Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Alternâncias de esquerda e a presença internacional da América Latina

Após as diversas eleições presidenciais vencidas pela esquerda na América Latina – ou melhor dizendo, pelas esquerdas – e mais particularmente no Brasil e na Colômbia, Jean-Jacques Kourliandsky, diretor do Observatório da América Latina da Fundação Jean-Jaurès, analisa a dinâmica que essas vitórias políticas poderiam gerar em nível regional e internacional, mas também seus limites.

Desde 2018, quase todos os votos na América Latina, do México ao Brasil passando pela Colômbia, foram dados a candidatos presidenciais de “esquerda”.

Estas mudanças eleitorais criaram um contexto para a reorientação econômica e social dentro dos países em questão. Os novos líderes “progressistas” desses países também sinalizaram sua vontade de proporcionar à América Latina capacidades autônomas na cena internacional.

Os discursos desses líderes, à noite ou no dia seguinte a suas vitórias no pleito eleitoral, confirmaram essa dupla intenção, de reorientação econômica e social e de autonomia internacional. No entanto, para a mensurar a probabilidade de que isso assim se dê exige, além de declarações, avaliar uma série de critérios quanto a sua viabilidade. Em outras palavras, confrontar o objetivo “o que fazer” com “como é possível chegar lá?”.

Um exame cuidadoso dos contextos nacional e regional é, portanto, um pré-requisito. Somente isso pode dar a medida real e o alcance dos discursos voluntaristas feitos no fervor da chegada ao poder. 

Buscamos aqui examinar a viabilidade dos anúncios internacionais feitos pelos presidentes progressistas eleitos de 2018 a 2022. Para tanto, o escopo das mudanças potenciais criadas pelas alternâncias será avaliado aqui em quatro etapas: a) da identificação do estado atual e desse leque de mudanças de esquerda, na medida em que abrem a possibilidade de uma nova afirmação para o mundo; b) da definição de uma reivindicação coletiva da América Latina, que possibilite seu maior reconhecimento internacional; c) da análise das especificidades dos contextos nacionais, que permita medir a capacidade dos Estados envolvidos de se projetarem internacionalmente; d) e, por fim, consideradas as limitações, tanto internas quanto externas, avaliar se as Américas Latinas têm alguma chance de sair de sua condição periférica, historicamente estabelecida?

As alternâncias eleitorais abrem a possibilidade para mudanças diplomáticas coletivas

De 2018 a 2022, dez presidentes “de esquerda” chegaram ao poder: em ordem alfabética, na Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Honduras, México, Panamá, Peru e República Dominicana.

Cada um deles é representativo de uma variante nacional da esquerda. Todos eles, apesar de suas diferenças, participam de um ou outro dos círculos de cooperação partidária latino-americanos: a COPPPALC (Conferência Permanente dos Partidos Políticos Latino-Americanos e Caribenhos, fundada pelo PRI mexicano, Partido Revolucionário Institucional), o Fórum de São Paulo (liderado pelo PT brasileiro, Partido dos Trabalhadores) e o Seminário Internacional do PT (Partido Trabalhista) mexicano. Além disso, alguns deles formam grupos com países de outros continentes no âmbito da Aliança Progressista criada pelo SPD (Partido Social-Democrata) alemão. Alguns deles há um bom tempo já se encontram envolvidos em atividades da Internacional Socialista, hoje em dia abandonada por quase todos os seus antigos membros latino-americanos de esquerda e centro-esquerda.

Os chefes de Estado “progressistas”, eleitos de 2018 a 2022, listados abaixo, compartilham assim um conhecimento mútuo adquirido dentro dessas diferentes organizações partidárias interamericanas.

