Publicado originalmente no site da Agência Pública
O Festival 3i reuniu mais de 400 pessoas com as mais variadas experiências, histórias de vida e atuação na Fundição Progresso, no Rio de Janeiro, para celebrar o que todas elas compartilham: a paixão pelo jornalismo. Em vez de dar destaque à crise que assola o jornalismo comercial, o festival entusiasmou o público ao apresentar ideias, experimentos e projetos que estão reinventando a profissão.
“O jornalismo não é uma profissão, é um estilo de vida”, resume a costa-riquense Giannina Segnini, professora da Universidade Columbia que fundou a primeira editoria de dados do continente, unindo jornalistas e desenvolvedores na Costa Rica. “Ele afeta toda a sua vida.” Ela estava na mesa “O trabalho do jornalista: vazamentos, prospecção de dados e tecnologia”, junto com Glenn Greenwald, do The Intercept Brasil, e Marcel Gomes, da Repórter Brasil. Em resposta, Marcel Gomes listou os motivos pelos quais o jornalismo é importante para a sociedade: serve para organizar o debate público, entreter e organizar o fluxo de debate. “Mas eu destacaria atualmente o trabalho de fiscal da democracia.”
Para Glenn, “não tem regras muito rígidas para como se deve fazer jornalismo. Para mim, jornalismo é uma ferramenta para proteger a democracia, direitos humanos, igualdade, contra as ameaças”. É por isso que, explica o jornalista e advogado americano, “quando eu recebi um arquivo enorme com os segredos dessa facção poderosa, mostrando não a imagem construída pela mídia brasileira, mas a verdade, eu sinceramente acho que não tinha outra alternativa a não ser publicar esse material. Era não só nosso direito, mas nosso dever publicar essas informações de interesse público. É a única decisão que jornalistas de verdade conseguiriam fazer”. Glenn disse acreditar que o futuro do jornalismo vai ser decidido por grandes vazamentos digitais.
Colaboração e luta contra desinformação
O primeiro debate do festival, no sábado, dia 19 de outubro, teve como tema a luta contra a desinformação e como alguns países estão conseguindo, por meio de parcerias entre dezenas de veículos, vencer a tendência da manipulação do debate eleitoral por notícias falsas.
A mexicana Tania Montalvo coordenou a aliança “Verificado 2018”, uma iniciativa que reuniu diferentes veículos para combater as notícias falsas durante as eleições de 2018 no México. Ao mesmo tempo, fizeram parceria com a autoridade eleitoral em iniciativas para combater a desinformação.
Ela explica: “Essa aliança tinha o objetivo de ser multiplataforma, para chegar ao máximo de gente, estar em todos os terrenos”. Para ela, “é importante pensar que a desinformação não está só nas redes sociais” e que é muito importante “explicar, explicar, explicar. Em diferentes formatos e tons”.
“Hache” Ariel Merpet, do site argentino Chequeado, pioneiro de fact-checking na América Latina, destaca dois aspectos principais do trabalho dos checadores: aumentar o custo da mentira e ensinar os cidadãos a participar do debate público com as melhores ferramentas disponíveis. Para ele, é preciso pensar na desinformação também a partir do conceito de “imunidade coletiva”: imunizar a maior quantidade possível de pessoas para que a “doença” da desinformação não chegue àqueles mais vulneráveis, que não podem ser imunizados, para que eles também possam ficar seguros.
O Chequeado atualmente lidera a coalizão Reverso, que reúne mais de 120 veículos na luta contra a desinformação durante o processo eleitoral argentino. A coalizão produziu um vídeo que demonstra como funcionam deep fakes que usam os rostos de candidatos à presidência e foi exibido por canais de televisão, ajudando a dar mais visibilidade à parceria.
A urgência da colaboração no jornalismo foi tema da segunda mesa, que teve participação de María Teresa Ronderos, premiada jornalista colombiana que acaba de lançar o Centro Latino-Americano de Investigação Jornalística (Clip, na sigla em espanhol), organização especializada em facilitar e coordenar investigações transnacionais no continente, e José Roberto de Toledo, membro do Consórcio Internacional de Jornalismo Investigativo (ICIJ, na sigla em inglês), editor da revista piauí e comentarista no podcast Foro de Teresina.
