Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Relator da ONU: “O caso de Julian Assange é um enorme escândalo. Se ele for condenado, será uma sentença de morte para a liberdade de imprensa”

(Foto: Reprodução YouTube)

Publicado originalmente no site da Agência Pública

Uma acusação de estupro que as mulheres não fizeram, testemunhos adulterados, pressão do Reino Unido para não largar o caso, um juiz parcial, uma prisão em uma penitenciária de segurança máxima, tortura psicológica – Julian Assange enfrentou tudo isso e agora corre risco de uma extradição para os EUA, onde ele pode enfrentar até 175 anos de prisão por expor crimes de guerra.

Os Estados Unidos pedem a extradição do fundador do Wikileaks com base na Lei de Espionagem por ter publicado documentos secretos do governo americano. Enquanto aguarda o julgamento do pedido, Assange está em um presídio de segurança máxima na Inglaterra.

Pela primeira vez, o relator especial sobre tortura da ONU, Nils Melzer, fala em detalhes sobre as descobertas explosivas de sua investigação no caso do fundador do Wikileaks. Melzer é taxativo ao explicar por que o caso de Assange interessa a ele – e por que deveria interessar a todos que se importam com a democracia. “Julian Assange foi intencionalmente torturado psicologicamente pela Suécia, Inglaterra, Equador e pelos EUA”, diz.

“A coisa realmente horripilante nesse caso é a ilegalidade que se desenvolveu: os poderosos podem matar sem medo de punição e o jornalismo se transforma em espionagem. Está se tornando um crime dizer a verdade”.

Leia a entrevista:

Por que a Relatoria Especial de Tortura da ONU está interessada em Julian Assange?

Isso é uma coisa que o ministro de Relações Exteriores da Alemanha também me perguntou recentemente. Isso está dentro do seu mandato, como relator para tortura? O Assange é vítima de tortura?

Qual foi sua resposta?

O caso está sob meu mandato de três maneiras diferentes: primeiro, Assange publicou provas de tortura sistemática, mas, ao invés dos responsáveis pela tortura, é o Assange que está sendo perseguido. Segundo, ele mesmo foi tão maltratado que agora está exibindo sintomas de tortura psicológica. E terceiro, ele está prestes a ser extraditado para um país que detém pessoas como ele em condições que a Anistia Internacional descreveu como tortura. Em suma: Julian Assange denunciou práticas de tortura, foi ele mesmo torturado e poderia ser torturado até a morte nos Estados Unidos. E um caso desses não deveria ser de minha responsabilidade? Além disso, esse caso tem grande importância simbólica e afeta todos os cidadãos de países democráticos.

Por que você não assumiu o caso antes, então?

Imagine um quarto escuro. De repente, uma pessoa coloca luz sobre um elefante no quarto – e revela criminosos de guerra, ou corrupção. Assange é o homem com a lanterna. Os governos ficam primeiro em estado de choque, mas depois desviam a luz da lanterna com acusações de estupro. É uma manobra clássica para manipular a opinião pública. O elefante desaparece mais uma vez na escuridão. E Assange vira o foco da atenção, no seu lugar. E nós começamos a discutir se ele está andando de skate na embaixada ou se está alimentando seu gato corretamente. De repente, todos nós sabemos que ele é um estuprador, um hacker, um espião e um narcisista. Mas os abusos e crimes de guerra que ele denunciou desaparecem na escuridão. Eu também perdi o foco, apesar da minha experiência profissional, que deveria ter me deixado mais atento.

Vamos começar pelo começo. O que te levou a assumir esse caso?

Em dezembro de 2018, os advogados dele me pediram para intervir. Inicialmente, eu recusei. Eu estava sobrecarregado com trabalho e não estava familiarizado com o caso. Minha impressão, altamente influenciada pela mídia, também foi direcionada pelo preconceito, de que o Assange era de certa maneira culpado e queria me manipular. Em março de 2019, seus advogados me abordaram uma segunda vez, porque uma série de fatores indicava que logo ele seria expulso da embaixada do Equador em Londres. Eles me enviaram alguns documentos importantes e um resumo do caso e eu percebi que minha integridade profissional exigia que eu pelo menos olhasse para o material.

E então?

Rapidamente eu percebi que algo estava errado. Era uma contradição que não fazia sentido para mim, com minha extensiva experiência legal: por que uma pessoa seria submetida a nove anos de uma investigação preliminar por estupro, sem ser indiciado?

Isso é incomum?

Eu nunca vi um caso parecido. Qualquer um pode iniciar uma investigação preliminar contra qualquer pessoa simplesmente indo à polícia e acusando outra pessoa de um crime. As autoridades suecas , no entanto, nunca se interessaram em tomar o depoimento de Assange. Eles o deixaram num limbo intencional. Imagine ser acusado de estupro por nove anos e meio por todo um aparato de Estado e pela mídia sem nunca ter tido a chance de se defender porque nenhuma acusação formal foi feita.

Você diz que as autoridades suecas nunca se interessaram em tomar o depoimento de Assange, mas a mídia e as agências governamentais pintaram uma imagem completamente diferente durante esses anos: de que Julian Assange teria fugido da Justiça sueca para evitar a condenação.