Calendário das eleições presidenciais vencidas por candidatos de esquerda:

  • em 1º de julho de 2018, no México, Andrès Manuel Lopez Obrador ganhou em nome da coalizão Juntos Haremos Historia (“Juntos faremos História”), que inclui os partidos MORENA (Movimento Nacional de Regeneração), PT (Partido Trabalhista) e PES (Partido do Encontro Social);
  • em 5 de maio de 2019, no Panamá, a vitória do candidato do PRD (Partido Revolucionário Democrático), Laurentino Cortizo;
  • em 27 de outubro de 2019, na Argentina, o Justicialista (ou Peronista) Alberto Fernández ganha a presidência sob o selo “Frente de todos” (agrupamento de 28 partidos progressistas);
  • em 5 de julho de 2020, na República Dominicana, Luis Abinader ganhou as eleições em nome do PRM (Partido Revolucionário Moderno);
  • em 18 de outubro de 2020, na Bolívia, Luis Arce, do MAS (Movimento em direção ao Socialismo), foi eleito;
  • em 6 de junho de 2021, no Peru, José Pedro Castillo Terrones entra na Casa de Pizarro (o Palácio do Eliseu local), sob as cores da festa do Perú Libre;
  • em 28 de novembro de 2021, em Honduras, Xiomara Castro, do Partido Livre, é a candidata vencedora;
  • em 19 de dezembro de 2021, no Chile, Gabriel Boric Font vence com a coalizão Apruebo Dignidad (que reúne as 4 partidos da Frente Amplia e as 10 do Chile Digno);
  • em 19 de junho de 2022, na Colômbia, Gustavo Petro ganha com o grupo Pacto Histórico (fundado em 2021 por 7 partidos);
  • em 30 de outubro de 2022, os brasileiros elegeram Luiz Inácio Lula da Silva como presidente, porta-bandeira da Federação Brasil da Esperança (PT, PCdoB – Partido Comunista do Brasil, PV – Partido Verde), aliado a Agir, Avante, PROS (Partido Republicano da Ordem Social), PSB (Partido Socialista Brasileiro), PSOL-REDE (coalizão do Partido Socialismo e Liberdade e Partido Ecologista, Rede Auto-Suficiente), Solidariedade. No segundo turno, juntaram-se a essa frente ampla o PDT (Partido Trabalhista Democrático) e o MDB (Movimento Democrático Brasileiro)

A este grupo de nove governos progressistas eleitos podem ser acrescentados três outros países liderados por presidentes que governam apesar de sua eleição em processos eleitorais contestados ou questionáveis, em Cuba, Nicarágua e Venezuela.

Os treze chefes de Estado mencionados são, portanto, a maioria em uma América Latina de dezenove países. Estes líderes, se nos referirmos a suas posições anteriores no poder, a sua participação na COPPPALC, no Fórum de São Paulo, no Seminário mexicano do PT e seus programas, compartilham uma exibição diplomática nacionalista e libertadora.

Os “alternantes” exigem coletivamente respeito e autonomia a nível internacional

Estes treze presidentes “de esquerda”, além de suas diferenças, têm uma aspiração diplomática comum, a de ganhar peso e relevância no cenário internacional, atuando coletivamente com essa aspiração em comum.

As palavras de ordem do passado reapareceram no calor dos comícios eleitorais: “A união faz a força”, “O povo unido jamais será vencido”. O espírito unificador do “Libertador”, Simon Bolívar, foi invocado por AMLO (Andrés Manuel López Obrador), o presidente mexicano, que sediou a 6a Cúpula da CELAC (Comunidade dos Estados da América Latina e Caribe) em 18 de setembro de 2021. Gustavo Petro, no dia de sua posse como Presidente da Colômbia em 7 de agosto de 2022, colocou a cerimônia sob os auspícios de Simon Bolívar, ordenando que fosse feita uma homenagem especial simbolicamente à sua espada. O presidente brasileiro foi mais longe durante sua campanha eleitoral, sinalizando sua intenção de colocar o Brasil de volta no caminho da “diplomacia ativa e altiva”. Celso Amorim, seu assessor de política externa, que como ministro das relações exteriores construiu um projeto de mediação com a Turquia em 2011 sobre a questão nuclear iraniana, lançou em uma entrevista as bases para uma possível iniciativa do mesmo tipo para negociar a paz na Ucrânia. Ele propôs um BRICS ampliado, no qual seja incluída a Argentina[1], como um instrumento de diálogo para a resolução dessa guerra. Deve-se notar que o México, apoiado pela Colômbia, fez um movimento semelhante, em paralelo, junto ao Conselho de Segurança em setembro.

