Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Do Stonewall à Parada do Orgulho LGBT

Publicado originalmente no site da Agência Pública

Neste ano, a Parada do Orgulho LGBT de São Paulo – ocorrida no domingo, 23 de junho -, celebrou o aniversário de 50 anos da revolta de Stonewall. Em 28 de junho de 1969, frequentadores do lendário bar gay Stonewall Inn, localizado no bairro de Greenwich Village, em Nova York, reagiram a uma das corriqueiras batidas policiais no estabelecimento e deram início a seis noites de protesto que são consideradas um divisor de águas para o movimento LGBT nos Estados Unidos e no mundo. O Dia Internacional do Orgulho LGBT, inspirado pelo evento, é comemorado anualmente na mesma data.

A Pública entrevistou, em Nova York, o jornalista e escritor norte-americano Eric Marcus sobre a importância histórica desses protestos. Ele é fundador do consórcio Stonewall 50, que tem realizado programação intensa em comemoração do 50º aniversário do fatídico evento, criador e apresentador do podcast Making Gay History, cujos episódios narram memórias de personagens importantes para o movimento LGBT nos EUA.

Marcus explica que o ativismo gay [em tradução literal] já existia nos Estados Unidos antes da rebelião de Stonewall, mas que a data é um marco porque, a partir dela, houve uma importante organização do movimento e a criação de novos grupos militantes no país, assim como marchas pelos direitos LGBT. “As paradas anuais têm o potencial de celebrar de onde viemos e mostrar para onde precisamos ir”, diz. E acrescenta: “Para o mundo lá fora, falamos: estamos aqui, nessa enorme comunidade LGBT, e não vamos embora. Especialmente nos Estados Unidos de hoje, onde temos um governo tão antigay, é muito importante deixar claro que não vamos desistir dos direitos que duramente conquistamos.”

Como você explicaria a revolta de Stonewall para quem nunca ouviu falar dela?

Em Nova York, nos anos 1960, eram comuns batidas policiais em bares gays, que não tinham licença para funcionar [era proibido vender bebidas alcoólicas a homossexuais, por isso os bares gays eram clandestinos]. O gerente e os bartenders eram presos e o álcool, confiscado. Eram presas também algumas das pessoas que estavam no local, geralmente aquelas cujo comportamento não era o esperado para seu gênero, ou homens vestidos de mulher – porque era permitido prender homens que não estavam usando no mínimo três peças de roupa apropriadas para seu sexo biológico. Por exemplo, se eu fosse um homem vestido como mulher, mas estivesse usando cueca, camiseta e alguma outra peça convencionalmente masculina, não podia ser detido. Normalmente, aqueles que não haviam sido levados pela polícia iam embora aliviados depois das invasões, que costumavam acontecer no início da noite. Por alguma razão, naquele dia, a ação policial se deu mais tarde, à 1h20 da manhã. Era uma noite quente de verão quando a polícia entrou e fez o que sempre fazia: ligou as luzes, verificou as identidades de quem estava ali e mandou todos para fora, mas já havia gente na rua por causa do calor. O que aconteceu foi que as pessoas não deixaram o local, ficaram na entrada do bar e comemoravam conforme seus amigos saíam – estavam se divertindo. Aparentemente, aquele não foi o único incidente da noite. Uma série de coisas ocorreu: uma drag queen, ao ser pega pela polícia, revidou e acabou apanhando; uma mulher lésbica resistiu à prisão. O que aquela noite teve de diferente foi o revide da comunidade LGBT contra a opressão policial. O episódio se prolongou pelas seis noites seguintes, sendo que, na primeira delas, a polícia mandou a força tática e, quando a situação já começava a se acalmar, chegaram homens com escudos, máscaras e armas – acho que foi esse o estopim da revolta. Como o Stonewall fica numa parte antiga da cidade, onde as ruas se cruzam de maneiras diversas, os policiais não conseguiram encurralar os manifestantes porque eles conheciam a área. Se eram cercados por um lado, davam a volta no quarteirão. Ou seja, a combinação de vários fatores influenciou os acontecimentos daquela noite: a localização do Stonewall, a brutalidade da polícia, o horário da invasão.

Fachada do bar Stonewall Inn, em Nova Iorque. (Foto: André Lopes/ Agência Pública)

Por que as invasões a bares eram tão comuns naquela época? Havia algum tipo de respaldo legal por trás delas?

Havia leis estaduais que regulavam a venda de bebidas alcoólicas. No estado de Nova York, era proibida a comercialização de álcool em “estabelecimentos de desordem”. Homossexuais eram, por natureza, considerados “desordeiros”, então você não podia vender a eles bebidas alcoólicas no seu estabelecimento. Como ninguém conseguia autorização para manter um bar gay, isso acabava nas mãos da máfia e do crime organizado. Sendo os bares ilegais, a polícia tinha permissão para invadi-los e fechá-los. A máfia fazia dinheiro com o público gay que frequentava seus bares – muitos deles, sem licença, eram chamados de dives, não tinham saídas de emergência ou água limpa e serviam bebidas em copos sujos. As autoridades queriam limpar o Greenwich Village e a Times Square, então a polícia invadia e interditava esses bares, além de prender quem estava lá. A máfia pagava a polícia para que fizesse vista grossa e reabria os bares no dia seguinte.