Foi isso o que eu sempre achei, até que comecei a investigar. O oposto é a verdade. Assange se apresentou às autoridades suecas em muitas ocasiões, porque ele queria responder às acusações. Mas as autoridades o bloquearam.

O que você quer dizer com “as autoridades o bloquearam”?

Permita-me começar do começo. Eu falo sueco fluentemente e, assim, fui capaz de ler todos os documentos originais. Mal pude acreditar no que li: de acordo com o testemunho da mulher em questão, o estupro nunca aconteceu. E não apenas isso: o testemunho da mulher foi alterado pela polícia de Estocolmo sem o seu envolvimento para que, de alguma forma, parecesse ter havido um estupro. Eu tenho todos os documentos comigo, os e-mails, as mensagens.

“O testemunho da mulher foi alterado pela polícia”. Como, exatamente?

Em 20 de agosto de 2010, uma mulher chamada S. W. entrou em uma delegacia de Estocolmo junto com uma outra mulher chamada A. A.

A primeira mulher, S. W., disse que ela teve relação sexual consensual com Julian Assange, mas ele não usou preservativo. Ela disse que estava preocupada sobre ele tê-la possivelmente infectado com HIV e queria saber se podia forçar Assange a fazer um teste. Ela disse que estava muito preocupada. A polícia anotou seu depoimento e imediatamente informou promotores. Antes mesmo do interrogatório acabar, S. W. foi informada de que Assange seria preso sob suspeitas de estupro.

S. W. ficou chocada e se recusou a continuar o interrogatório. Ainda na delegacia, ela escreveu uma mensagem a uma amiga dizendo que não queria incriminar Assange, que ela só queria que ele fizesse um teste de HIV, mas a polícia aparentemente estava interessada em “colocar suas mãos nele”.

O que isso quer dizer?

S.W. nunca acusou Julian Assange de estupro. Ela se negou a participar de outros interrogatórios e foi para casa. Apesar disso, duas horas depois, uma manchete apareceu na primeira página do Expressen, um tabloide sueco, dizendo que Julian Assange era suspeito de ter cometido dois estupros.

Dois estupros?

Sim, porque havia uma segunda mulher, A. A. Ela não queria prestar queixas também, apenas estava acompanhando S. W. à delegacia. Ela nem foi interrogada naquele dia. Depois, disse que Assange a assediou sexualmente. Eu não posso afirmar, claro, se isso é verdade ou não. Só posso apontar para a ordem dos acontecimentos: uma mulher vai até a delegacia de polícia. Ela não quer prestar uma queixa, mas quer pedir um teste de HIV. A polícia, então, decide que isso pode ser um caso de estupro e um assunto para promotores públicos. A mulher se recusa a colaborar com essa versão dos acontecimentos, vai para casa e escreve para uma amiga que não era sua intenção, mas a polícia queria “colocar suas mãos” em Assange. Duas horas depois, o caso está nos jornais.

Hoje, sabemos que os promotores vazaram o caso para a imprensa – e eles o fizeram sem nem ao menos chamar Assange para depor. E a segunda mulher, que supostamente foi estuprada de acordo com a manchete do dia 20 de agosto, só foi interrogada no dia 21 de agosto de 2010.

O que a segunda mulher disse quando foi interrogada?

Ela disse que havia disponibilizado seu apartamento para Assange, que estava na Suécia para uma conferência. Um pequeno apartamento de um quarto. Enquanto Assange estava no apartamento, ela voltou mais cedo do que o planejado para casa e disse a ele que não tinha problema, e que os dois poderiam dormir na mesma cama.

Naquela noite, eles tiveram sexo consensual, com preservativo. Mas ela disse que, durante o sexo, Assange intencionalmente furou a camisinha. Se isso for verdade, então foi, claro, um crime sexual, chamado stealthing. Mas a mulher também disse que só percebeu depois que o preservativo estava furado. Isso é uma contradição que deveria ser esclarecida. Se eu não percebi, então não posso saber se o outro o fez intencionalmente. Nenhum traço de DNA de Assange ou de A. A. foi detectado na camisinha apresentada como prova.

Como as duas mulheres se conheciam?

Na verdade, elas não se conheciam. A. A., que estava hospedando Assange e trabalhando como sua assessora de imprensa, conheceu S. W. em um evento no qual S. W. estava usando um casaco de cashmere rosa. Ela aparentemente sabia que Assange estava interessado em dormir com S. W. porque, em uma noite, recebeu uma mensagem de um conhecido dizendo que gostaria de contatar Assange e respondeu: Assange aparentemente está dormindo agora com a “cashmere girl”. Na manhã seguinte, S. W. falou com A. A. pelo telefone e disse que também havia dormido com Assange e estava preocupada sobre ter possivelmente se infectado com HIV.

Essa preocupação, aparentemente, era real, porque S. W. foi a uma clínica se consultar. A. A. então sugeriu: vamos à polícia – eles podem obrigar Assange a fazer um teste de HIV. As duas mulheres, porém, não foram à delegacia mais próxima, mas a uma afastada, onde uma amiga de A. A. trabalhava como policial. Foi ela quem posteriormente interrogou S. W., inicialmente na presença de A. A., o que não é a prática apropriada.

