Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Ícone da resistência

A obra de ficção do argentino Rodolfo Walsh (1927-1977) ganha edição brasileira num momento em que o escritor vem se transformando em ícone da resistência à ditadura dos anos 70 em seu país. O conjunto estava inédito no Brasil (exceto por alguns contos que saíram em coletâneas passadas).

Também tradutor e jornalista, Walsh é autor, entre outros, do clássico do jornalismo investigativo latino-americano Operação Massacre (1957). Na política, atuou como militante montonero (guerrilha de esquerda).

A editora 34 começou a lançar sua ficção em português em 2010, com Essa Mulher e Outros Contos. Agora, chega às livrarias do Brasil o segundo volume, Variações em Vermelho.

Enquanto isso, em 2011, a Justiça argentina, que vem condenando os responsáveis por crimes cometidos pelo Estado argentino durante a ditadura (1976-1983), determinou a prisão perpétua de 12 responsáveis por torturas e desaparições no centro de detenção da ESMA (Escola Mecânica da Armada), relacionados com o caso Walsh.

O escritor terminou seus dias executado numa esquina do centro da cidade por um comando militar, em 25 de março de 1977. Aspectos da morte ainda são investigados.

“Prócer oficial”

Variações em Vermelho é o livro de estreia do escritor e foi lançado em 1953. Nele, Walsh experimenta com o gênero policial, do qual era admirador desde que trabalhara para a editora Hachette, revisando e traduzindo obras dessa vertente.

Além disso, Walsh tinha como principal referência os trabalhos de Jorge Luis Borges (1899-1986), um fã confesso do gênero.

No texto “Dois Mil e Quinhentos Anos de Literatura Policial”, que está no volume, Walsh faz uma análise sobre o histórico do estilo, de certa forma inserindo-se nele.

O escritor é herdeiro de uma longa tradição literária argentina vinculada ao policial. Dela fazem parte, além de Borges, Ricardo Piglia (Alvo Noturno).

O protagonista dos contos de Variações em Vermelho é Daniel Hernández, uma espécie de alter ego do escritor.

O herói é também um revisor de provas, que usa as habilidades requeridas por sua profissão para resolver enigmas criminais.

Por ter sido um militante montonero, Walsh virou um ícone, escolhido pela presidente Cristina Kirchner para representar a resistência à ditadura. A militância kirchnerista o celebra.

Para o editor e tradutor Sergio Molina, o vínculo que se faz de Walsh com sua militância política, hoje, é prejudicial para a apreciação literária de sua obra.

“Ter virado um mártir e prócer oficial da ‘era K’ [Kirchner] provocou a reação de negar sua importância literária”, diz. Molina destaca, assim, a relevância de resgatar sua ficção hoje. A editora 34 prevê lançar, ainda, um terceiro volume, Os Casos do Delegado Laurenzi e Outros Contos Resgatados, com 22 contos que foram publicados em revistas da época.

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[Sylvia Colombo, da Folha de S.Paulo em Buenos Aires]

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O lado menos conhecido do escritor

[do release da editora]

Reunindo cinco contos policiais e um ensaio de Rodolfo Walsh, Variações em vermelho apresenta ao leitor brasileiro um lado menos conhecido, mas fundamental, de um dos maiores escritores argentinos do século 20. Na trilha de Sherlock Holmes, Borges e Adolfo Bioy Casares, Walsh introduz na história da literatura um detetive surpreendente: Daniel Hernández, um revisor de livros que usa sua atenção aos detalhes para decifrar os mais incríveis crimes e enigmas.

Publicado em 1953, quando Walsh tinha apenas 26 anos, este seu livro de estreia traz uma série de narrativas criminais segundo a fórmula clássica inglesa, à Sherlock Holmes. O detetive de Walsh, porém, não é um criminologista autodidata, como Holmes; nem um policial, como Maigret. Daniel Hernández é um humilde operário das letras, um revisor de livros. Profissional da palavra, com a inteligência treinada pela prática do esclarecimento, Daniel é capaz de decifrar escrituras, fazendo uso da “estranha capacidade de colocar-se simultaneamente em diversos planos” desenvolvida em seu ofício.

Walsh, que também foi por muito tempo revisor, demonstra ter a mesma “estranha capacidade”, como afirmou Gabriel García Márquez ao recordar sua leitura de Variações em vermelho: “Para os leitores dos anos 50, quando o mundo era jovem e menos urgente, Rodolfo Walsh era o autor de deslumbrantes novelas policiais, que eu lia em lentas ressacas dominicais numa pensão de estudantes.”

Sobre o autor

Rodolfo Jorge Walsh nasceu em 25 de janeiro de 1927, na província argentina de Neuquén. Atuou no campo literário primeiramente como tradutor e editor, mais tarde como jornalista e ficcionista – muitas vezes sobrepondo e fundindo essas atividades. Suas principais obras são os romances-reportagem Operación masacre (1957), Caso Satanowsky (1958) e ¿Quién mató a Rosendo? (1969), que o qualificam como precursor e expoente do new journalism, e os volumes de contos Los oficios terrestres (1965), Un kilo de oro (1967) e Un oscuro día de justicia (1973), nos quais a violenta beleza de sua prosa atinge seu ponto máximo. Deixou ainda uma série de contos policiais e duas peças de teatro, La granada e La batalla (ambas de 1965). Postumamente, parte de sua vasta produção jornalística foi reunida no volume El violento oficio de escribir (1995).

Walsh é também lembrado por sua vigorosa entrega à militância política, que marcou seus últimos dez anos de vida, quando aderiu à esquerda revolucionária peronista, chegando à liderança do movimento Montoneros. Para várias gerações de intelectuais, sua contundente “Carta aberta à Junta Militar”, em que denunciou os crimes da ditadura instaurada em 1976, tornou-se um modelo de resistência aos regimes autoritários e de fé na força da palavra contra os desmandos do poder. Walsh foi assassinado por um comando militar em 25 de março de 1977, logo depois de postar cópias daquela carta a amigos e colaboradores ao redor do mundo.

Sobre os tradutores

Nascido em Buenos Aires em 1964, Sérgio Molina mudou-se para o Brasil aos dez anos de idade. Começou a traduzir do espanhol em 1986 e verteu para o português mais de meia centena livros, de autores como Alejo Carpentier, Jorge Luis Borges, Ricardo Piglia e Mario Vargas Llosa. Sua tradução para a primeira parte de D. Quixote foi premiada na 46º edição do Prêmio Jabuti (2004).

Rubia Prates Goldoni é doutora em Literatura Espanhola pela Universidade de São Paulo e realizou parte de seus estudos acadêmicos na Universitat Autónoma de Barcelona. Lecionou Língua Espanhola, Literatura e Prática de Tradução na Unesp. Como tradutora, conta com cerca de trinta títulos vertidos do francês e do espanhol, nas áreas de literatura e ciências humanas. Recebeu o prêmio FNLIJ Monteiro Lobato 2009 – Melhor Tradução Jovem, por Kafka e a boneca viajante, de Jordi Sierra i Fabra (Martins).