Um forte vento eleitoral, nesses últimos tempos, expulsou dos palácios presidenciais latino-americanos, os liberais-conservadores, já de saída. A crise sanitária do coronavírus, a crise energética mundial, sequelas econômicas e comerciais da guerra na Europa tendo, consequentemente, perpetuado a insegurança dos países a partir dessas ramificações exteriores, inflaram as velas e produziram uma virada total do barco.
Circunstâncias favoráveis a uma navegação conjunta para enfrentar essas correntes marítimas que ignoram as fronteiras, do México, ao norte, até o Chile localizado em pleno sul, passando pelas escalas intermediárias, do Brasil, da Colômbia e de Honduras, a maioria dos países, vítimas dos mesmos flagelos econômicos, sanitários e sociais decidiram pelo voto entregar as chaves da casa a novos governantes: Luis Arce na Bolívia, Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil, Gabriel Boric Font no Chile, Gustavo Petro na Colômbia, Xiomara Castro em Honduras, Andrès Manuel López Obrador (AMLO) no México e Pedro Castilho no Peru.
O que aconteceu para isso? A pergunta foi feita por analistas que explicaram minuciosamente as razões para esse final, a priori esperado. Se o diagnóstico é o mesmo, os desafios comuns que esses países têm pela frente devem encorajar também uma unificação de respostas. De fato, não faltam apelos a uma ação coletiva, de toda a América Latina. Conforme o calendário, AMLO, o primeiro eleito da lista progressista, multiplicou apelos, ainda que discretos, à ação comum. O presidente em exercício da CELAC evocou, em 18 de setembro de 2021, a memória do libertador das Américas do Sul, Simón Bolívar. Para encorajar, uns e outros, a reavivar a unidade, a dos latino-americanos e a que ele acrescentou, de todas as Américas, em 2022, o então chefe da Aliança do Pacífico, repetiu o exercício, convidando não somente os membros da organização, mas também o presidente eleito do Brasil, Lula da Silva.
Esses apelos à ação coletiva foram feitos por outros recém-eleitos. A tribuna da Assembleia Geral das Nações Unidas foi ocupada pelo chileno Gabriel Boric, assim como pelo colombiano Gustavo Petro, para lançar vibrantes apelos à união acompanhados de uma série de proposições. A passagem aos trabalhos práticos revelou-se, por enquanto, bastante discreta, ainda que várias organizações, com uma orientação claramente reacionária, tenham sido desfeitas, como o Grupo de Lima, inventado pelos governantes liberais-conservadores latino-americanos em 2017 e inspirado pelos Estados Unidos de Donald Trump, para encurralar as autoridades de Caracas, ou como o grupo PROSUR [1], inventado em 2018 por dois chefes de estado de direita, o chileno Sebastián Piñera e o colombiano Iván Duque, para substituir a UNASUR cujos patrocinadores, em 2008, eram o Brasil e a Venezuela, considerados excessivamente sulfurosos [2]. No entanto, esse apagamento do Grupo de Lima e da PROSUR não é fruto de uma decisão coletiva. Cada um, do México ao Chile, passando pela Argentina, praticaram a política da cadeira vazia, tornando impossível a continuação dessas organizações.
Confirmando a constatação da unilateralidade, as iniciativas tomadas pelo presidente mexicano AMLO e seus homólogos, Brasil, Chile e Colômbia foram realizadas sem consulta prévia aos parceiros. O presidente eleito no Brasil, Lula, que chegou à COP27 em um avião privado de um empresário, o que no mínimo é discutível, propôs, sem o acordo de outros países amazônicos, a realização de uma futura COP na Amazônia brasileira. O México de AMLO retirou de sua manga uma proposta surpresa nas Nações Unidas de setembro de 2022: uma suspensão das hostilidades entre a Rússia e a Ucrânia [3]. Sem preparação diplomática, ele não teve apoio de nenhum outro governo latino-americano.
Apenas a Colômbia sinalizou sua disponibilidade, justamente essa Colômbia que anunciou, de forma singular, a oportunidade de vários encontros interamericanos e internacionais, um sobre o fracasso, na América Latina, das políticas destinadas ao combate do tráfico e do consumo de drogas, e outro, sobre a proteção da Amazônia, apresentado na COP27, sem contato prévio com os países membros da OTCA (Organização do Tratado de Cooperação da Amazônia) [4], instituição criada em 1978, e do Pacto de Leticia de 2019 [5].
O último encontro perdido, em 18 de novembro de 2022, foi o da renovação do presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Sua gestão é tradicionalmente confiada, desde a sua criação, a um latino-americano [6]. Em 2020, Donald Trump, em nome dos Estados Unidos, sentiu que era a hora de virar a mesa. Com 30% de direito de voto, impôs um candidato norte-americano de origem cubana, Mauricio Claver-Carone. As mudanças de poder em Washington, como em Bogotá, Brasília, Buenos Aires, La Paz, Lima, Cidade do México e Santiago, abriram essa porta. Mauricio Claver-Carone, foi destituído, em 26 de setembro de 2022, devido a um comportamento licencioso, oportunamente descoberto.
Sem consulta e preparação coletiva, quatro candidatos se opuseram: Ilan Goldfajn, apoiado pelo presidente brasileiro Jair Bolsonaro; Gerardo Esquivel, apresentado por AMLO; Nicolas Eyzaguirre, apoiado pelo Chile de Gabriel Boric e um candidato caribenho, Gerald Johson. Esses foram decididos por Washington e pelo imbróglio pós-eleitoral brasileiro. Ilan Goldfajn foi eleito com os votos dos Estados Unidos (30%), da Argentina (11,3%) e do Brasil (11,3%). Essa falta de concertação, o apoio partilhado ao candidato bolsonarista, tanto pelo presidente eleito do Brasil, Lula quanto pelos Estados Unidos, provocou a ira do México e a irritação do Chile. “É lamentável”, disse AMLO, “é mais do mesmo […] tudo o que se aplicou durante todo o período neoliberal. Eles concordam, com a aprovação dos Estados Unidos, e assim escolhem”.