Até aí, porém, o único problema era a falta de profissionalismo. A malevolência intencional das autoridades só se tornou aparente quando elas imediatamente disseminaram a suspeita de estupro através da imprensa tabloide, e o fizeram sem interrogar A. A. e em contradição com o depoimento de S. W.

Isso também violou uma clara proibição da lei sueca sobre vazar nomes de supostas vítimas ou acusados de ofensas sexuais. O caso, então, chamou a atenção da promotora-chefe da capital sueca e ela encerrou as investigações de estupro dias depois, com a justificativa de que, apesar dos depoimentos de S. W. serem críveis, não havia evidências de que o crime fora cometido.

Mas o caso realmente decolou. Por quê?

O supervisor da policial que conduziu o interrogatório escreveu um e-mail a ela pedindo para reescrever o depoimento de S. W.

O que a policial mudou?

Não sabemos, porque o primeiro depoimento foi alterado diretamente no computador e não existe mais. Nós só sabemos que o original, de acordo com a promotora-chefe, aparentemente não continha nenhuma indicação de que um crime havia sido cometido. Na forma editada, o depoimento diz que os dois tiveram relações sexuais muitas vezes – consensuais e sem camisinha. Mas, de manhã, de acordo com o depoimento editado, a mulher acordou com ele tentando penetrá-la sem camisinha. Ela perguntou: “Você está de camisinha?” E ele disse: “Não.” Então ela disse: “É bom você não ter HIV”. E permitiu que ele continuasse. O depoimento foi editado sem o envolvimento da mulher em questão e não foi assinado por ela. É uma prova manipulada sobre a qual a polícia sueca construiu a história de um estupro.

Por que as autoridades suecas fariam isso?

O timing foi decisivo: no final de julho, o Wikileaks – em cooperação com o New York Times, o The Guardian e a revista Der Spiegel – publicou os Diários da Guerra no Afeganistão. Foi um dos maiores vazamentos na história do exército americano. Os EUA imediatamente exigiram que todos os seus aliados enchessem Assange de processos criminais. Não sabemos de todas as conexões, mas a empresa Stratfor, uma consultoria de segurança que trabalha para o governo dos EUA, aconselhou oficiais americanos a afogar Assange com todos os tipos de processos criminais pelos próximos 25 anos.

Por que Assange não se entregou à polícia na ocasião?

Ele se entregou. Eu disse isso anteriormente.

Então elabore, por favor.

Assange descobriu as acusações de estupro através da imprensa. Ele entrou em contato com a polícia para prestar depoimento. Apesar do escândalo ter sido publicado, ele só pôde fazer isso depois de nove dias, depois que a acusação de que ele estuprou S. W. não estava mais sendo investigada. Mas os procedimentos relacionados ao assédio sexual de A. A. continuavam. No dia 30 de agosto de 2010, Assange foi à delegacia prestar depoimento. Ele foi interrogado pela mesma policial que recebeu o pedido para revisar o depoimento de S. W. No início da conversa, Assange diz que está pronto para prestar o depoimento, mas acrescenta que não quer ler sobre seu depoimento na imprensa. Isso é seu direito e ele recebe garantias de que isso seria feito. Mas, naquela mesma noite, tudo estava nos jornais de novo. E só poderia ter vindo das autoridades, porque ninguém mais estava presente durante o interrogatório. A intenção foi muito clara de manchar seu nome.

De onde veio a história de que Assange estava tentando evitar a Justiça sueca?

Essa versão foi fabricada, mas não condiz com os fatos. Se ele estivesse tentando se esconder, não teria ido à delegacia por vontade própria. Com base no depoimento editado de S. W., uma apelação foi feita contra a decisão da promotoria de suspender as investigações e, no dia 2 de setembro de 2010, o processo de estupro foi retomado. Um representante legal chamado Claes Borgström foi indicado para as duas mulheres, pago pelo governo. O homem era sócio do escritório de advocacia do antigo ministro da Justiça, Thomas Bodström, sob cuja supervisão funcionários de segurança prenderam dois homens considerados suspeitos pelo governo dos EUA no centro de Estocolmo. Os homens foram presos sem nenhum procedimento legal e entregues à CIA, que os torturou.

Isso mostra o pano de fundo transnacional desse caso. Após o reinício da investigação de estupro, Assange repetidamente indicou, por meio de seu advogado, que desejava responder às acusações. O promotor responsável continuava protelando. Em uma ocasião, não tinha agenda; em outra, o policial responsável estava doente. Três semanas depois, seu advogado finalmente escreveu que Assange precisava ir a Berlim para uma conferência e perguntou se ele podia sair do país. O escritório do promotor deu autorização escrita de que ele poderia sair do país por curtos períodos de tempo.

E então?

