dizíamos isso. Mas agora podemos dizer, de maneira triste até, que estávamos certos o tempo todo.

O que mudou agora é que todos sabem do que se trata, está agora à vista de todos e não escondido atrás de cortes secretas, com acusações fantasmas. Trata-se de um pedido de extradição para os Estados Unidos, com a possibilidade de Julian enfrentar muitos anos na prisão por ter publicado documentos que revelaram crimes de guerra cometidos pelos Estados Unidos no Iraque e no Afeganistão.

A tal “suposta” conspiração entre Chelsea Manning e Assange, temos certeza que é apenas uma parte do cenário maior, em que se vão adicionar outros crimes depois dele ser transportado para os Estados Unidos. Ele pode ficar décadas na prisão.

Quais são os próximos passos em termos legais?

Lutar contra a extradição para os Estados Unidos, que é uma perseguição política, todo mundo pode ver isso, é um caso óbvio, e felizmente isso está sendo notado. Até mesmo o líder do Partido Trabalhista, Jeremy Corbin, afirmou ontem que ele não deve ser extraditado. Houve editoriais em diversos jornais nesse sentido. Claro, o New York Times fez um editorial sem tomar partido, o que é uma vergonha porque o jornal foi um dos que se beneficiaram com as informações recebidas através da nossa colaboração em 2010 e 2011.

Falando nisso, há diferença entre a atuação do Wikileaks e a atuação de jornais nesses vazamentos?

Na sua essência, não tem nenhuma diferença entre o que o WikiLeaks faz e o que qualquer empresa de mídia faz. E isso é exemplificado pelo fato de que houve colaboração direta entre o WikiLeaks e a imprensa. Ou seja, há um enorme perigo se eles levarem adiante essa acusação contra Assange. Significa que nenhum publisher, nenhum editor, nenhum jornalista está a salvo em lugar nenhum do mundo. É claramente uma questão de liberdade de expressão. E eu espero que editores, publishers e jornalistas se unam para lutar contra isso.

O Wikileaks tem sido repetidamente acusado na imprensa americana de conspirar com a Rússia para eleger Donald Trump, ao publicar emails do partido democrático durante a campanha de Hillary Clinton. Como isso afetou a reputação do Wikileaks?

É bastante óbvio que não há nenhum fundamento para essa ideia de que o Wikileaks teve um papel intermediário entre a Rússia e Trump nessa dita conspiração. E agora recentemente o relatório de Muller acaba de concluir que não houve nenhuma conspiração, ele não achou nenhuma evidência disso, nenhuma prova.

Tudo o que fizemos é o que faz qualquer organização jornalística, conseguimos informação relativa às eleições americanas, e publicamos a informação, como é dever de qualquer jornalista. Não é nem uma escolha, é um dever de qualquer jornalista, ter que reportar informações sobre os candidatos e partidos antes das eleições. Eram informações noticiosas, verdadeiras e de interesse público. Tanto é que basta olhar todos os jornais e canais de mídia que publicaram notícias baseadas nesses dados. É revoltante que se aponte apenas para o Wikileaks, já que toda a mídia escreveu sobre isso.

Julian Assange já declarou diversas vezes que não havia nenhuma evidência que os e-mails vieram de um ator estatal, ou de um ator russo. E todos sabem que a própria ideia do WikiLeaks vai nesse sentido, o Wikileaks não tem a intenção de saber quem é a fonte da informação, para dessa maneira protege-la. É uma plataforma onde qualquer pessoa pode vazar informações. O trabalho é avaliar o material, ver se é relevante, se é de interesse público, é um trabalho simplesmente jornalístico, nem mais nem menos que isso.

Agora, as organizações de mídia tendem a ser distraídas pelos políticos, e é bem óbvio que a liderança do partido democrático precisava de um bode expiatório para jogar nele o que percebeu como uma derrota humilhante, a de perder votos e colégios eleitorais para Donald Trump. E em menos de 24 horas decidiram culpar o WikiLeaks e a Rússia.

Agora a história da conspiração já colapsou, e nada prova que o WikiLeaks fez qualquer coisa além de seguir um procedimento jornalístico.

Qual a relevância do WikiLeaks hoje e qual o futuro do WikiLeaks, com Assange preso?

Nós vamos continuar o trabalho apesar de não termos acesso direto ao Assange. Tem sido difícil operar com ele preso na embaixada, e nós vamos achar uma maneira de seguir com o trabalho. Há muitas pessoas que acreditam nas ideias pelas quais trabalhamos, e não tenho dúvidas que seguiremos em frente, porque o WikiLeaks é um elemento necessário para o jornalismo hoje. Tivemos um enorme efeito sobre o jornalismo mundial nos últimos dez anos: todas as maiores organizações de mídia agora têm seu Dropbox seguro para receber vazamentos, há muitos jornalistas trabalhando em colaborações transnacionais, como nos Panamá Papers, um modelo que nós criamos, e também inspiramos diversos informantes a vazarem informações, como Edward Snowden.

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Natalia Viana é jornalista há 18 anos, diretora e co-fundadora da Agência Pública e Jornalismo Investigativo. Cobriu temas sociais internacionais, desde o drama dos refugiados tibetanos no Norte da Índia, indígenas sob massacre na Colômbia e em favelas de Cancún, no México, até violações de direitos humanos do regime autoritário em Angola e suas relações com a empresa brasileira Odebrecht. É autora e co-autora de quatro livros sobre violações direitos humanos: Plantados no Chão (Conrad, 2007), uma denúncia dos assassinatos políticos no Brasil entre os anos de 2003 e 2006, Jornal Movimento, uma Reportagem (Manifesto, 2010) e Habeas Corpus: Que Se Apresente o Corpo (Secretaria de Direitos Humanos, 2010), sobre os desaparecidos políticos e o e-book O Bispo e Seus Tubarões, sobre o impeachment de Fernando Lugo no Paraguai (Agência Pública, 2013). Como repórter e editora, venceu diversos prêmios de jornalismo,  entre eles o Prêmio Vladimir Herzog de Direitos Humanos (2005 e 2016), o prêmio Comunique-se (2016/2017), o Prêmio Trofeu Mulher Imprensa (2011/2013) e o prêmio Gabriel García Márquez (2016). Em 2018, foi reconhecida como empreendedora social da rede Ashoka e passou a integrar o Conselho Reitor da Fundação Gabriel García Márquez.