“Há pautas e histórias que nem o melhor dos repórteres consegue fazer sozinho”, diz Toledo. Ele acredita que “é cada vez mais importante que jornalistas colaborem com profissionais com habilidades complementares às deles”. E que “o jornalismo é uma atividade competitiva, sempre foi, mas não precisa nem deve ser solitária”.
“A essência do jornalismo é compartilhar informação – por que não compartilhar as técnicas que usamos para chegar a essas informações?”, finaliza.
A colaboração foi um tema transversal em todas as mesas do Festival 3i. E não à toa. Afinal, a programação do evento é construída colaborativamente pelas organizações que fazem parte do Conselho. ((o))eco, Agência Lupa, Agência Pública, Congresso em Foco, Énois, Jota, Marco Zero Conteúdo, Nexo, Nova Escola, Poder360, Ponte Jornalismo, Projeto #Colabora e Repórter Brasil se reúnem e pensam conjuntamente nos temas e na composição das mesas, para que elas reflitam os principais desafios enfrentados por quem está empreendendo no jornalismo brasileiro.
A última mesa do primeiro dia falou sobre riscos e ameaças ao trabalho do jornalista. Fabiano Maisonnave, correspondente da Folha de S.Paulo na Amazônia, afirmou que o trabalho ficou mais perigoso com o governo Bolsonaro, mas principalmente para as pessoas sobre quem ele escreve. Ou seja: quem corre mais perigo são suas fontes e os comunicadores locais de alguns lugares que ele cobre.
A jornalista peruana Nelly Luna, do site Ojo Público, explicou que, no Peru, atividades que constituem as principais fontes de ameaça para jornalistas são mineração ilegal, narcotráfico e tráfico de madeira e espécies. O site sofreu uma série de processos judiciais – e nem sequer foi informado deles.
Uma dica importante dessa mesa foi o alerta: o jornalista não deve se expor nas redes sociais. Nelly Luna avisa ainda que, nos temas mais sensíveis, é sempre importante para sites independentes publicar conjuntamente com veículos maiores, para proteger os jornalistas.
Estratégia pela audiência
No domingo, dia 20 de outubro, a primeira mesa do festival, mediada pela jornalista Marina Menezes, do Nexo, debateu as estratégias e as formas de mudar a relação de veículos jornalísticos com a audiência.
A jornalista Millie Tran, editora de redes do The New York Times, explicou a estratégia do jornal mais importante do mundo. “Depois das eleições de 2016, vimos que as redes sociais não são mais uma utopia da liberdade de expressão na internet. Por isso, precisamos pensar como transitar por elas”, disse.
“Precisamos ser transparentes para recriar essa confiança com o leitor”, diz Millie. Nesse contexto, ela cita o podcast The Daily, em que repórteres do NYT explicam bastidores das próprias reportagens e como elas foram feitas, como um exemplo de produto pensado com esse intuito.
A venezuelana Danisbel Gómez Morillo, do Efecto Cocuyo, apresentou as ações para fazer “jornalismo de inclusão”. “Dizemos que não somos somente um veículo de comunicação que transmite informação, mas que também tentamos superar o egocentrismo da mídia para colocar o cidadão no centro de uma plataforma, trabalhando de forma colaborativa.”
Desde 2016, o veículo tem contato direto com as pessoas, em convocatórias abertas para encontros, para iniciar diálogos e levantar pautas. Oferecendo um café na rua ou com aliança em instituições como ONGs, por exemplo. Cerca de 300 pessoas, em média, transitam por esses encontros em um ano.
Após a implementação da proposta, Danisbel afirma que o veículo ganhou mais sensibilidade e atenção para pautas como a desigualdade de gênero e dos direitos de imigrantes, por exemplo. “Temos que lembrar que o jornalismo também é um serviço público”, pontua.
Já a especialista em audiência Ana Freitas, da Accenture Interactive (antes chamada New Content), agência de branded-content, destacou a dificuldade do jornalismo em se envolver com novas plataformas, tecnologias e métricas. Ela diz que as redações e jornalistas se distanciam dos comportamentos de consumo das audiências. “Distanciando-se disso, o jornalismo perde a chance de criar novas formas de falar com seu público.”
