Publicado originalmente no site da Agência Pública
O reino da Igreja Universal é grandioso e segue em franco crescimento. O bispo Edir Macedo comanda, de forma totalmente vertical, como líder absoluto, 10 mil templos, 14 mil pastores e milhões de fiéis espalhados por 95 países. Os líderes mais antigos, quando começam a ter mais influência entre os fiéis, são enviados para o exterior. A palavra final é sempre dele.
Em 2015, segundo pesquisa do Datafolha, a Universal era vista como a quinta instituição de maior prestígio entre os brasileiros, à frente do Judiciário, da Presidência da República, do Congresso Nacional e dos partidos políticos. O bispo é um magnata da comunicação no Brasil, dono da rede Record de televisão e também tem partido político, representantes no Congresso, no Executivo e à frente da prefeitura do Rio de Janeiro. Seu apoio eleitoral vale ouro e todos os presidentes das últimas décadas desfrutaram dele e em algum momento apertaram sua mão. E o bispo, homem pragmático que é, apoiou todos. Mudou de ideia muitas vezes, sobretudo com relação ao PT, que ora era encarado como inimigo – Lula já foi associado ao próprio Satanás -, ora convidado a subir ao púlpito ao seu lado.
Tudo isso está no livro do jornalista Gilberto Nascimento, O reino, escrito a partir de uma investigação de quatro anos que mergulha em documentos, processos judiciais, entrevistas com familiares, amigos, ex-funcionários, ex-pastores e conta uma história minuciosa e saborosa que começa com o nascimento de Edir Macedo e segue por sua infância, adolescência, a entrada para a vida religiosa e a construção do império da Universal do Reino de Deus.
O livro traz também um impressionante capítulo sobre crimes envolvendo execuções, torturas e violência sexual a integrantes da igreja – alguns ainda não solucionados e todos tendo em comum o absoluto silêncio da instituição.
Em entrevista à Agência Pública, Gilberto Nascimento fala sobre o projeto de poder político da Universal, o futuro da igreja e sua relação com o governo Bolsonaro e com os demais governos. “Eles apoiaram todos os governos, Collor, Itamar, FHC, Lula, Dilma, Temer, Bolsonaro. Agora, todos também querem, né? Se eles chamam o PT de Satanás, mas amanhã resolvem apoiar o PT de novo, o PT vai aceitar provavelmente.”
Aqui você pode ler, com exclusividade, um trecho do livro.
Você acompanha a Universal desde o fim da década de 1990, certo? O que chamou sua atenção nessa igreja e o que o manteve olhando para ela ao longo desses anos?
As primeiras reportagens sobre a Universal eu fiz ainda em 1989. Eu trabalhava na Folha e cobria a área de igreja, mas, curiosamente, foi um dos lugares onde eu menos escrevi sobre a Universal. Em 1989, eles [da igreja] apoiaram a eleição do Collor, essa foi uma das reportagens que eu fiz. Em 1992 foi a prisão do bispo [Edir Macedo] e em 1995 teve aquele episódio do chute na santa. E aquele vídeo polêmico do Edir pedindo dinheiro, que, por acaso, fui eu que achei e a Globo que levou a fama, mas tudo bem.
Então, a partir do início dos anos 1990, eu cobri com muito mais assiduidade, no período após a compra da Record, que foi o momento em que todo mundo olhou para a Igreja Universal.
Existem várias outras igrejas pentecostais e neopentecostais que não incomodam ninguém. A partir do momento que a Universal adquiriu uma das maiores redes de TV do país, ela ficou na mira da mídia e passou a ser alvo de muita polêmica. Todo mundo foi fuçar, investigar; começaram a surgir as denúncias. Eu fui fazendo fontes e conhecendo pessoas. E, como relato no livro, quem está lá dentro nunca fala nada, mas quem sai conta coisas. Quem não tem medo, né? No livro, várias pessoas falaram pra mim em off.
A Universal é avessa à imprensa. Você teve bastante acesso para escrever o livro, pessoas próximas ao bispo, família, amigos, pastores, fiéis. Foi também um pouco dessa construção que você fez ao longo dos anos?
