Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Argentina, ano zero?

(Foto: El Financiero)

No dia 22 de outubro de 2023, os eleitores argentinos escolherão o seu presidente. Sob outros céus, em outros tempos, este seria um evento comum. No entanto, neste ano, “O mundo está quente” [1] na Argentina. O nível de “manobras e cálculos políticos”, plagiando aqui o cantor, está diante do nariz dos portenhos, assim como o preço dos bens de primeira necessidade, o desemprego e a pobreza, que, mês após mês, têm alimentado as previsões mais pessimistas.

O crupiê-adivinho, com a urna na mão, joga a peça e grita “Ninguém mais na rodada”, “Façam suas apostas”. A campanha está lançada. Os candidatos presidenciais são estes, embora desta vez não esteja claro para o eleitor “em quem apostar”. A incerteza está na mente de todos, o que leva ao risco de abalar os já frágeis equilíbrios institucionais e partidários locais e regionais do Mercosul. Fernando Haddad, ministro da Economia do Brasil, não esconde sua perplexidade diante do futuro da relação de cooperação entre vizinhos, caso os argentinos elejam o que ele qualificou como “exotismo” eleitoral. 

Neste final de 2023, a Argentina parece estar no rodapé de uma reforma, vivendo uma espécie de ano zero. Certamente suas casas e seus palácios governamentais não estão como os das cidades alemãs filmadas por Roberto Rosselini em 1947, reduzidas a cinzas. A Casa Rosada e o Congresso dos Deputados têm se refeito, têm se reformado, ao gosto das trocas. El Molino, o magnífico café-restaurante também conhecido como confitería, no jargão de Buenos Aires, que esteve fechado durante uma crise político-financeira anterior, foi totalmente reformado e agora administrado por uma comissão mista de deputados e senadores, reabriu suas portas em 9 de julho, exatamente em seu 107º aniversário. Se a decoração belle époque está mantida, no entanto, no palco, os atores estão cansados e o coro perdeu sua partitura. Disco riscado não gira bem. 

A inflação ultrapassou a marca de 100%. O banco de investimento J.P. Morgan estima que poderá atingir 190% em dezembro, ou 12,8% ao mês. O Instituto Nacional de Estatística (Indec) divulgou, no início de setembro, as taxas de atividade dos diversos setores. Caíram 3,9% na indústria e 5,8% na construção. As perdas variam: para móveis e roupas de cama, é de “apenas” 0,4%, mas sobe para 13,5% para máquinas. O déficit comercial com o Brasil, seu principal parceiro juntamente com a China, aumentou 2,7 vezes no primeiro semestre de 2023, face ao nível de 2022, informou o jornal econômico Ámbito

Enquanto isso, a dívida atinge níveis preocupantes, e a Argentina, excluindo os créditos condicionados do FMI, não consegue encontrar nenhum credor aberto às suas expectativas. Esses números têm consequências sociais muito graves: 40% dos argentinos vivem abaixo da linha da pobreza. Só quem tem acesso ao dólar consegue sobreviver. Os demais sofrem com a inflação e a ascensão do “dólar azul”, o dólar paralelo. Incapaz de ampliar o déficit público, impedido pelos acordos assinados com o FMI, o governo tomou medidas sociais e eleitorais de emergência. O ministro da Economia, Sergio Massa, candidato “oficial” às eleições presidenciais de 22 de outubro, anunciou em 12 de setembro que apenas os rendimentos elevados – ou seja, 90 mil pessoas–, seriam obrigados a pagar os seus impostos de outubro a dezembro. Todos os outros estarão isentos. 

