Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

México, de um presidente a uma presidenta: qual é o legado de AMLO para Claudia Sheinbaum?

( Foto: Ricardo Stuckert/PR)

Claudia Sheinbaum, a primeira mulher eleita presidenta do México, toma posse e, tal como para o presidente que deixa o cargo, Andrès Manuel Lopez Obrador (AMLO), do Morena (partido de esquerda), a Fundação Jean-Jaurès busca resposta para os resultados econômicos, políticos e sociais da presidência de AMLO a nível nacional, regional e internacional. Mas também se pergunta como será a presidência de Sheinbaum, muito próxima de AMLO: ela irá continuar as políticas do seu antecessor ou libertar-se desta figura tutelar?

No dia 2 de junho de 2024, os eleitores mexicanos escolheram a sua futura presidenta, Claudia Sheinbaum, candidata da coligação “oficialista” de esquerda, ou seja, da aliança entre o Morena (Movimento de Regeneração Nacional), o PT (Partido Trabalhista) e o PVEM (Partido Ecologista Verde do México). Seu concorrente, Xóchitl Gálvez, defendia as cores de uma oposição heterogênea de direita, composta pelo PAN (Partido de Ação Nacional), de origem democrata-cristã, e pelo PRI (Partido Revolucionário Institucional), antigo partido tradicional resultante da Revolução de 1910, e o PRD (Partido da Revolução Democrática), uma cisão de esquerda do PRI. Os mexicanos também renovaram os seus deputados, senadores e eleitos locais [2]. Neste contexto, as eleições legislativas assumem particular importância, na medida em que é necessária uma maioria qualificada para alterar a Constituição. Da mesma forma, os resultados eleitorais da Cidade do México, capital e entidade federal, constituem um passo preliminar em qualquer eleição para o cargo supremo.

A coligação vitoriosa Sigamos haciendo historia (“Continuemos fazendo história”) defendeu a política que foi nomeada de “4T”, da “quarta transformação”, reivindicada e aplicada pelo presidente Andrés Manuel López Obrador (AMLO) de 2018 a 2024. 2024 a 2030, o que acontecerá com Claudia Sheinbaum, amiga íntima de AMLO há mais de vinte anos? Seguirá à risca o caminho da política 4T, produto da imaginação política de AMLO? Ela terá credibilidade suficiente para fazer isso? Terá a mesma autoridade sobre a coligação oficial? Como serão as suas relações com o ex-presidente, no dia seguinte à sua posse, em 1º de outubro? Tantas perguntas sem resposta, tão grandes são as incertezas.

Claudia Sheinbaum foi nomeada pelo presidente que deixa o cargo, AMLO, ao final de um processo das primárias internas no seu partido, o Morena, baseado em sondagens, e cujo resultado foi contestado por um dos seus adversários, Marcelo Ebrard, antigo secretário de Estado das Relações Exteriores. Ao fazê-lo, AMLO renovou o processo de patrocínio, o dedazo (designação do “potro” presidencial), que era outorgado aos presidentes que deixavam o cargo nos anos “priistas”, e que agora foi rebatizado de descorcholato. O rumo político traçado desde 2018 deixa a sua marca. No México, um estado federal administrado por um regime institucional presidencial, o mandato presidencial é de seis anos e o chefe de estado não é reeleito. De 2018 a 2024, AMLO conseguiu desenvolver o seu projeto de “quarta transformação” do país que pretendia implementar, concebido como uma extensão de três transformações históricas: a “1T”, de 1810 a 1821, relativa à independência adquirida da monarquia espanhola; a “2T”, de 1851 a 1864, relativa às reformas liberais e da segunda independência conquistada em detrimento do ocupante francês; a “3T”, de 1910 a 1920, relativa à Revolução e à democratização do país.