Gestos igualmente fortes foram feitos por um ou outro dos novos presidentes para lembrar a aspiração compartilhada de uma unidade latino-americana forte e libertadora. AMLO, novamente na reunião da CELAC, em 18 de setembro de 2021, disse que “o ideal” seria “construir no continente americano algo como a Comunidade Econômica Europeia”[2]. O presidente argentino Alberto Fernández, seu sucessor à frente da CELAC, pediu ao ex-presidente colombiano Ernesto Samper, ex-chefe da quase extinta UNASUR (União das Nações Sul-Americanas), que pensasse em moldar um processo que reunisse todas as instituições regionais sob a égide da CELAC. Um seminário foi organizado para este fim em Buenos Aires em 18 de agosto de 2022, intitulado “O futuro da integração, unidade na diversidade”. Em 27 de outubro, três dias antes do segundo turno das eleições brasileiras, Lula endossou esta intenção, e que foi melhor desenvolvida, durante a sua campanha, por seu ex-ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim. Vale ressaltar também que o presidente argentino, Alberto Fernández, esteve ao lado de Lula na noite da vitória de segundo turno, no dia 30 de outubro.

Não há dúvida de que há distância entre a taça e os lábios. Essas declarações são tão enfáticas quanto de alcance limitado, se considerarmos a própria definição dada a esse projeto internacional afirmado no Seminário de Buenos Aires: “unidade […] na diversidade”.

Os limites das declarações ousadas feitas por ambas as partes certamente revela uma aspiração de autonomia internacional, associada a uma indefinição quanto ao caminho a ser percorrido para que se possa entrar na política do concreto. Somente examinando os contextos interno e externo podemos entender este oxímoro latino-americano. Qual é a margem de ação dos novos governantes a nível internacional?

Alcance das alternâncias e a medida das restrições internas e externas

Os discursos proferidos e as posturas adotadas neste ou naquele evento intergovernamental mostram uma intenção, até mesmo um desejo, de sacudir uma ordem internacional que mantém os latino-americanos fora da mesa das decisões importantes, entre as quais aquelas que os afetam diretamente. Mas que margem de manobra dispõem esses novos governos de modo que possam passar das intenções à adoção de iniciativas que tenham um impacto efetivo?

Os “verbos” presidenciais se deparam com uma primeira série de obstáculos internos que tomam conta de suas agendas. Todos os países da América Latina, qualquer que seja sua orientação política, têm que lidar com uma situação econômica urgente e centrípeta. A pandemia e a nova guerra europeia têm implicações globais. Elas estão causando queda nas taxas de crescimento, aumento da inflação e, para aqueles sem recursos de petróleo e gás, uma crise energética. 

Este contexto tem consequências sociais que afetam os padrões de vida. As condições se deterioraram em todos os lugares. Metade da população da Argentina, um país produtor de petróleo e gás, vive abaixo da linha de pobreza. A fome afeta 15% da população do Brasil, um grande produtor e exportador de petróleo. Alguns países estão travados pelas circunstâncias econômicas e financeiras, que lhes exigem atenção prioritária. 

A dívida externa legada ao governo de Alberto Fernández na Argentina por seu predecessor de direita, Mauricio Macri, reduziu em muito sua liberdade de ação. O presidente argentino dedica grande parte de sua atividade internacional à busca de empréstimos-ponte junto à China, Rússia, países da UE e do FMI. O Chile de Gabriel Boric assumiu a política econômica externa praticada desde a ditadura de Pinochet, e perpetuada pelos governos da Concertação Democrática e da centro-direita, a do “regionalismo aberto”. 

O Chile levantou praticamente todas as barreiras alfandegárias e com base nisso negociou um grande número de tratados de livre comércio com países da Ásia e da Europa, e na América Latina com os países membros da Aliança do Pacífico (Chile, Colômbia, Costa Rica, México, Peru). Na sequência imediata de sua vitória, Gabriel Boric confirmou ao Secretário de Estado das Relações Exteriores do México, Marcelo Ebrard, que estas escolhas seriam consolidadas. Esta política provavelmente afastou permanentemente o Chile de qualquer opção de integração econômica e comercial latino-americana. 

