Em 20 de agosto próximo, os guatemaltecos vão às urnas para escolher seu futuro presidente ou sua próxima presidenta. Na noite do primeiro turno, no dia 25 de junho, duas personalidades conquistaram o direito de concorrer ao segundo turno. Sandra Torres, representante do partido UNE (Unidad Nacional de la Esperanza), centro-direita, e Bernardo Arevalo, centro-esquerda, porta-estandarte do Movimento Semilla.
Ao contrário do que as frases com que iniciamos o texto nos possam sugerir, todo o processo eleitoral em questão se dará sob o signo de uma anormalidade democrática persistente e espantosa. A seleção dos candidatos, as pesquisas de opinião, a campanha eleitoral, a condução da votação, tudo está fora dos marcos constitucionais. Ao mesmo tempo, a Guatemala é o país da América Latina que mais se alinhou à Ucrânia, defendendo a sua soberania e a sua liberdade, atacadas pela Rússia.
Surrealismo ou Realpolitik? Surrealismo, sem dúvida, como recordou em um de seus romances Eduardo Halfon. “Ninguém ignora”, escreveu em Canción, “que a Guatemala é um país surrealista” [1]. Esse surrealismo, esclarece o autor, é político e antidemocrático. “Estas são as palavras”, acrescenta, “empregadas ao início de uma carta escrita por meu avô, e publicada em um dos principais jornais do país, o Prensa Libre, no dia 8 de junho de 1954 – três semanas antes da queda de Arbenz” [2]. Em 2023, passados setenta anos do golpe de Estado efetuado por aqueles que se disseram à época mantenedores da ordem social, as autoridades guatemaltecas instrumentalizam a Justiça na manutenção do status quo.
Entre as duas eleições, o amordaçar da imprensa livre. Juan Luis Font, jornalista investigativo do Concriterio, às vésperas de ser preso, deixou a Guatemala, no dia 1º de abril de 2022. No dia 29 de julho de 2022, Rubén Zamora, diretor do jornal El Periódico, foi preso por ordem do promotor de justiça Rafael Curruchiche, que era, paradoxalmente, também responsável pela luta contra a corrupção no país. No dia 12 de maio de 2023, o jornal em questão, conhecido veículo da capital guatemalteca, notório por suas investigações e denúncias de corrupção envolvendo dirigentes do país, foi forçado a fechar as portas. Outros processos e detenções de jornalistas chamaram a atenção e colocaram em alerta as organizações internacionais que defendem a liberdade de expressão.
Com a aproximação das eleições, o promotor Curruchiche e vários magistrados, em particular o juiz Fredy Orellana e a promotora Consuelo Porras, mudaram de ombro o fuzil empunhado. Mobilizaram a justiça para eliminar candidatos que se propunham a mudar a vida das maiorias. Antes do primeiro turno – em 25 de junho –, vários candidatos considerados ameaça potencial à manutenção da ordem vigente foram colocados em manu militari, com direito a transporte em camburão, e com isso retirados das eleições. É o caso de Thelma Cabrera, MLP (Movimento Popular de Libertação), e Carlos Pineda. As pesquisas não previam a chegada de Bernardo Arévalo.
Tido como um candidato menor, apontado pelas pesquisas de opinião com 3% das intenções de voto, Arévalo conseguiu conduzir uma campanha quase normal. Surpreendentemente, conseguiu chegar ao segundo turno, com quase 12% dos votos expressos. Desde a noite de 25 de junho, ele tem sido alvo cruzado do promotor Rafael Curruchiche e de vários outros magistrados. No dia 12 de julho, Curruchiche exigiu a suspensão do Movimento Semilla, sob acusação de corrupção. No dia 18, o juiz Freddy Orellana indiciou dois funcionários da Justiça Eleitoral por se recusarem a suspender a participação do Semilla na segunda rodada da corrida presidencial. A sede do Semilla foi revistada no dia 21 de julho a pedido da Procuradoria Especial contra a Impunidade (FECI). Ações judiciais foram abertas contra ativistas associados à instituição.