O resultado das eleições presidenciais respondeu a um certo número de considerações: o perfil dos candidatos, a capacidade de mobilizar o seu apoio partidário e a capacidade de responder da melhor forma à situação econômica, social, de segurança e internacional. Filha de pais acadêmicos, cientistas, e ela própria cientista, Claudia Sheinbaum [1] apoia AMLO há 23 anos. De 2000 a 2005, desempenhou papel importante, de grande responsabilidade em sua equipe municipal. Em seguida, supervisionou diversos projetos políticos e eleitorais no PRD, depois no Morena. De 2015 a 2017, atuou como prefeita distrital, depois prefeita da capital de 2018 a 2023. Com a eleição de Claudia Sheinbaum, os eleitores legitimaram os resultados das 4T. AMLO, seu criador e “guardião”, mantém uma imensa aura popular e termina seu mandato de seis anos com uma taxa de aprovação de 60%. Claudia Sheinbaum não procurou afastar-se das orientações ideológicas do seu antecessor, orientações que ela aceita e reivindica. “O meu projeto chama-se AMLO”, teria respondido a Adela Ramos em 2022. Esta lealdade e ligação ideológica foram confirmadas diversas vezes durante a sua campanha. Em fevereiro de 2024, declarou que se preparava para “construir o segundo andar do edifício”. No entanto, ela esclareceu que o seu governo seria consistente com a sua personalidade.

Mas o que é então a política 4T, uma sigla ligeiramente misteriosa, imposta pela retórica do presidente que agora sai do cargo? É um livro de compromissos concretos? Um curso de ação? Uma ideologia de esquerda? Também desafiará a candidata vitoriosa a perpetuá-lo e estendê-lo. Quaisquer que sejam as suas intenções, Claudia Sheinbaum, que está empenhada em perpetuar a 4T, terá necessariamente que conviver com o legado deixado por AMLO. Desde 10 de setembro de 2023, ela é a responsável como coordenadora dos Comitês de Defesa 4T.

A vitória de AMLO em 2018 foi a primeira no México de um candidato preocupado com as expectativas dos mais modestos, após quase 80 anos de governo do PRI e dois mandatos de direita do PAN. O balanço de AMLO, quaisquer que sejam as suas limitações, não é um balanço semelhante ao de seus antecessores. Desde o início, seu projeto de 4T foi concebido e defendido como um vetor de mudanças tão fundamentais como as dos pais da independência: o padre Miguel Hidalgo, os liberais nacionalistas mobilizados atrás de Benito Juárez e as grandes figuras da Revolução, Francisco I. Madero, ao qual acrescentou posteriormente Ricardo Flores Magón, o apóstolo da “terra e da liberdade”. O mandato de AMLO ocorreu num momento favorável à eleição de vários presidentes latino-americanos de esquerda: os de Gustavo Petro na Colômbia e Gabriel Boric no Chile, bem como a reeleição de Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil. Mas será que AMLO pertence à mesma família política?

Notas

Texto publicado originalmente em francês, em 26 de setembro de 2024, na seção “International” da Fundação Jean Jaurès, Paris/França, com o título original: “Mexique: d’une présidence à une autre, quel héritage d’AMLO pour Claudia Sheinbaum ?” Disponível aqui. Tradução: Adriana Cícera Amaral Fancio e Luzmara Curcino.

[1] Os resultados da eleição presidencial são os seguintes: Claudia Sheinbaum, coligação Movimento de Regeneração Nacional (Morena) – Partido Trabalhista (PT) – Partido Verde e Ecologista do México (PVEM), 61%; Xóchitl Gálvez, Partido da Ação Nacional (PAN) – Partido da Revolução Democrática (PRD) – coligação Partido da Revolução Institucional (PRI), 28%; Jorge Álvarez Máynez, Movimento Cidadão, 10,5%.

[2] Os resultados das eleições legislativas (Congresso da União: Câmara dos Deputados – 500 cadeiras – e Senado – 128 cadeiras) são os seguintes: Morena – PT – PVEM obteve 364 cadeiras na Câmara dos Deputados e 83 no Senado; PAN – PRI – PRD obtêm 108 cadeiras na Câmara dos Deputados e 40 no Senado; o Movimento Cidadão obteve 27 cadeiras na Câmara dos Deputados e 57 no Senado.

[3] Os resultados nas eleições para prefeito da Cidade do México são os seguintes: Clara Brugada (Morena – PT – PVEM) 48,7%; Santiago Taboada Cortina (PAN – PRI – PRD) 42,2%; Salomón Chertorivski Woldenberg (Movimento Cidadão) 7,3%.

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Jean-Jacques Kourliandsky é Diretor do “Observatório da América Latina” junto à Fundação Jean Jaurès, na França, é especialista em análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe, e autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014). Colabora frequentemente com o “Observatório da Imprensa”, no Brasil, em parceria com o Laboratório de Estudos do Discurso (LABOR) e com o Laboratório de Estudos da Leitura (LIRE), ambos da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).