No dia em que Julian Assange saiu da Suécia, em um momento em que não estava claro se estava saindo por um curto período ou por um longo tempo, foi emitido um mandado de prisão. Ele voou com a Scandinavian Airlines (SAS) de Estocolmo para Berlim. Durante o voo, seus laptops desapareceram do compartimento de bagagem. Quando ele chegou em Berlim, a Lufthansa solicitou uma investigação à SAS, mas a companhia aérea aparentemente se recusou a fornecer qualquer informação.

Por quê?

É exatamente esse o problema. Nesse caso, acontecem o tempo todo coisas que não deveriam ser possíveis, a não ser que você olhe para elas de um ângulo diferente. Assange, ainda assim, continuou a viagem rumo a Londres, mas não tentou se esconder do judiciário. Através do seu advogado sueco, ofereceu uma série de possíveis datas para o interrogatório na Suécia – essas correspondências existem. Então, aconteceu o seguinte: Assange percebeu o fato de que um caso criminal secreto havia sido aberto contra ele nos EUA. Na época, isso não foi confirmado pelos EUA, mas hoje sabemos que era verdade. A partir daí, o advogado de Assange começou a dizer que seu cliente estava pronto para testemunhar na Suécia, mas ele exigia a garantia diplomática de que a Suécia não iria extraditá-lo para os EUA.

E essa era uma possibilidade real?

Com certeza. Alguns anos antes, como mencionei, agentes de segurança suecos entregaram dois homens que pediam asilo, ambos registrados na Suécia, para a CIA, sem nenhum processo legal. Os abusos já começaram no aeroporto de Estocolmo, onde foram maltratados, drogados e levados de avião para o Egito, onde foram torturados.

Nós não sabemos se eles foram os únicos casos, mas sabemos desse caso porque os homens sobreviveram. Ambos registraram queixas junto a agências de direitos humanos da ONU e venceram seus processos. A Suécia foi obrigada a pagar para cada um deles meio milhão de dólares pelos danos.

E a Suécia concordou com as exigências de Assange?
Os advogados dizem que, durante os quase sete anos em que Assange viveu na embaixada do Equador, fizeram mais de trinta ofertas para que ele fosse à Suécia – em troca da garantia de que não seria extraditado para os EUA. Os suecos recusaram a dar essas garantias argumentando que os EUA não haviam feito um pedido formal de extradição.

Qual é sua visão sobre essa exigência feita pelos advogados de Assange?

Garantias diplomáticas como essa são parte da prática internacional rotineira. Pessoas pedem garantias de que não serão extraditadas para lugares onde há perigo de sérias violações de direitos humanos, completamente independente de um pedido de extradição ter sido apresentado pelo país em questão ou não. É um procedimento político, não legal. Aqui está um exemplo: imagine que a França exija que a Suíça extradite um empresário cazaque que mora na Suíça, mas que é procurado pela França e pelo Cazaquistão por alegações de fraude fiscal. A Suíça não vê perigo de tortura na França, mas acredita que esse perigo existe no Cazaquistão. Então a Suíça diz para a França: “vamos extraditar o homem para você, mas queremos uma garantia diplomática de que ele não será extraditado para o Cazaquistão posteriormente”. A resposta francesa não é: “Cazaquistão nem registrou um pedido”. Em vez disso, eles obviamente concederiam tal garantia.

Os argumentos provenientes da Suécia foram fracos, na melhor das hipóteses. Isso é uma parte disso. A outra parte, e digo isso com base em toda a minha experiência nos bastidores da prática internacional: se um país se recusa a fornecer tal garantia diplomática, todas as dúvidas sobre as boas intenções do país em questão são justificadas. Por que a Suécia não deveria fornecer tais garantias? Do ponto de vista jurídico, afinal, os EUA não têm absolutamente nada a ver com os processos de crimes sexuais suecos.

Então por que a Suécia não ofereceu tal garantia?

Apenas veja como o caso foi conduzido: para a Suécia, nunca foi sobre os interesses das duas mulheres. Mesmo após seu pedido de garantias de que não seria extraditado, Assange ainda queria testemunhar. Ele disse: se você não pode garantir que eu não serei extraditado, estou disposto a ser interrogado em Londres ou por vídeo.

Mas é normal, ou legalmente aceitável, que as autoridades suecas viagem para um país diferente para um interrogatório como esse?

Essa é mais uma indicação de que a Suécia nunca esteve interessada em encontrar a verdade. Para exatamente esses tipos de questões judiciais existe um tratado de cooperação entre o Reino Unido e a Suécia, que prevê que as autoridades suecas possam viajar para o Reino Unido, ou vice-versa, para conduzir interrogatórios, ou que esse questionamento possa ocorrer via vídeo. Durante o período em questão, esse questionamento entre a Suécia e a Inglaterra ocorreu em outros 44 casos. Foi apenas no caso de Julian Assange que a Suécia insistiu que era essencial que ele aparecesse pessoalmente.

Por que isso?

