Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

No coração de Machado

O que as cartas, os bilhetes e outros textos menores dizem de um artista? Às vezes muito, às vezes escondem quase tudo. No caso de José Maria Machado de Assis (1839-1908), sua correspondência completa, publicada pela Academia Brasileira de Letras (ABL), tem trazido a público aspectos desconhecidos ou não muito abordados da carreira, das ideias e da personalidade do escritor considerado unanimemente o mais importante do Brasil – e, por conseguinte, o mais estudado de todos. Cartas, bilhetes, cartões etc. igualmente ocultam detalhes que excitam a curiosidade do leitor. Como em seus contos e romances, na correspondência Machado mais insinua do que afirma.

O trabalho de organização das cartas enviadas a Machado e respondidas por ele, sob o título de Correspondência de Machado de Assis, tem sido empreendido desde 2008 pelo crítico e pensador Sergio Paulo Rouanet e de suas duas assistentes, as entusiasmadas pesquisadoras-detetives Irene Moutinho e Sílvia Eleutério. Cada volume lançado provoca enorme alvoroço nos meios literários e acadêmicos. O tomo I abrangia o período de 1860 a 1869. O tomo II – 1870 1889 saiu em 2009. O terceiro volume foi concluído no fim do ano passado.

Curiosamente, o número de cartas aumenta de tomo a tomo, à medida que os pesquisadores vasculham o material. No fim do ano, será lançado o quarto volume, abordando o período de 1901 a 1904. O plano inicial era perfazer quatro tomos, mas o número de cartas no período final do escritor obrigou os organizadores a aumentarem um volume, o último, que deverá ir de 1904 a 1908, a ser editado no fim de 2013. “Quanto mais pesquisamos, mais nos surpreendemos”, diz Rouanet. “Em relação a Machado, há sempre algo a descobrir.”

Há muito a descobrir na correspondência que vai de 1890 a 1900, reunida no terceiro volume. As 292 missivas mostram Machado no ápice da carreira. Entre os 51 e 61 anos, ele redigiu e fez publicar dois de seus romances mais importantes – Quincas Borba e Dom Casmurro – e trabalhou para fundar e institucionalizar a ABL. Trocou ideias com críticos, colegas e personalidades da época, reagiu discretamente aos ataques de inimigos, deu conselhos a amigos jovens e até encontrou tempo para se envolver com uma mulher.

No coração do escritor

A intimidade e o trabalho se entrelaçam nas cartas do escritor, que se confessa “spleenético” ao pupilo Magalhães de Azeredo – a quem aconselha o trabalho literário para curar a melancolia. Machado interrompe uma carta a Azeredo e justifica que tinha sido acometido pelo “mal” – numa rara menção à sua epilepsia.

Ao crítico José Verissimo, Machado narra o esforço para criar suas histórias. “Quincas Borba”, por exemplo, custou quatro anos de trabalho. A amizade com Verissimo não parecia tão clara quanto agora, pelo tom amistoso e descontraído que os dois mantêm. As cartas de Joaquim Nabuco e Graça Aranha a Machado revelam que os dois leram “Dom Casmurro” em outubro de 1899 em Paris, antes de o volume ter sido lançado no Brasil, no início de 1899. Graça Aranha mostra que já não gostava da ABL em 1897, apesar de instado por Machado de Assis a fazer parte da instituição. Ora, o que se sabia até agora era que Graça romperia com a academia em 1924, quando se arvorou em líder do modernismo. Outro detalhe é a forma como Graça se dirige a Machado, chamando-o de conquistador e fazendo gracejos – que fizeram que Machado suspendesse a correspondência com ele por quatro anos.

Machado evitava o tom informal. Gostava de manter a respeitabilidade. Tinha um cuidado especial para a ABL e se recusava a discutir política. Em bilhetes a várias autoridades, ele se esforça para aprovar a lei Eduardo Ramos, que colocava a Academia Brasileira de Letras como instituição federal. Esse esforço do escritor não é citado pelos seus principais biógrafos. Outro erro histórico que a correspondência corrige diz respeito à primeira sessão solene de posse de João Ribeiro, para ocupar a primeira vaga de um imortal morto, Guimarães Jr. Diferentemente do que informam os historiadores, ela não aconteceu em 30 de novembro de 1898, mas em 17 de novembro.

Mesmo ciente de seu papel de liderança no campo literário, Machado deixou escapar seus sentimentos. Nesse sentido, a parcela mais saborosa do volume está nas duas cartas que Machado envia à escritora paulistana Rafaelina de Barros (1878-1943) em abril e maio de 1896. Rafaelina havia se separado de um marido comerciante para viver com o escritor Emílio de Meneses. Em uma carta não encontrada, ela fez dois pedidos ao romancista: o envio da tradução do poema “Corvo”, de Edgar Allan Poe, feita por Machado, e um favor não revelado. Machado atendeu ao primeiro pedido, mas não ao segundo: “Pesa-me confessá-lo, há razão que só à vista lhe poderei dizer, e que me impede de a cumprir, como deseja cordialmente. Creio que o meu pesar é maior que o seu, por mais amável que seja da sua parte sentir algum.”

Na segunda carta, de 25 de maio de 1896, Machado se refere ao encontro que os dois tiveram: “Sobre as lágrimas de tempos idos não lhe digo mais nada, além do que falamos sábado. É memória que nunca perdi, e pode imaginar-se se me haverá penalizado tamanha dor sem culpas de uma por causa involuntária de outro”. Essas passagens densas de subentendidos sugerem que houve no mínimo uma simpatia encantada do velho escritor para com a moça. Teria sido Rafaelina a mulher que inspirou a personagem Capitu?

Esse tipo de pergunta não pode ser respondida pela leitura da correspondência machadiana, já que as cartas mais lançam dúvidas do que esclarecem. Elas mostram apenas parcialmente o que se passava no coração do escritor. Mesmo assim, ajudam a redefinir a imagem do mito mais cultuado das letras brasileiras.

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[Luís Antônio Giron é jornalista]