A menos de um mês do segundo turno da corrida presidencial, milhares de guatemaltecos lutam por sua democracia. O Conselho Constitucional e o Tribunal Eleitoral
entenderam como nulas as iniciativas dos promotores e juízes que pediram a suspensão do Semilla e o indiciamento de seu candidato. Diversas ONGs, em sua maioria indígenas, como o “Parlamento do Povo Xinca” contra-atacaram apresentando denúncias de violação da lei eleitoral contra os três magistrados citados anteriormente. No dia 24 de julho, marchas em defesa da democracia foram organizadas em todo o país. Tudo isso terá sido suficiente? As eleições de 20 de agosto vão mesmo acontecer? E, se sim, com a participação do candidato do Semilla, Bernardo Arévalo?
A OEA (Organização dos Estados Americanos), a União Europeia e os Estados Unidos apelaram às autoridades guatemaltecas em defesa da democracia. Jordan Rodas, ex-mediador da Guatemala, atualmente refugiado político na Espanha, resumiu as dificuldades e as muitas dúvidas que o problema em questão inaugura. A Guatemala, disse ele a um repórter do jornal El País, Madri, “é uma ditadura corporativa”. Para seus representantes, “o Estado é um espólio que assegura a proliferação de seus lucros, […] Foi o caso dos presidentes Otto Pérez Molina, Jimmy Morales e atualmente Alejandro Giammattei, […] e da maioria dos candidatos” do primeiro turno de 2023. “Eles controlam as instituições” com a ajuda “do CACIF (Comité Coordinador de Asociaciones Agrícolas, Comerciales, Industriales y Financieras) e dos empresários”.
No entanto, no dia 25 de julho de 2022, Alejandro Giammattei foi recebido em Kiev por Volodymyr Zelensky como um companheiro que compartilha os valores da liberdade e da soberania. Nesse dia, o primeiro magistrado guatemalteco reafirmou seu “dever de promover […] a democracia, a paz e as soluções diplomáticas”. No dia 25 de fevereiro de 2023, Dimitro Kuleba, Ministro das Relações Exteriores da Ucrânia, agradeceu à Guatemala, primeiro país latino-americano a apoiar a criação de um Tribunal Especial para julgar crimes cometidos pela Rússia na Ucrânia. No dia 1º de março, durante uma visita de trabalho à Guatemala, o vice-chanceler ucraniano, Andriy Melnyk, saudou a Guatemala como “uma verdadeira liderança do mundo livre na América Latina”.
Deixemos a conclusão para Miguel Angel Asturias [3], com as palavras finais de seu romance “Senhor Presidente”, entoadas como uma litania ou salmo, por uma senhora idosa que apela, ao estilo católico tradicional, a valores que parecem contraditórios entre si: “Pelos agonizantes e caminhante. Para que reine a paz entre os Príncipes Cristãos. […] Por todos os que sofrem perseguições nas mãos da Justiça. Pelos inimigos da fé católica…”.
Notas
Texto publicado originalmente em francês, em 26 de julho de 2023, na seção ‘Actualités’ do Institut de Relations Internationales et Stratégiques – IRIS, Paris/França, com o título original “Les élections du 20 août prochain au Guatemala en course d’obstacles anti-démocratiques”. Disponível em: https://www.espaces-latinos.org/archives/113580. Tradução de Thiago Augusto Carlos Pereira e Luzmara Curcino.
[1] Frase retirada do romance “Canción”, Barcelona: Libros del Asteroide, 2021, p. 60.
[2] Jacobo Arbenz, eleito presidente em 1951, foi derrubado do poder por um golpe militar, de extrema-direita, em 1954.
[3] Nasceu em 19 de outubro de 1899 na Cidade da Guatemala e faleceu em 9 de junho de 1974 em Madri.
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Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris, e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014), e colabora frequentemente com o Observatório da Imprensa, em parceria com o LABOR – Laboratório de Estudos do Discurso – UFSCar e com o LIRE – Laboratório de Estudos da Leitura.