Sim, o livro tem um pouco de tudo. Eu ouvi bastante gente, ex-bispos, ex-pastores, ex-executivos do grupo. E tenho tudo gravado. Tenho entrevistas, depoimentos, matérias e reportagens que eu mesmo fiz ao longo dos anos; tudo isso foi juntado com informações da própria biografia oficial do bispo, com materiais de teses acadêmicas, alguns livros acadêmicos. Deu muito trabalho, porque a ideia foi essa, contar história. A biografia oficial já existia, ele escreveu um livro chamado O bispo e três volumes do Nada a perder, mas pessoas que saíram da instituição não aparecem, foram apagadas. E essas pessoas queriam contar também a sua versão. Aí, um dia, um desses religiosos querendo falar sobre a história dele e conversando comigo, nasceu a ideia de fazer o livro.
Você não chegou a falar com o Edir Macedo nem durante a pesquisa do livro nem depois? Ele não entrou em contato depois do lançamento?
Ele não dá entrevista. Só dá entrevista para quem ele quiser, se quiser e se interessar. Foi o que ele fez a vida inteira. Eu pedi dezenas de vezes e nunca fui atendido, então durante o livro eu nem pedi. Ele deu poucas entrevistas fora da Record, e as entrevistas que ele deu são bastante citadas no livro. Eles soltaram uma nota só, na primeira reportagem que saiu sobre o livro na Folha, acho que dia 30 de novembro, uma matéria do Flávio Ferreira. E só. Disseram que eu responderia na Justiça etc. Não é um livro para atacar nem para defender; é pra contar história. E a história que está lá vem do que foi relatado, de processos e reportagens.
Qual a passagem da vida de Edir Macedo que mais marcou você escrevendo o livro?
Olha, o que chamou atenção é que ele é uma pessoa muito determinada, né?, ambiciosa e muito focada. É um empreendedor, uma pessoa de visão. Esse perfil é o que ficou claro para mim no relato e nas falas de familiares e de ex-auxiliares. Um desses ex-pastores que entrevistei contava que ele e o Romildo Soares [RR Soares, cunhado de Edir Macedo] se inspiravam e admiravam muito os pastores eletrônicos e o Macedo foi uma pessoa que teve uma visão além. Ele não queria que os fiéis só ficassem à frente da televisão, mas que fossem também para o templo, uma maneira de você ganhar seguidores e fidelizar, tê-los muito mais próximos o tempo todo, participando.
E o bispo Edir Macedo tem o livro que escreveu com um jornalista, o Plano de poder. Não é nenhum segredo que ele tenha um projeto de poder, né? Eu queria que você falasse um pouco sobre a importância do Edir Macedo nesta atual conjuntura, neste governo. Onde você posicionaria o bispo no momento que a gente está vivendo hoje?
A gente tem um governo instalado no país que tem muito desse projeto. Existem grupos que gostariam que vivêssemos numa teocracia, um sistema em que as decisões políticas, jurídicas etc. seriam tomadas com base em preceitos de grupos religiosos, ou que religiosos iriam decidir tudo, iriam tomar as decisões no país.
E agora a gente vê grupos querendo decidir se a mulher pode fazer aborto ou não pode, se pode usar roupa cor de rosa ou não pode, menino tem que usar azul e dezenas de outras coisas. Esses grupos vêm ganhando força no parlamento ao longo dos anos, vêm formando bancadas. A Universal tem trinta deputados, a gente tem a bancada evangélica.
É legítimo, dentro da democracia, que todos os grupos coloquem suas opiniões e propostas. Mas há um ativismo evangélico ganhando força cada vez mais, com uma pauta extremamente conservadora, e eles conseguiram muito avanço, foram fundamentais na eleição de um presidente da República conservador e retrógrado. As igrejas evangélicas no geral.
Esse governo que está aí eu não tenho nenhuma dúvida que é o que mais se afina ideologicamente com os desejos da igreja, mas o Edir Macedo apoiava o Geraldo Alckmin, por várias razões, até porque já tem uma aliança com o PSDB de São Paulo há muitos anos, há vários governos sucessivos. Eles apoiaram o PSDB em São Paulo mesmo quando apoiavam o Lula e a Dilma em nível federal. Eles têm secretarias, têm cargos, têm acordos na Assembléia Legislativa, onde eles têm deputados.