Marina Menezes encerrou a mesa notando que foi a primeira discussão totalmente formada por mulheres no Festival – e que o Nexo teve muito orgulho de media-la, assim como fez na primeira edição do evento, em 2017.
Como veículos jornalísticos com modelos de negócios inovadores estão encontrando novas fontes de receita e que portas a tecnologia pode abrir nesse processo: esse foi o tema da segunda mesa do dia.
Tiago Barra, do Cappra Institute for Data Sciences, resumiu: “Erre rápido, aprenda mais rápido ainda”. Para ele, startups têm que entender que as falhas são parte crucial do lançamento de um projeto. E, segundo ele, são elas que vão levar ao sucesso.
O jornalista Rogério Galindo apresentou o projeto do jornal Plural, veículo de jornalismo independente e local sediado em Curitiba (PR). O site foi fundado depois de Galindo ter sido demitido da Gazeta do Povo por se recusar a dar apoio a Jair Bolsonaro nas eleições. Já no lançamento, o veículo conseguiu angariar 700 assinantes, sem paywall.
“A gente decidiu, pela carência da nossa cidade, fazer jornalismo local.” O modelo de financiamento é focado em assinaturas, anúncios e crowdfunding. A redação estreou há nove meses.
Indagado sobre dicas para quem quer empreender no jornalismo, ele arrancou risadas e palmas da plateia: “Eu não empreendi porque era bonito, porque queria ser dono de jornal. Empreendi porque precisava. Minha dica é: não empreendam”.
O grito das favelas cariocas
As duas mesas que encerraram o festival focaram a cobertura fora das redações tradicionais e a ampliação da diversidade nas redações. Quem deu o tom foram os jornalistas comunitários.
Vindo de Chicago, Darryl Hollyday, cofundador do City Bureau, explicou como o veículo atua como resposta à falta de diversidade e representatividade racial na mídia. Segundo ele, o projeto surgiu da pergunta: “Como nós, jornalistas, dividimos nosso poder com as pessoas?”. A resposta, segundo ele: “Informando, engajando e equipando”.
De acordo com o jornalista, a compra dos jornais locais por grandes empresas resultou na formação de desertos de notícias e comunidades sem cobertura jornalística nos Estados Unidos.
A premiada jornalista Elvira Lobato narrou o deserto de notícias em locais como o município de Japeri, no Rio de Janeiro. “As pessoas se informam por grupos de Facebook e por um jornalzinho impresso pela prefeitura”, contou.
A repórter testemunhou esse cenário ao investigar a fome para uma das reportagens especiais sobre o tema publicadas pela Pública neste ano. “Eu me senti como uma correspondente de guerra”, disse. “É preciso que os veículos independentes tenham o mesmo acesso que os grandes jornais, mas não é o que acontece no Brasil.”
Já sobre as experiências de destaque no jornalismo local, a repórter trouxe o exemplo do jornal A Sirene, de Mariana (MG), feito por e para atingidos pelo rompimento da barragem, em 2015.
O jornalista Raull Santiago questionou a cobertura dos grandes jornais: “Como falar sobre cidade se as pessoas que estão dentro das próprias redações não a conhecem?”, iniciou sua fala. “Como podemos falar de imparcialidade se a maioria das pessoas que ocupam as redações não reconhecem como é parcial, racista e violento esse espaço?” Ele questionou ainda a falta de palestrantes negras e a ausência de um representante das favelas cariocas em cada uma das mesas do festival.
“Todas as referências que eu conheço de jornalismo e de redação estão aqui na plateia. Quem é de quebrada, de favela, está aqui assistindo”, disse. “Jornalismo periférico não fala só sobre violência e morte; a gente cria, fala sobre soluções e isso fala sobre tudo.”
A última mesa do Festival 3i discutiu quem são as vozes na mídia, seja do ponto de vista das redações como das fontes.
O jornalista André Santana, pesquisador da Universidade Federal da Bahia (Ufba), criticou a restrição das pautas e entrevistas de temas raciais, que costumam estereotipar a população negra: “Quantas vezes vocês, jornalistas, entrevistaram um negro sem ser para falar de violência, esporte ou cultura? O negro não precisa falar só de diversidade. É preciso colocar negros e negras para falar de economia, relações internacionais”, provocou.