Existe apenas uma explicação para tudo – a recusa em conceder garantias diplomáticas, a recusa em interrogá-lo em Londres: eles queriam prendê-lo para que ele fosse extraditado para os EUA. O número de violações da lei que se acumulou na Suécia apenas algumas semanas durante a investigação criminal preliminar é simplesmente grotesco. O Estado designou um consultor jurídico para as mulheres, que lhes disse que a interpretação criminal sobre o que elas vivenciaram estava a cargo do Estado, e não mais delas. Quando o consultor jurídico foi questionado sobre as contradições entre o testemunho das mulheres e a narrativa adotada pelos funcionários públicos, ele disse, em referência às mulheres: “ah, mas elas não são advogadas”.

Mas, por cinco longos anos, a promotoria sueca evitou interrogar Assange sobre o suposto estupro, até que seus advogados finalmente peticionaram a Suprema Corte Sueca a forçar a promotoria a oferecer denúncia ou encerrar o caso. Quando os suecos disseram ao Reino Unido que eles poderiam ser obrigados a abandonar o processo, os britânicos responderam preocupados: “Não ousem ficar com medo!”.

É sério?

Sim, os ingleses, ou mais especificamente o serviço de promotoria da Coroa, queriam evitar que a Suécia abandonasse o caso a qualquer custo. Quando na verdade os ingleses deveriam estar felizes por não ter que gastar mais milhões de dólares de impostos para manter a embaixada equatoriana sob constante vigilância para prevenir uma fuga de Assange.

Por que os ingleses estavam tão determinados em evitar que os suecos encerrassem o processo?

Temos que parar de acreditar que havia um real interesse de conduzir uma investigação sobre crime sexual. O que o Wikileaks fez foi uma ameaça à elite política dos Estados Unidos, do Reino Unido, da França e da Rússia em igual medida. O Wikileaks publica segredos de Estado, documentos confidenciais – eles são contra qualquer sigilo.

E em um mundo, mesmo nas chamadas democracias maduras, onde o sigilo se tornou desenfreado, isso é visto como uma ameaça fundamental. Assange deixou claro que hoje os países não estão mais interessados ​​em confidencialidade legítima, mas na supressão de informações importantes sobre corrupção e crimes. Veja o famoso caso do Wikileaks dos vazamentos fornecidos por Chelsea Manning: o vídeo Collateral Murder. [Em 5 de abril de 2010, o Wikileaks publicou um vídeo secreto das forças armadas dos EUA que mostrava o assassinato de várias pessoas em Bagdá por soldados dos EUA, incluindo dois funcionários da agência de notícias Reuters.]

Como um conselheiro de longa data para o Comitê Internacional da Cruz Vermelha em zonas de guerra, eu posso te dizer: o vídeo sem sombra de dúvida documenta um crime de guerra. A tripulação de um helicóptero simplesmente matou um monte de gente. Pode até ser que uma ou duas dessas pessoas estivessem carregando uma arma, mas as pessoas feridas foram alvos intencionais. Isso é um crime de guerra. “Ele está ferido”, você pode ouvir um americano dizendo. “Estou atirando.” E então eles dão risada. Então uma van chega para ajudar os feridos. O motorista está com duas crianças. Dá pra ouvir os soldados dizerem: “Bom, é culpa deles terem levado as crianças para uma guerra”. E abrem fogo. O pai e os feridos são imediatamente mortos, mas as crianças sobrevivem com sérios ferimentos. Através da publicação do vídeo, nós nos tornamos testemunhas de um massacre injusto e criminoso.

O que uma democracia constitucional deve fazer em uma situação dessas?

Uma democracia constitucional provavelmente investigaria Chelsea Manning por violar o sigilo oficial, porque ela passou o vídeo para Assange. Mas certamente não iria atrás de Assange porque ele publicou um vídeo de interesse público, o que faz parte das práticas do jornalismo investigativo clássico.

Mais do que isso, uma democracia constitucional investigaria e puniria os crimes de guerra. Esses soldados deveriam estar presos. Mas nenhuma investigação criminal foi aberta contra nenhum deles. Em vez disso, o homem que informou o público está preso em uma penitenciária pré-extradição em Londres e pode enfrentar uma condenação nos EUA de até 175 anos de prisão. É uma sentença completamente absurda. Para comparar, os principais criminosos de guerra do tribunal da Iugoslávia receberam sentenças de 45 anos. Cento e setenta e cinco anos de prisão em condições que foram consideradas desumanas pelo Relator Especial da ONU e pela Anistia Internacional.

Mas a coisa realmente horrível nesse caso é a ilegalidade que se desenvolveu: os poderosos podem matar sem medo de punição e o jornalismo se transforma em espionagem. Está se tornando um crime dizer a verdade.

O que aguarda Assange se ele for extraditado?

Ele não vai receber um julgamento consistente com a lei. Esse é outro motivo pelo qual sua extradição não deveria ser permitida. Assange receberá um julgamento por júri em Alexandria, na Virgínia – a famosa “Corte da Espionagem”, onde os EUA julgam todos os casos de segurança nacional. A escolha da localidade não é uma coincidência, porque os membros do júri devem ser escolhidos proporcionalmente à população local e 85% dos residentes em Alexandria trabalham nos serviços de segurança nacional – na CIA, na NSA, no Departamento de Defesa e no Departamento de Estado. Quando as pessoas são julgadas por ameaçar a segurança nacional em frente a um júri desses, o veredicto é claro desde o início. Os casos são sempre julgados em frente ao mesmo juiz, atrás de portas fechadas e com as provas sob sigilo. Ninguém nunca foi inocentado em um caso como esse. O resultado é que a maioria dos réus chega a um acordo, no qual eles admitem culpa parcial para receber uma sentença mais branda.