Outras iniciativas foram adotadas para alimentar os cofres do Estado, com resultados mitigados. No início de agosto, a polícia fluvial argentina apreendeu uma barcaça paraguaia que transportava combustível no rio Paraná. O motivo foi a recusa de pagar um imposto decidido unilateralmente por Buenos Aires, sem consultar os outros países ribeirinhos, Bolívia, Brasil, Paraguai e Uruguai. Assunção, com o apoio de Brasília, La Paz e Montevidéu, denunciou uma violação do tratado que regula as condições de navegação e ameaça levar o caso ao Tribunal do Mercosul. À espera de uma resposta, os recursos eléctricos da barragem binacional de Yaciretà, que excedem as necessidades do Paraguai, já não são entregues tão facilmente à Argentina. Simultaneamente, a produção de energia foi alargada, a fim de aumentar o mais rapidamente possível as exportações de gás natural e de petróleo. Entre janeiro e julho deste ano, a Argentina aumentou em 88% as suas exportações de gás para o Chile. Em junho, foram inaugurados 573 km de gasoduto para ligar o campo de Vaca Muerta, nos Andes argentinos, à província de Buenos Aires. De acordo com o diretor da empresa petrolífera YPF, isso deverá gerar em breve 20 bilhões de dólares para a Argentina. Outras potenciais receitas de minérios, como o lítio e o potássio, também foram impulsionadas. Tudo isso é positivo, sem dúvida, mas apenas a longo prazo, e em nada contribui para atenuar a disfunção crônica de um país que já não tem confiança na sua moeda, na sua economia, nos seus líderes empresariais e muito menos nos seus “líderes” políticos [2].

O “exotismo” eleitoral temido pelo ministro da Economia do Brasil tem um nome: Javier Milei. Um nome que revela uma mudança de época. Desta vez, as eleições já não são entre justicialistas e anti-peronistas. Os Kirchner já não estão no centro das batalhas. Exasperados com a perpetuação das dificuldades cotidianas, um número significativo de argentinos prepara-se para votar no partido “A Liberdade Avança”, de Javier Milei, o candidato “anti-casta” contra todos os que até agora “têm levado a melhor”, segundo ele. Milei já mostrou as suas cores: liberalização da economia, dolarização da Argentina, redução ou mesmo abolição do Banco Nacional, redução ou suspensão das relações com os países “comunistas” China, Cuba e Brasil, e não adesão ao grupo BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Sua companheira de candidatura, Victoria Villarruel, também condenou a lei do aborto, pôs em dúvida as disposições relativas à igualdade entre homens e mulheres, defendeu a reabilitação das Forças Armadas e condenou as guerrilhas dos anos 70, o ERP e os Montoneros. Em 14 de setembro, Javier Milei atacou o presidente brasileiro, acusando Lula de ter organizado “um autointitulado golpe de Estado” em 8 de janeiro. E acrescentou: “Para mim, será complicado manter relações com Lula, devido às suas tendências totalitárias”.

Javier Milei ficou em primeiro lugar nas primárias presidenciais obrigatórias [3] de 13 de agosto, com quase 30% dos votos. Na ausência de relações partidárias, até agora ele perdeu todas as consultas locais.  A votação teve lugar no domingo, 17 de setembro, no Estado do Chaco. O governador no cargo, um justicialista, foi derrotado, não pelo candidato do partido “A Liberdade Avança”, mas por um “macrista” (direita clássica, incluindo radicais), da coligação “JxC” (Juntos pela Mudança). O Chaco é a quinta província que foi conquistada pela direita liberal do “Juntos pela Mudança”, em que tradicionalmente eram eleitos peronistas. Estes resultados são um presságio para uma possível coabitação entre a direita e a extrema-direita em 22 de outubro, num contexto de crise econômica, financeira, social e regional.

Notas

Texto publicado originalmente em francês, no dia 21 de setembro de 2023, na seção Actualités, Amérique Latine do Site Nouveaux Espaces Latinos com o título original “Argentine, année zéro?”. Disponível em: aqui. Tradução de Thaisa Pinheiro Carvalho e Luzmara Curcino.

[1] Título de uma canção do artista marfinense Tiken Jah Fakouly.

[2] Situação apelidada de anomalia argentina por dois sociólogos, Julio Godio e Hugo Mancuso, em Anomalía argentina, Buenos Aires, Miño y Davila, 2007.

[3] Chamadas de PASO (Primárias Abertas Simultâneas e Obrigatórias).

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Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris, e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014), e colabora frequentemente com o Observatório da Imprensa, em parceria com o LABOR – Laboratório de Estudos do Discurso – UFSCar e com o LIRE – Laboratório de Estudos da Leitura.