Pode-se dizer que a época foi outro fator que contribuiu para a revolta de Stonewall ter ocorrido?

Num período em que já havia muitos protestos nos Estados Unidos – era o fim dos anos 1960 –, aquele foi pequeno em comparação, por exemplo, à convenção do Partido Democrata de 1968 em Chicago, às manifestações após o assassinato de Martin Luther King ou aos conflitos antiguerra contra a polícia. Esse foi apenas um de muitos conflitos contra a polícia em Nova York, nos Estados Unidos e no mundo. Precisamos olhar para ele segundo o contexto da época: desafiar as autoridades era típico do momento. Mas, se não tivesse havido uma organização imediata para canalizar rapidamente a energia e a raiva resultantes desse processo, talvez não nos lembraríamos hoje do que foi Stonewall.

De que maneira ocorreu essa organização?

Os organizadores das primeiras reuniões pós-Stonewall eram pessoas envolvidas no movimento gay desde os 1960 ou antes. Além dos encontros, eles promoveram o primeiro Dia da Libertação Gay da Rua Christopher [em inglês, Christopher Street Gay Liberation Day, a primeira parada LGBT de que se tem notícia no mundo], em junho de 1970. Pediram também a outras organizações que promovessem eventos para marcar o primeiro aniversário da revolta de Stonewall e marchas ocorreram em Chicago e Los Angeles naquele ano. Essa primeira parada, na verdade, era a continuação de um protesto anual chamado Reminder Day, todo dia 5 de julho desde 1965 – o primeiro ocorreu na Filadélfia –, para relembrar a população dos Estados Unidos de que a comunidade gay não tinha seus direitos assegurados pela Constituição. Os organizadores dessa marcha se reuniram logo depois de Stonewall e decidiram transferi-la para o último domingo de junho, para se integrar ao Dia da Libertação Gay da Rua Christopher. Os organizadores transformaram Stonewall em uma marca, em um evento para ser lembrado, e ao longo dos anos seu simbolismo atingiu proporções maiores que as do próprio evento. Em termos gerais, pode-se dizer que a comunidade LGBT revidou a opressão da polícia no Stonewall, inspirando uma expansão dramática do movimento por direitos gays nos Estados Unidos que eventualmente se espalhou pelo mundo. Stonewall é basicamente um símbolo da luta da comunidade gay por liberdade.

O jornalista norte-americano Eric Marcus é fundador do consórcio Stonewall 50. (Foto: André Lopes/ Agência Pública)

Havia lugares em Nova York onde as pessoas LGBTQ não eram bem-vindas?

Se você pudesse ser visualmente identificado como gay, precisava ter cuidado. Uma das pessoas que entrevistei, Martin Block [fundador e primeiro editor da One Magazine, revista pelo direitos dos homossexuais], era uma pessoa que se comportava de uma maneira não esperada para seu gênero; podia-se dizer que era um garoto homossexual. A preocupação em evitar ser espancado ou perseguido pela polícia era frequente em sua vida e ele só se sentia seguro em algumas ruas do Greenwich Village, em um local como o Stonewall. No entanto, não podemos generalizar e dizer que isso valia para todas as pessoas gays. A maioria delas, homens e mulheres, vivia escondida: escondiam a orientação sexual e se vestiam de modo a se parecer com todo mundo. Mas se você fosse visivelmente gay, com base nos estereótipos que as pessoas tinham, a vida poderia ser muito perigosa. Também dependia da sua profissão: se fosse um policial gay, não poderia frequentar os bares, teria que ter muito cuidado. A polícia assediava e às vezes batia em pessoas gays, invadia bares. Em muitos lugares do país, quando os bares eram invadidos, os indivíduos detidos tinham seus nomes publicados na primeira página do jornal no dia seguinte com informações sobre seu endereço e local de trabalho. Muitos deles tinham seus casamentos destruídos, perdiam os filhos, os empregos. Isso acontecia em todo o país, inclusive aqui em Nova York. Há um ensaio da revista Time que eu cito no meu livro, publicado em 1966 e não assinado – por isso suponho que tenha partido dos editores da revista –, cuja última linha dizia que a homossexualidade nunca seria nada além de uma doença permissiva, e essa era uma das coisas mais gentis escritas ali. Toda a sociedade olhava a homossexualidade como uma doença, um pecado ou algo contra a lei.

O que mudou para a população LGBT nos Estados Unidos após Stonewall?