Você está dizendo que Julian Assange não receberá um julgamento justo nos Estados Unidos?

Sem dúvida. Enquanto os empregados do governo americano obedecerem os seus superiores, eles podem participar em crimes de guerra e tortura com total certeza de que nunca terão que responder por suas ações.

O que aconteceu com as lições aprendidas nos julgamentos de Nuremberg? Já trabalhei o suficiente em zonas de conflito para saber que erros acontecem na guerra. Nem sempre são atos criminosos sem escrúpulos. Muito disso é resultado de estresse, exaustão e pânico. É por isso que eu posso entender completamente quando um governo diz: “vamos trazer luz à verdade e nós, como Estado, nos responsabilizamos completamente pelos males causados, mas se a culpa não pode ser direcionada para indivíduos, nós não vamos impor punições draconianas”.

Mas é extremamente perigoso quando a verdade é suprimida e os criminosos não são julgados. Nos anos 1930, a Alemanha e o Japão deixaram a Liga das Nações. Quinze anos depois, o mundo estava em ruínas. Hoje, os Estados Unidos deixou o conselho de Direitos Humanos da ONU e nem o massacre “Collateral Murder” nem a tortura da CIA depois de 9 de setembro, nem a guerra de agressões contra o Iraque levaram a investigações criminais. Agora, o Reino Unido está seguindo esse exemplo. O Comitê de Segurança e Inteligência do parlamento do país publicou dois extensivos relatórios em 2018 mostrando que o Reino Unido estava muito mais envolvido com o programa secreto de tortura da CIA do que se acreditava. O comitê recomendou uma investigação formal. A primeira coisa que Boris Johnson fez depois que se tornou primeiro-ministro foi anular essa investigação.

Em abril de 2019, Julian Assange foi retirado da embaixada equatoriana pela polícia britânica. Qual é a sua visão sobre esses eventos?

Em 2017, um novo governo foi eleito no Equador. E os EUA escreveram uma carta indicando que eles tinham o desejo de cooperar com o Equador. Havia, é claro, muito dinheiro em jogo, mas havia também um empecilho no caminho: Julian Assange. A mensagem era que os EUA estavam preparados para cooperar se o Equador entregasse Assange aos EUA. A essa altura, a embaixada equatoriana começou a aumentar as pressões sobre Assange. Tornaram sua vida mais difícil. Mas ele permaneceu. Então o Equador retirou sua anistia e deu à Inglaterra sinal verde para prendê-lo. Já que o governo anterior havia garantido a ele cidadania equatoriana, o passaporte de Assange também teve que ser revogado, porque a Constituição do Equador proíbe a extradição de seus próprios cidadãos. Tudo isso aconteceu em uma madrugada, sem nenhum procedimento legal. Assange não teve a oportunidade de se pronunciar ou recorrer a recursos legais. Ele foi preso pela polícia britânica e levado a um juiz naquele mesmo dia, que o condenou por violar a condicional.

O que você conclui sobre esse veredito acelerado?

Assange só teve quinze minutos para se preparar com seu advogado. O julgamento em si só levou quinze minutos. O advogado do Assange colocou um enorme dossiê na mesa e fez uma objeção formal a uma das juízas por conflito de interesses, porque seu marido havia sido objeto de exposições do Wikileaks em 35 documentos. Mas o juiz principal colocou de lado as objeções sem nem examiná-las a fundo. Ele disse que acusar sua colega de conflito de interesses era uma afronta. O próprio Assange falou apenas uma frase durante todo o processo: “Não me declaro culpado”. O juiz voltou-se para ele e disse: “Você é um narcisista que não consegue ir além do seu próprio interesse. Eu o condeno por violação da condicional.”

Se eu entendi direito, Julian Assange nunca teve uma chance desde o princípio?

É exatamente isso. Não estou dizendo que Julian Assange é um anjo ou um herói, mas ele não precisa ser. Estamos falando sobre direitos humanos e não sobre heróis e anjos. Assange é uma pessoa e ele tem o direito de se defender e de ser tratado de maneira humana. Não importa do que ele é acusado, Assange tem o direito a um julgamento justo. Mas ele teve esses direitos negados deliberadamente – na Suécia, nos EUA, no Reino Unido e no Equador. Em vez disso, deixaram-no apodrecer por quase sete anos no limbo de um quarto.

Depois, ele foi subitamente retirado e condenado em questão de horas, e sem nenhuma preparação, por uma violação de condicional que consistia no fato de ele ter recebido asilo diplomático de outro Estado membro da ONU com base em perseguição política, exatamente como a lei internacional prevê e assim como inúmeros dissidentes chineses, russos e outros fizeram nas embaixadas ocidentais.