O México, por outro lado, é de fato parte do espaço econômico norte-americano. Obrigado por tratados assinados, como o NAFTA no passado e agora o T-MEC (Tratado México-Estados Unidos-Canadá) [3], o presidente mexicano não tem a mesma possibilidade de aderir a um tratado de integração econômica latino-americana. O presidente AMLO reconheceu isso, declarando explicitamente em um livro publicado em 2021 que o México “é abençoado, tão perto de Deus, e não muito longe dos Estados Unidos” [4]

Em outro país da região, as sanções dos EUA e da Europa contra a Venezuela prejudicaram gravemente a capacidade de exportação de petróleo do país e causaram hiperinflação, com consequências humanas devastadoras.

Essas realidades têm efeitos políticos que constrangem os Estados e às vezes desestabilizam os equilíbrios internos. Elas mobilizam os governos por se tratar de questão prioritária. Houve manifestações contra os aumentos de preço no Equador, Haiti e Panamá. Outros temas, aparentemente muito distantes da vida cotidiana, também têm gerado perturbação quanto à dimensão social, na Argentina, Bolívia, Chile e México. Enquanto isso, vários milhões de venezuelanos foram forçados a se exilar nos países vizinhos para sobreviver, gerando políticas caras assumidas por países anfitriões, assim como reações xenófobas sem precedentes no Brasil, Chile e Peru.

Esses movimentos de protesto, quando coincidem com um evento eleitoral, resultam na expressão de um voto de sanção, pondo em questão, de forma mais ou menos radical, o voto na alternância partidária, o que testemunhamos em vários pleitos anteriores na região. Em 8 de junho de 2021, no México, AMLO perdeu a maioria parlamentar qualificada que havia obtido em 1 de julho de 2018. Em 14 de novembro de 2021, Alberto Fernández na Argentina perdeu a maioria simples no Senado concedida pelos eleitores em 27 de outubro de 2019. Em 4 de setembro de 2022, os eleitores chilenos votaram contra o projeto de constituição apoiado pelo chefe de Estado, Gabriel Boric, eleito em 19 de dezembro de 2021.

Com grande impacto nas eleições, a crise social alimenta uma insatisfação crônica que vem sendo muito bem explorada pela oposição nesse momento na Bolívia e no Peru, tanto nas ruas quanto nos parlamentos. De fato, muitas vezes se esquece que os eleitores votaram de forma contraditória. Embora presidentes de “esquerda” tenham sido eleitos, os parlamentos são frequentemente de direita, como no Brasil, Chile, Colômbia e Peru. Além disso, testemunhamos no momento uma tendência e força nos parlamentos desses direitistas extremistas, que ocuparam muito espaço, tendo assim reduzido ao mínimo as formações conservadoras e liberais da direita tradicional.

Finalmente, outro fator reduz a margem de manobra interna e externa dos novos poderes desde o início: eles negociaram pactos eleitorais que vão muito além da esquerda, com tons mais ao centro, alguns até de viés mais à direita junto aos círculos empresariais. 

Isso permite entender por que AMLO, na noite de sua vitória em 1º de julho de 2018, anunciou que não haveria nenhuma reforma tributária, nenhum novo imposto para pessoas físicas ou jurídicas. As medidas sociais serão financiadas, anunciou ele, pela luta contra a fraude e a corrupção e por ações de austeridade impostas ao aparelho estatal. 

No Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, para garantir sua vitória, escolheu como seu candidato a vice-presidente um representante da centro-direita do Estado de São Paulo, Geraldo Alckmin. Ele incluiu em sua coalizão eleitoral um partido que apoiou a extrema direita, Avante, e estabeleceu compromissos, assim como fez AMLO no México, com grandes empresários. Teremos que aguardar a composição e o roteiro de seu governo para medirmos o alcance dessas alianças. Apesar de tudo, devemos notar a prudência verbal de Lula durante toda a campanha. Ele se referiu sistematicamente ao seu histórico presidencial de 2003-2010, sem fazer nenhum novo anúncio de mudança que fosse além da declaração de princípios gerais.

