Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Lembrando Otto Lara Resende

Deixando para trás o inverno canadense, eu desembarcava no Rio num dia de janeiro de 1983 para pesquisas doutorais sobre a obra de Clarice Lispector. Pouco depois de minha chegada, fiz amizade com Otto Lara Resende, contatado por sugestão de Paulo Gurgel Valente, o filho da escritora. “Uma flor de pessoa”, como dizia dele mesmo, brincando, o querido Otto, que me pareceu de imediato dotado de tanta humanidade, de uma cultura extensa e, sobretudo, de uma fala inesgotável que, junto com o calor dos trópicos, deixava tonta a quebequense mas sem nunca a entediar…

Na saída, passei minha máquina fotográfica ao simpático escritor Cyro dos Anjos, acadêmico eleito na sucessão de Manuel Bandeira, para ele tirar uma fotografia minha ao lado do meu “pai” brasileiro. Ele sonhava visitar meu país, mas contava um fato real ou exagerado (nunca tive certeza se era uma piada): que, em sua juventude, na embaixada do Canadá (ou teria sido o consulado?), ele tinha vomitado diante dos convidados, em plena recepção, e que em consequência disso o governo canadense jamais lhe daria um visto…

Um dia ele me chamou a ir à Academia Brasileira de Letras. Em pé na tribuna, ao lado de Otto, fiquei espantada que, em um país tão rico de romancistas e contistas, a Academia não acolhesse uma parte da metade da humanidade. A então única imortal do sexo feminino, Rachel de Queiroz, não estava presente naquela tarde. Os uniformizados sorriram diante de minha juventude e me convidaram para o chá ritual na sala dos lustres. Devorei os tira-gostos de palmito, me entupi de doces e beberiquei o melhor vinho do Porto com os medalhões que interrompiam a fala uns dos outros para me lançar tiradas ou recitar versos de simbolistas franceses.

“Vem que vou te apresentar a Drummond”

Ouvi religiosamente o presidente Austregésilo de Athayde me relatar seu encontro com Albert Einstein e depois outro patriarca, com sobrancelhas grossas como dois bigodes sobre os olhos, me despejar a história política do Brasil. Passou pela minha cabeça que nenhum dos políticos modernos encarnava o modelo ideal, tal como foi sintetizado pelo poeta chileno Pablo Neruda, entrevistado por Clarice Lispector: o ser humano mais completo possível seria “político, poético. Físico”.

Em outro momento, Otto me levou à funerária do cemitério São João Batista com o objetivo declarado de me fazer conhecer Carlos Drummond de Andrade. Uma ocasião de ouro, já que a misantropia do poeta aumentava com a idade, me explicou Otto. O amigo de colégio de Drummond estava de boca aberta em seu féretro acolchoado. O defunto octogenário, dotado de uma dentição equina, exibia um sorriso amarelo, possivelmente sentindo-se privado da consideração devida à morte. De fato, a imensidão de sua solidão estourava sob seu peito coberto de flores: os muitos visitantes falavam alto para reverter o silêncio do mistério do nascer, viver e morrer. “Ninguém olha para o defunto e todo o mundo lhe dá as costas”, cochichei no ouvido de Otto. “Ele não podia imaginar que algum dia uma canadense desconhecida rezaria por ele ao pé de seu caixão. Vem que vou te apresentar a Drummond.”

A bem-aventurada subjetividade

Também ele de costas para seu companheiro morto, o poeta só falou comigo sobre seus problemas de saúde, fixando um ponto à sua frente, com os olhos sempre abaixados e deformados por lentes grossas incrustadas em uma moldura severa. Sua surdez parcial e a hipertrofia de sua próstata, como pedra no meio do caminho…

Nessa época eu aspirava tornar-me escritora e também cronista, à moda de Drummond, de Otto, de Clarice e de muitos outros prosadores: para oferecer lições em forma de chistes, frases poéticas ou proféticas sugeridas pelas palavras, as coisas e os seres saídos da vida cotidiana. Mas não me tornei cronista e tenho escrito livros. O que não me impede de pensar que a crônica sabe sempre acolher a bem-aventurada subjetividade e as anedotas como as que lembrei agora, com prazer e muita saudade do Brasil – Rio de Janeiro, 1983 (tradução de Clara Allain).

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[Claire Varin é romancista canadense e estudiosa de Clarice Lispector]