É óbvio que estamos lidando aqui com uma perseguição política. Na Inglaterra, violações de condicional raramente levam à prisão – elas geralmente são sujeitas a multas. Assange, por outro lado, foi condenado em um processo sumário a cinquenta semanas em uma prisão de segurança máxima – claramente uma penalidade desproporcional que tinha apenas um único objetivo: deter Assange por tempo suficiente para que os EUA preparem seu caso de espionagem contra ele.

Como Relator Especial sobre Tortura na ONU, o que você tem a dizer sobre suas condições atuais de prisão?

A Inglaterra negou contato de Assange com seus advogados nos EUA, onde ele é alvo de processos sigilosos. Sua advogada inglesa também reclamou que não tem tido acesso suficiente ao seu cliente para mostrar-lhe os documentos da corte e as provas. Até outubro [de 2019], ele não podia ter nenhum documento sobre seu processo com ele na cela. Ele teve o direito fundamental de preparar sua defesa, como garantido pela Convenção Europeia de Direitos Humanos, negado. Além disso, a quase completa solitária à qual ele está submetido é completamente desproporcional com sua violação de condicional. Assim que ele deixa a cela, os corredores são esvaziados para evitar que ele tenha contato com outros presos. E tudo isso por causa de uma violação de condicional? Quando é que a prisão vira tortura?

Julian Assange foi intencionalmente torturado psicologicamente pela Suécia, Inglaterra, Equador e pelos EUA. Primeiro através do processo altamente arbitrário contra ele. A maneira com que a Suécia direcionou o caso, com assistência ativa da Inglaterra, teve como objetivo colocá-lo sob pressão e prendê-lo na embaixada. A Suécia nunca esteve interessada em encontrar a verdade e ajudar aquelas mulheres, mas em cercar Assange. Foi um abuso do processo judicial conduzido para colocar uma pessoa em uma posição na qual ela não consegue se defender.

Além disso, há as medidas de vigilância, os insultos, a degradação e os ataques feitos pelos políticos desses países, inclusive ameaças de morte. Esse constante abuso do poder do Estado levou a um sério estado de estresse e ansiedade em Assange que resultou em um considerável dano cognitivo e neurológico. Eu visitei Assange na sua cela em Londres em maio de 2019 junto com dois médicos experientes e respeitados, especializados em avaliação forense e psicológica de vítimas de tortura. O diagnóstico foi claro: Julian Assange demonstra os típicos sintomas de tortura psicológica. Se ele não receber proteção logo, uma rápida deterioração de sua saúde é provável e a morte pode ser uma das consequências.

Seis meses depois de Assange ter sido colocado em uma prisão pré-extradição na Inglaterra, a Suécia silenciosamente abandonou o caso contra ele em novembro de 2019, depois de nove longos anos. Por que agora?

O governo sueco gastou quase uma década intencionalmente apresentando Julian Assange ao público como um estuprador. Depois, eles subitamente abandonaram o caso contra ele sob o mesmo argumento que a primeira promotora sueca usou em 2010, quando ela suspendeu inicialmente as investigações depois de cinco dias: apesar do testemunho da mulher ser crível, não havia provas de que um crime tinha sido cometido. É um escândalo inacreditável. Mas o timing não foi acidental.

No dia 11 de novembro, um documento oficial que eu enviei ao governo sueco dois meses antes veio a público. No documento, pedi ao governo sueco explicações sobre cinquenta pontos referentes às implicações de direitos humanos na maneira como lidaram com o caso. Como é possível que a imprensa tenha sido imediatamente informada, apesar da proibição de fazê-lo? Como é possível que uma suspeita seja publicada mesmo antes do interrogatório? Como é possível que se diga que houve um estupro apesar da vítima contestar essa versão dos acontecimentos? No dia em que o documento foi publicado, eu recebi uma simples resposta da Suécia: o governo não tem mais comentários sobre este caso.

O que essa resposta significa?

É uma admissão de culpa.

Por quê?

Como Relator Especial da ONU, fui incumbido pela comunidade internacional das nações de investigar as denúncias apresentadas pelas vítimas de tortura e, se necessário, solicitar explicações ou investigações dos governos. É esse o trabalho diário que eu faço com todos os Estados da ONU.

Pela minha experiência, posso dizer que países que agem de boa-fé estão quase sempre interessados em me ajudar com as respostas que eu preciso para esclarecer a legalidade de suas ações. Quando um país como a Suécia se nega a responder perguntas enviadas pelo Relator Especial sobre Tortura da ONU, isso mostra que o governo sabe da ilegalidade de suas ações e não quer se responsabilizar pelo seu comportamento. Eles puxaram a tomada e abandonaram o caso uma semana depois porque sabiam que eu não ia desistir. Quando países como a Suécia se permitem a ser manipulados dessa maneira, então nossas democracias e nossos direitos humanos enfrentam um grande risco.

Você acha que a Suécia estava completamente consciente do que fazia?

Sim. Do meu ponto de vista, a Suécia claramente agiu de má-fé. Se eles tivessem agido de boa-fé, não haveria razão para não responderem às minhas perguntas. A mesma coisa para os ingleses: depois da minha visita ao Assange, em maio de 2019, eles demoraram seis meses para me responder – em uma única página de texto, que se limitou principalmente a rejeitar todas as acusações de tortura e todas as inconsistências nos procedimentos legais.