De forma esclarecedora para o futuro, os novos governantes, cada um no seu canto, tomam as decisões internacionais que lhes parecem ser as mais oportunas nacionalmente. Lula foi ao Sharm el-Sheikh no Egito, o local da COP27, para sinalizar aos europeus, que condicionaram a ratificação do tratado entre a União Europeia e o Mercosul à suspensão da deflorestação na Amazônia, que o Brasil estava de volta ao mundo e suas preocupações. Celso Amorim, conselheiro diplomático do presidente brasileiro eleito, aludiu a opção dos BRICS (Brasil-Rússia-Índia-China-África do Sul) para construir uma saída para a guerra russo-ucraniana. Ele não tinha uma palavra a dizer sobre a iniciativa mexicana acerca do mesmo assunto.
O colombiano Gustavo Petro, visitou Paris, em 12 de novembro de 2022, para assistir à maquinária anual sobre a paz, inventada para reorientar a diplomacia francesa. Além do presidente Emmanuel Macron, reuniu-se com o representante venezuelano nessa conferência, Jorge Rodriguez. Essas negociações se desenrolaram anteriormente no México, que, ao que parece, pela foto final, haviam sido esquecidas. O presidente argentino, Alberto Fernández, esteve presente. É verdade que ele está muito pressionado pela dívida colossal deixada por seu predecessor liberal, Mauricio Macri, e por isso bateu em todas as portas, de Paris à Pequim, passando por Washington e Moscou, para reduzir o peso dessa dívida. Quanto a AMLO, envolvido nas restrições do T-MEC [7], ele tem defendido consistentemente, junto ao Chile de Boric, bem como junto ao Brasil de Lula, os benefícios da Aliança do Pacífico, uma instituição de livre comércio criada em 2011 pelos governos liberais do México, Colômbia, Peru e Chile para “combater” a Unasul [8].
Uma constatação acaba por ser impor, tendo em vista os desenvolvimentos diplomáticos mais recentes. Cada país latino-americano privilegia o melhor licitante externo, por vezes colocando-os em competição, seja os Estados Unidos (para o México), seja a China, a União Europeia e a Rússia (para o Brasil), seja a China e a União Europeia (para o Chile). As dinâmicas latino-americanas revelam, em sua essência, pelo menos de momento, a retórica do fim de banquete. Por último, mas não menos importante, três países latino-americanos são membros do G-20, o grupo das 20 maiores economias do mundo: Argentina, Brasil e México. Suas diplomacias nunca foram coordenadas antes dessas reuniões a fim de apresentar propostas comuns.
Isso foi lamentado por Jorge G. Castañeda, ex-Secretário mexicano das Relações Externas: “O México, a Argentina e o Brasil poderiam ter reuniões prévias para definir uma posição comum […] falando uma só voz, […] sobre questões-chave, tais como a reativação econômica, a mudança tecnológica, o reforço das instituições globais” [9]. O círculo de ex-, ex-presidentes, hoje no banco de reservas, está preocupado. Sete deles [10], todos sul-americanos, enviaram uma carta aberta aos doze chefes de Estado sul-americanos em exercício [11], dizendo-lhes que “a integração é agora mais necessária do que nunca”. A iniciativa, frequentemente dirigida a antigos colegas de partidos políticos, sob a forma de uma petição é surpreendente. Tal como a ausência de referências mexicanas, caribenhas e centro-americanas.
Notas
Texto publicado originalmente em francês, no dia 28 de outubro de 2022, na seção ‘Analyses’ no site Nouveux Espaces Latinos, Paris/França com o título original “Amérique latine: défis internationaux communs, en chambres à part”. Disponível em: https://www.iris-france.org/171973-amerique-latine-defis-internationaux-communs-en-chambres-a-part/ . Tradução de Pâmela da Silva Rosin e Luzmara Curcino.
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[1] Fórum para o Progresso e Desenvolvimento da América do Sul.
[2] Hugo Chávez e Luiz Inácio Lula da Silva.
[3] Como membro não permanente do Conselho de Segurança da ONU.
[4] Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela.
[5] Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Pero e Suriname.
[6] O BID foi criada em 1959.
[7] Tratado de Livre Comércio que substituiu o NAFTA. T-MEC: Tratado México, EUA, Canadá.
[8] NT.: União das Nações Sul-Americanas.
[9] In. LAGOS, R. Jorge G. Castañeda. La nueva soledad de América Latina, una conversación, México. Debate, 2022.
[10] Michelle Bachelet (Chile), Rafael Correa (Equador), Eduardo Duhalde (Argentina), Ricardo Lagos (Chile), José Mujica (Uruguai), Dilma Rousseff (Brasil) e Ernesto Samper (Colômbia).
[11] Irfan Ali (Guiana), Luis Arce (Bolívia), Mario Abdo Benitez (Paraguai), Gabriel Boric (Chile), Pedro Castilho (Peru), Alberto Fernandes (Argentina), Guilhermo Lasso (Equador), Lula da Silva (Brasil), Nicolas Maduro (Venezuela), Gustavo Petro (Colômbia), Luisa Lacalle Pou (Uruguai) e Chan Santokhi (Suriname).
Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris, e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014), e colabora frequentemente com o Observatório da Imprensa, em parceria com o LABOR – Laboratório de Estudos do Discurso e com o LIRE – Laboratório de Estudos da Leitura, ambos da UFSCar – Universidade Federal de São Carlos.