Em resumo, a situação econômica internacional e as restrições externas herdadas, particularmente na Argentina, Chile, México e Venezuela, limitam as margens de invenção diplomática dos governos alternativos que emergiram nas últimas eleições, apesar das intenções declaradas publicamente pelos novos titulares.

Um legado de restrições não propício à expressão de uma iniciativa dissidente latino-americana

A situação atual não é em nada nova. Desde sua invenção no século XVI, a chamada América Latina tem estado na periferia do mundo, e tem sido disputada pelas potências do momento. Pode-se até dizer que tem sido uma espécie de “território de base” para a hegemonia internacional.

Do século 16 ao início do século 19, a América Latina esteve sob o domínio da Espanha e de Portugal, grandes potências marítimas. A dominação ibérica foi desafiada a partir do século 16 pela Inglaterra, França e Holanda, mas foi finalmente o Reino Unido que impôs sua proeminência no século 19.

Esta influência foi desafiada pelos Estados Unidos, Alemanha e França. Mas foram os Estados Unidos que tomaram o poder na virada do século 20, apesar da concorrência da Alemanha nazista, da Itália fascista e, um pouco mais tarde, da URSS.

Esta transferência do poder tutelar sobre a América Latina, de um ‘grande’ para outro, foi avaliada criticamente pelo diplomata brasileiro Samuel Guimarães Pinheiro em “Cinco Séculos de Periferia” [5]. Essa constatação será, ou pode ser, perpetuada? Os líderes progressistas que chegaram ao poder recentemente terão os meios para romper com o que é, afinal de contas, uma constatação óbvia?

A posição adquirida e reforçada pela China na América Latina nos últimos vinte anos suscita dúvidas. Ela parece anunciar a perpetuação de um domínio externo, revelando a emergência de uma nova “liderança” global. A China é agora o primeiro, segundo ou terceiro parceiro dos vários países latino-americanos. Desde a publicação de seu primeiro livro branco em 2008, seu progresso foi metodicamente construído e associado à presença regular na América Latina de seus líderes políticos e líderes responsáveis pelas decisões econômicas. Em 2014, foi realizado o primeiro Fórum China/CELAC, seguido pela implementação de uma extensão da “Rota da Seda” para quase todos os países da América Latina.

A saída da dependência não será claramente através da construção de uma “Pátria Grande”, apesar da retórica de alguns dos líderes alternativos progressistas hoje no poder. A integração política e econômica, dadas as restrições internas e externas, está se mostrando difícil de ser alcançada. Várias opções, menos ambiciosas mas mais realistas, parecem estar surgindo no decorrer da vida governamental diária.

As escolhas defendidas pelo presidente AMLO, deliberadamente ambíguas, jogam com as palavras. De CELAC para CELAC, ele defende a necessidade de uma América economicamente unida: América como um todo, T-MEC e América Central e do Sul. Isso permitiria ao México, com o apoio de seus vizinhos do sul, equilibrar sua relação assimétrica com a economia norte-americana. Essa escolha é do interesse do México. Talvez pudesse encontrar o apoio dos países da Aliança do Pacífico, em particular do Chile. Entretanto, é improvável que tenha o acordo dos países do Mercosul, como os ligados à economia chinesa, como o Peru, mas também aqueles ligados à economia do Mercosul.

Por outro lado, as aproximações diplomáticas devem encontrar uma nova dinâmica com essas alternâncias progressistas na América Latina. O conflito russo-ucraniano destacou as convergências de fato. A maioria dos países latino-americanos condenou a invasão russa, mas nenhum deles apoiou as políticas de sanções norte-americanas e europeias. Por outro lado, a CELAC, sob o impulso de seus sucessivos líderes, México e Argentina, está tentando coordenar, sob sua autoridade, todas as organizações inter-latino-americanas. É improvável que este projeto tenha sucesso no que diz respeito ao comércio e à economia. 