Então, o bispo estava com quem tinha mais chance de ganhar. Ele imaginou que seria repetida a polarização PT x PSDB e só embarcou na canoa do Bolsonaro um pouco mais para a frente, mas houve uma junção de interesses e bandeiras.
Embora, ao mesmo tempo, no livro eu mostre que o Edir Macedo também tem algumas outras questões polêmicas, como ser a favor do aborto. Ele defende o aborto e a igreja dele também se abriu em termos de questões comportamentais muito mais do que outras.
Na igreja dele, não tem exigências como na Congregação Cristã do Brasil, por exemplo, em que as mulheres não podem cortar o cabelo, têm que usar saia comprida. Abrir dessa maneira também foi uma maneira de ele modernizar um pouco a igreja e trazer mais jovens que começavam a discordar desses tipos de restrições.
Também me chamou atenção quando você escreve no livro que, em determinado momento dos anos 1990, os três maiores inimigos da Universal eram o PT, a Rede Globo e a Igreja Católica. Eu queria que você falasse um pouco dessa relação da Universal com o PT, que vai mudando ao longo desses anos.
Tem momentos que vão e voltam. Quando o bispo é preso, um dos raros políticos que vai lá prestar solidariedade é o Lula. E, mesmo assim, ele [Lula] continua sendo chamado de Satanás ou de demônio. E acho que a relação começa a mudar um pouquinho quando o Márcio Thomaz Bastos vai defender o bispo, e é quem consegue tirar o homem lá da prisão. Parece que, aos poucos, o Bastos, que era advogado do Edir e advogado do PT, vai fazendo uma aproximação, consumada quando o Lula ganha a eleição. Mas o bispo tem uma visão muito pragmática. Para mim, é claro que “se há poder, eu tô junto”. Eles querem estar com o poder.
E, se você for olhar, a aliança deles com o governo do PT dura até o último dia da Dilma… eles tinham ministério no governo Dilma. E no primeiro dia do governo Temer eles já estão com outro ministro.
Então você não vê nenhum rompimento dele com o PT na época do impeachment?
Eles [da Universal] rompem quando veem que o barco vai afundar. Que eu me lembre, não chegaram a largar cargos. Mas, sim, eles começaram a defender o impeachment da Dilma: o Marcos Pereira [Republicanos, ex-PRB], que, aliás, pouca gente lembra, é o vice-presidente da Câmara.
Que é uma pessoa superimportante para a Universal…
Eles nunca elegeram um presidente da República, mas já elegeram senadores, o prefeito do Rio e o vice-presidente da Câmara dos Deputados. E a conjuntura, agora, é muito mais favorável ao crescimento. É uma relação que interessa para os dois lados. Qualquer governo quer o apoio e o voto da igreja, e eles sabem disso, então eles negociam isso.
Você acha que o fato de a Igreja Universal ter um “líder absoluto” também conta nesse sentido?
Só fala com ele, decide com ele e está decidido dentro da estrutura: cumpra-se a ordem. Ele é centralizador, ao mesmo tempo que delega determinados poderes a auxiliares em tarefas específicas, como eu relato no livro.
Acho que poucas denominações são assim, né? Poucas igrejas têm um líder que centraliza tudo.
Eles têm um conselho de bispos na Universal, mas, como eu contei no livro, se o conselho de bispos decidir alguma coisa e ele decidir diferente, tem um momento em que ele fala “eu vou colocar a minha pata de elefante em cima disso aqui”. Pronto. Isso, um ex-executivo do grupo me contou. Se tomar alguma decisão que ele não gostar, muda e pronto.
E eles apoiaram todos os governos, Collor, Itamar, FHC, Lula, Dilma, Temer, Bolsonaro. Agora, todos também querem, né? Se eles chamam o PT de Satanás, mas amanhã resolvem apoiar o PT de novo, o PT vai aceitar provavelmente.