Já o jornalista argentino Matías Máximo apresentou o trabalho do Cosecha Roja, veículo que tem como foco o ativismo e coloca em pauta LGBTs, migrantes, feministas, gordas. “Em vez de usar minorias como fontes, deixamos eles contarem sua própria história em primeira pessoa”, defendeu.
Paula Cesarino Costa, editora de Diversidade da Folha de S.Paulo, afirmou que o jornal brasileiro traça um planejamento para instaurar ações afirmativas em seus processos e aumentar a diversidade da redação. Ela destacou que há poucos negros não apenas nos grandes jornais, mas nos sites independentes.
“É vergonhoso entrar em redações e não ter negros”, desabafou a editora. “A resposta da pergunta ‘Quem tem voz nas redações?’ é a mesma nos mais diferentes setores, seja no jornalismo, na economia, na política: quem tem voz é gente branca, originária das áreas mais ricas do país e que cursou as universidades mais prestigiadas. E é muito difícil mudar esse cenário.”
Finalizando o debate, o jornalista Pedro Borges, fundador do site Alma Preta, diz que “não existe possibilidade de construir democracia no Brasil sem pluralidade e diversidade de olhares”, afirmou. Ele destaca que ainda há racismo e falta de representatividade mesmo no jornalismo independente. “Mesas sobre diversidade nem deveriam ser necessárias”, declarou.
Inovação que vem das quebradas
Encerrando a sua participação, Borges pontuou a importância de dar destaque às vozes e veículos que surgem em comunidades. “Existe alguma coisa mais inspiradora, inovadora e independente do que o jornalismo produzido nas quebradas do Brasil?”
E ele estava lá em peso. O Festival 3i tomou como prioridade, em 2019, abrir espaço para comunicadores comunitários nesse grande encontro de jornalismo independente.
Graças ao apoio de organizações e empresas “patronesses”, foram disponibilizados 61 ingressos para comunicadores comunitários, selecionados por chamada pública. Além de jovens das favelas cariocas, foram apoiados comunicadores de outras cidades, como Belo Horizonte (MG), João Pessoa (PB), Olinda (PE), Palhoça (SC), Pelotas (RS), Rio Grande (RS), Vitória da Conquista (BA), Mariana (MG) e Niterói (RJ).
Ao mesmo tempo, a organização Énois, com apoio do Google News Initiative, fez uma curadoria e convite para dez iniciativas de jovens jornalistas que usam tecnologia para fazer projetos de comunicação inovadores. Os projetos ficaram expostos durante o festival no Espaço Google News Initiative e encantaram o público.
Em um dos estandes, a jornalista Carla Siccos revelava como conseguiu montar uma lista de transmissão via WhatsApp com mais de 7 mil moradores da Cidade de Deus, no projeto CDD Acontece, disseminando informação hiperlocal. Com anúncios dos comerciantes da comunidade, Carla hoje vive disso e se tornou uma referência na comunidade, realizando o primeiro debate de candidatos a vereador de Cidade de Deus.
Gilberto Vieira, um dos fundadores do Datalabe, um laboratório de jornalismo de dados na favela da Maré, no Rio de Janeiro, mostrou o Cocôzap, um levantamento colaborativo e inédito sobre a falta de atendimento da rede de abastecimento e saneamento básico feita a partir de dados enviados pelos moradores. “Sempre o principal problema é engajar as pessoas, mas estamos trabalhando nisso”, afirmou.
Andreza Delgado, do Capão Redondo, bairro da zona sul de São Paulo, apresentou o Perifacon, um evento paralelo à Comic Con onde os jovens da periferia paulistana fazem cosplay e celebram a cultura geek – que também está presente nas comunidades Brasil afora.
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Bárbara D’Osualdo é jornalista com formação pela USP e pela Université Lumière Lyon 2 (França).
Natalia Viana é diretora e co-fundadora da Agência Pública de Jornalismo Investigativo.
Rute Pina é formada pela PUC-SP e trabalha há três anos como repórter.