Por outro lado, a afirmação de uma diferença diplomática baseada no respeito à soberania e à igualdade de tratamento de todos os Estados poderia ser bem sucedida rapidamente. AMLO se recusou a participar da Cúpula das Américas de junho de 2022, presidida por Joe Biden em Los Angeles, porque Cuba, Nicarágua e Venezuela não haviam sido convidados. Alberto Fernández, presidente argentino e atual presidente da CELAC, indicou ao seu homólogo espanhol, Pedro Sanchez, que concorda com uma cúpula União Europeia/CELAC durante os seis meses da presidência espanhola da UE no final de 2023, desde que Cuba, Nicarágua e Venezuela sejam convidados.

Esta convergência hemisférica do possível poderia ser consolidada pela rivalidade de fato, essencialmente comercial, econômica, financeira e tecnológica, entre a China e os EUA. De certa forma, a CELAC ou alguns de seus membros poderiam ser encorajados a praticar, a fim de ampliar sua autonomia, um “leilão” de sua assimetria entre dois “grandes” concorrentes na América Latina, como no resto do mundo.

É possível que a defesa do meio ambiente e a luta contra o aquecimento global possam ser um fator inovador de coesão coletiva. Enquanto o México permanece reservado sobre estas questões, os novos chefes de Estado do Brasil, Chile e Colômbia fizeram declarações militantes. Os novos presidentes do Chile e da Colômbia ratificaram o Acordo de Escazu, que se compromete a proteger os ambientalistas. Gustavo Petro, presidente em exercício da Colômbia, e Luiz Inácio Lula da Silva, recém-eleito presidente do Brasil, participaram da COP27 no Egito. O Brasil, apesar da provável resistência interna, se beneficiaria de duas maneiras: levantando o bloqueio europeu, especialmente alemão e francês, à ratificação do acordo UE/Mercosul de 2019, e mantendo o controle soberano sobre a questão amazônica. 

Dito isto, nem Gabriel Boric nem AMLO estavam em Sharm el-Sheikh. Gabriel Boric deu preferência a um fórum do grupo de livre comércio APEC (Cooperação Econômica Ásia-Pacífico), que se reunia ao mesmo tempo na Tailândia.

Ainda será necessário encontrar um denominador comum que reúna e promova o acordo da maioria a fim de avançar em direção ao ativismo coletivo no cenário internacional. A entrada na “dissidência diplomática” pressupõe, a fim de materializar uma convergência ideal entre as diversas partes, o afastamento das diferenças ideológicas. De fato, como disse a ministra das Relações Exteriores do presidente chileno, Antonia Urrejola, “a América Latina precisa falar uma só voz no mundo […] O grande problema tem sido que os governos têm favorecido até agora aqueles com quem eles têm uma afinidade ideológica. Com cada mudança, a agenda comum foi reduzida a zero” [6].

Notas

Texto publicado originalmente em francês, em 30 de novembro de 2022, no site Fondation Jean Jaurès, Paris/França, com o título original “Alternances de gauche et présence internationale de l’Amérique Latine”. Disponível em: <https://www.jean-jaures.org/publication/alternances-de-gauche-et-presence-internationale-de-lamerique-latine/>. Tradução de Andrei Cezar da Silva e Luzmara Curcino.

 [1] Por Flavia Marreiro e Brad Haynes, São Paulo, Reuters, 19 de outubro de 2022.

[2] “AMLO [Andrés Manuel López Obrador] pede a integração econômica para construir algo como a União Europeia”, CNN em espanhol, 18 de setembro de 2021.

[3]  ACEUM, Acordo Canadá-EUA-México (USMCA em inglês).

[4] AMLO propôs assim uma reformulação da frase atribuída ao ditador Porfirio Diaz, “México tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos”, Andrès Manuel Lopez Obrador, A la mitad del camino, Cidade do México, Planeta, 2021.

[5] Samuel Pinheiro Guimarães, Cinco séculos de periferia, Buenos Aires, Prometeo, 2006.

[6] El Pais, Madri, 4 de julho de 2022.

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Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris, e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014), e colabora frequentemente com o Observatório da Imprensa, em parceria com o LABOR – Laboratório de Estudos do Discurso e com o LIRE – Laboratório de Estudos da Leitura, ambos da UFSCar – Universidade Federal de São Carlos.