Imediatamente depois, muito pouco. Olhando para trás, parece que as coisas aconteceram da noite para o dia, mas levaram tempo. As primeiras organizações de defesa dos direitos gays eram pequenas e não tinham muito dinheiro, tampouco funcionários contratados. A crise da aids [ocorrida nos Estados Unidos na década de 1980] foi outro ponto de virada que forçou organização e tirou muitos gays do armário – se não fosse por isso, não acredito que estaríamos onde estamos agora, por mais trágico que tenha sido. O que aconteceu de novo nos anos seguintes à revolta de Stonewall foi o surgimento de múltiplas organizações ao redor do país que inseriram milhares de pessoas gays no movimento.

O Stonewall fica na Rua Christopher, no bairro de Greenwich Village. (Foto: André Lopes/ Agência Pública)

Transexuais, lésbicas, gays, drag queens, imigrantes, negros e até pessoas em situação de rua participaram dos protestos em junho de 1969. Depois de Stonewall, essas pessoas foram levadas em conta, na sua análise?

Acho que não. Os jovens que estavam nas ruas levavam uma vida anárquica e alguns deles se envolveram com o movimento. Era difícil para eles e era difícil para os organizadores, porque eram culturas diferentes. Também havia preconceito contra os os jovens que não se comportavam da maneira esperada para seu gênero. Até mesmo a grande marcha dos direitos homossexuais em Washington, em 1993 [uma das maiores da história dos EUA], foi gay, lésbica e bi. Isso agora é uma grande questão, mas não era, não se incluíam os transgêneros. Tem havido muita tensão ao longo dos anos sobre a expansão do movimento para incorporar outros grupos. Não era como se houvesse um corpo diretivo que estabelecesse o controle de tudo e um plano no sentido de incluir todos os grupos – o movimento não era muito hierárquico. E houve conflitos entre pessoas que estiveram no movimento desde os anos 1960 e 1950 e as pessoas que se juntaram a ele em 1969 e 1970. Eles acusaram os veteranos de serem dinossauros e os veteranos acusaram os jovens de serem infiltrados do FBI que roubaram o movimento deles. Acho que, quando olhamos para trás agora, dizemos que houve muita insensibilidade. Os homens eram sexistas e as mulheres eram intolerantes com as pessoas transexuais. Elas eram frequentemente referidas como travestis, o que é uma palavra ruim agora aqui nos Estados Unidos. Foi bem complicado. Por isso, para as comunidades marginalizadas em Nova York, essa situação não acabou depois de Stonewall: a cidade ainda tem milhares de crianças que moram na rua, rejeitadas por suas famílias porque não têm gênero definido, e são principalmente “jovens de cor”, latinos e negros. Eles vêm de todo o país e vivem nas ruas aqui.

Apesar das limitações, por que é tão importante, ainda hoje, celebrar a revolta de Stonewall?

As coisas não mudaram logo em seguida, mas ao longo do tempo. Acho que as paradas anuais têm o potencial de celebrar de onde viemos e mostrar para onde precisamos ir. Existem tensões agora entre as pessoas que dirigem a parada aqui em Nova York e em outros lugares e as pessoas que dirigem a parada anual do Orgulho Gay: a parada deveria ser uma celebração ou um protesto? Este ano nós teremos a usual parada do Orgulho Gay, com os carros alegóricos e tudo o mais, e teremos uma parada de protesto, que se iniciará pela manhã e percorrerá a rota original. As pessoas têm a oportunidade de decidir o que Stonewall significa para elas e participar de um protesto, de uma celebração ou qualquer coisa que elas queiram fazer. Para o mundo lá fora, estamos dizendo: “Estamos aqui, nessa enorme comunidade LGBT, e nós não vamos embora”. Especialmente nos Estados Unidos de hoje, onde temos um governo tão antigay, é muito importante deixar claro que não vamos desistir dos direitos que duramente conquistamos.

Que lições o movimento LGBT brasileiro poderia aprender com o norte-americano, já que, com a eleição de Jair Bolsonaro, os contextos nos dois países se tornaram similares pelo menos no que diz respeito às pautas morais?

Sempre houve altos e baixos. Geralmente, quando damos dois passos à frente, temos que dar um passo atrás. Nos Estados Unidos, se você olhar para a história do movimento pelos direitos gays, repetidamente tivemos avanço e retrocesso. A chave é seguir em frente e, para isso, é preciso dar visibilidade aos LGBTs, o que significa se assumir sempre que puder, quando não for perigoso. Esse tem sido nosso segredo aqui nos Estados Unidos: ganhar uma pessoa de cada vez, com sua família, com seus vizinhos, com seus colegas, se isso for possível. Esta é a chave: organização. Os direitos gays não surgiram de forma simples depois da revolta de Stonewall. Juntos, somos mais poderosos.

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Anna Beatriz Anjos é jornalista investigativa dedicada à cobertura de violações de direitos humanos. Trabalha como repórter da Pública desde janeiro de 2016.