É interessante, também, que na política institucional ele mudou de estratégia muitas vezes. Primeiro lança candidatos, depois eles são apanhados em escândalos e vem o Republicanos (ex-PRB), mas ele nega ligação com o PRB durante um tempo…
Mas tinha, na verdade, desde o PL. O PL não era só da Igreja Universal, mas era um partido de religiosos ligados à Igreja Universal. O Republicanos só tem bispos e pastores. Até na última eleição, eles vêm procurando fazer isso, o ex-PRB vem se abrindo para representantes de outras denominações, mas, na essência é o pessoal da Universal. Acho que aí é uma estratégia até de fortalecimento do partido, uma tentativa de trazer alguns outros grupos religiosos aliados que caminhem junto e que, na verdade, ajudem a fortalecer o projeto deles.
Em um dos capítulos, você traz também alguns escândalos de corrupção e crimes terríveis que aconteceram com membros, pastores, que envolveram a Universal de alguma maneira. Tem o caso daquele menino que foi sexualmente violentado, torturado e morto por pastores. Minha pergunta é se você consegue identificar um padrão de comportamento da igreja com relação a esses crimes.
Olha, nesses casos a igreja praticamente não se manifestou. No caso do Lucas Terra [menino de 14 anos que foi violentado sexualmente, torturado e morto em 2001 por pastores da Universal], entrevistei o pai e a mãe, o promotor, falei com jornalistas lá da Bahia que acompanharam bastante o caso, falei com advogados e li tudo o que saiu, li o livro do pai do menino, li todas as reportagens. Eu só vi em um momento a fala da igreja, de que aquilo seria uma ação individual da pessoa que cometeu o crime. Isso no caso daquele primeiro pastor que foi condenado, o Silvio Galiza. Nos demais casos, eu não lembro de ter visto, de tudo que eu fui ler.
A igreja teve que pagar uma indenização para os pais do menino, não foi?
É, isso foi contado pelo pai do menino e estava em reportagens na imprensa. Eles nunca falaram sobre esse caso.
É por isso que eu pergunto se a postura é parecida com relação aos escândalos e crimes que envolvem a igreja de alguma maneira…
Eu não vi manifestações da igreja sobre esses casos e certamente eles vão dizer que não têm nada a ver com isso. Vão dizer que o João Monteiro de Castro [vereador, obreiro da Universal e laranja na compra da TV Rio que foi executado ao ter o carro alvejado por vinte tiros de fuzil, também no Rio de Janeiro, em 2004] e o Waldir Abrahão [outro político e laranja da Record, segundo o livro, e que também morreu de forma misteriosa com ferimento na cabeça, em 2009] não eram mais da igreja. No caso do Valdeci Paiva de Jesus [pastor da Universal e recém-eleito, na época, deputado estadual pelo PSL, assassinado em 2003 no Rio de Janeiro], também não houve manifestações por parte da igreja. O ex-assessor do Valdeci acusou o bispo Rodrigues de envolvimento no caso, e o bispo Rodrigues acusou o suplente do deputado. São casos que não foram esclarecidos.
Então para fechar, aquela pergunta clássica: qual é o futuro da Universal?
No livro O bispo, que saiu em 2007, o Edir Macedo chega a escrever que o bispo Romualdo Panceiro seria o sucessor dele na igreja. Era uma figura que cresceu muito, foi por muito tempo o responsável pela Universal no Brasil e era quem tinha mais poder depois do Edir Macedo. Um tempo depois, eles rompem. O que fontes diziam era que eles brigaram, depois conversaram e chegaram a um acordo. O Romualdo foi para o exterior. Mas passam alguns anos e eles rompem de vez. O Romualdo está fora da igreja.
Eu mostro isso no livro, os líderes mais antigos e mais tradicionais da Universal, os bispos que têm uma liderança junto aos fiéis foram mandados para fora do país e cada um ficou com um quinhão, um reduto: Califórnia, México, Espanha, Portugal. Ele [Edir Macedo] tirou esse pessoal de cena, tirou da estrutura de comando, tirou do centro. E passou a dar poder ao genro, o bispo Renato Cardoso, que é casado com a filha. Que é uma maneira de concentrar o poder com a família. Amanhã, se o bispo não estiver mais aí, o poder ficaria nas mãos do genro e da filha.
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Andrea Dip é repórter especial e editora na Agência Pública de Jornalismo Investigativo.