Se você vai jogar dessa maneira, então qual é o sentido do meu trabalho? Eu sou o Relator Especial sobre Tortura da ONU. Eu tenho o mandato de fazer questionamentos claros e exigir respostas. Qual é a base legal para negar o direito fundamental à própria defesa? Por que um homem que não é nem perigoso ou violento está sendo mantido em regime de solitária por meses quando os estatutos da ONU proíbem o confinamento solitário por períodos maiores que quinze dias? Nenhum desses Estados-membro da ONU começou uma investigação ou respondeu às minhas perguntas ou mesmo demonstrou qualquer interesse em dialogar.

O que significa quando um Estado membro da ONU se recusa a fornecer informações para seu próprio relator especial sobre tortura?

Que é um assunto previamente combinado. Um julgamento espetacularizado deve ser usado para fazer de Julian Assange um exemplo. O objetivo é intimidar outros jornalistas. A intimidação, aliás, é uma das principais motivações de tortura ao redor do mundo.

A mensagem para todos nós é: isso é o que vai acontecer com você se você imitar o modelo do Wikileaks. É um modelo tão perigoso porque é muito simples: pessoas que têm acesso a informações sensíveis de governos ou empresas transferem essas informações ao Wikileaks, mas os delatores continuam anônimos.

A reação mostra o quão grande pode ser a ameaça: quatro países democráticos se juntaram – os EUA, o Equador, a Suécia e o Reino Unido – para usar seu poder de retratar um homem como um monstro, para que mais tarde pudesse ser queimado na fogueira sem protestos.

O caso é um enorme escândalo e representa o fracasso do Estado de direito ocidental. Se Julian Assange for condenado, será uma sentença de morte para a liberdade de imprensa.

O que esse possível precedente significa para o futuro do jornalismo?

De maneira prática, significa que você, como jornalista, agora precisa se defender. Porque se o jornalismo investigativo for considerado espionagem e puder ser incriminado ao redor do mundo, então a censura e a tirania virão em seguida. Um sistema assassino está sendo criado bem na nossa frente. Crimes de guerra e tortura não estão sendo combatidos. Vídeos de YouTube nos quais soldados americanos se gabam por levar mulheres iraquianas ao suicídio através de estupros frequentes. Ninguém está investigando isso. Ao mesmo tempo, uma pessoa que expõe essas coisas é condenada a 175 anos de prisão.

Por uma década inteira, ele foi inundado com acusações que não podem ser provadas e que estão acabando com ele. E ninguém está sendo responsabilizado. Ninguém está sendo condenado. Isso marca uma erosão do contrato social.

Nós damos poder aos países e delegamos isso aos governos – mas, em resposta, eles devem ser responsabilizados pela maneira como exercem esse poder. Se nós não exigirmos isso, perderemos nossos direitos mais cedo ou mais tarde. Seres humanos não são democráticos por natureza. O poder corrompe se não é monitorado. A corrupção é o resultado se nós não insistirmos em que esse poder seja fiscalizado.

Você está dizendo que a perseguição de Assange ameaça o cerne da liberdade de imprensa.

Vamos ver onde estaremos daqui a vinte anos se o Assange for condenado – o que você continuará a poder publicar como jornalista. Eu estou convencido de que estamos em sério risco de perder liberdades de imprensa. Já está acontecendo: De repente, a sede da ABC News na Austrália foi invadida em conexão com os Diários da Guerra no Afeganistão. O motivo? Mais uma vez, a imprensa revelou má conduta de representantes do Estado. Para que as divisões de poder funcionem, o Estado deve ser fiscalizado pela imprensa como um quarto poder. O Wikileaks é a consequência lógica de um processo contínuo de sigilo expandido: se a verdade não puder mais ser examinada porque tudo é mantido em segredo, se os relatórios de investigação sobre a política de tortura do governo dos EUA forem mantidos em sigilo e quando até grandes partes do resumo publicado são censuradas, vazamentos serão a consequência.

O Wikileaks é a consequência do sigilo crescente e reflete a falta de transparência no nosso sistema político moderno. Existem, é claro, áreas nas quais o sigilo pode ser vital. Mas se nós não pudermos mais saber o que os governos estão fazendo e quais critérios estão seguindo, se os crimes não forem mais investigados, então isso representa um grave perigo para a integridade social.

Quais são as consequências?

Como Relator Especial sobre Tortura da ONU e, antes disso, como membro da Cruz Vermelha, eu já vi horrores e violências e já vi o quão rápido países pacíficos, como a Iugoslávia ou Ruanda, podem se transformar em infernos. Nas raízes desses acontecimentos estão sempre a falta de transparência e poder político ou econômico desenfreado, combinados com a ingenuidade, indiferença e maleabilidade da população.

De repente, o que sempre aconteceu com o outro – a tortura impune, estupro, expulsão e assassinato – pode facilmente acontecer conosco ou com nossos filhos. E ninguém vai se importar. Eu posso te garantir isso.

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Daniel Ryser é jornalista.