Passam-se os dias e pouco se fala do lançamento, em março, de um livro muito interessante: Tiranos & Tiranetes (Editora Civilização Brasileira, R$ 44,90), do jornalista Carlos Taquari. Menos poético, é verdade, do que Veias Abertas da América Latina, o livro sobrevoa os mesmos cenários ao “sul do Rio Grande” e suas histórias têm os mesmos protagonistas e o mesmo enredo: tiranias de todos os tipos, as envergonhadas, as escrachadas, as disfarçadas de democracia, as corruptas e as corruptoras, que ensanguentaram o continente ao longo de sua história desde a independência.
O México, ao norte, depois de um século inteiro de guerras intestinas e perda de território para três potências invasoras, mergulhou num regime de partido único que, com dedazos, fraudes e controle da imprensa, permaneceu no poder por 80 anos. O Uruguai, ao sul, após quase um século de democracia, sofreu apenas um golpe de Estado, cruel o suficiente para ensombrecer a pacata “Suíça americana”, cuja tradição bélica se limitava ao instinto guerreiro de Obdulio Varela nas batalhas do futebol.
Às página 213 e seguintes, Taquari destaca os ensinamentos que Dan Mitrione, agente da CIA com passagens pedagógicas pelo Brasil e pela República Dominicana, ministrava aos agentes da repressão em Montevidéu. A tortura, dizia, é uma espécie de arte. “A dor precisa, no local preciso, na intensidade precisa, para se obter o efeito desejado”, ou “A morte prematura do prisioneiro, antes de revelar o desejado, é falha técnica inadmissível.” [Evidentemente, os interrogadores de Vladimir Herzog no DOI-Codi de São Paulo fizeram gazeta nessa aula.] Mas um contra-almirante uruguaio tinha contribuição a dar: “O importante é obter as informações”. Isso feito, o “sedicioso”, o “subversivo”, o “comunista”, o inombrable, não mereceria mais viver.
Até a esquerda precisa aggiornarse
O ar que se respira na América Latina é menos rarefeito do que o de 41 anos atrás, quando Eduardo Galeano publicou seu Venas Abiertas. Brasil e Uruguai são hoje democracias plenas. Se Galeano tinha a obrigação moral (e a coragem) de exercer uma literatura engajada na resistência, Taquari permite-se simplesmente o exercício livre do jornalismo. A denúncia dos golpes de Estado, perpetrados a pretexto de salvar a civilização ocidental e cristã, está explícita em seu livro. O rigor profissional com que sintetiza a história de 19 países latino-americanos torna irrelevante o fato de o alcoólatra general Mariano Melgarejo Valencia, ditador da Bolívia (1864-1871), ser tão néscio a ponto de considerar Napoleão um militar mais importante que Bonaparte. Ou que Alfredo Stroessner, ditador longevo (1954-1989), foi deposto ao voltar da casa de uma de suas dez amantes.
Obviamente ditaduras não existem porque o ditador é iletrado ou sobrevivem porque roubou o bastante para sustentar uma infinidade de amantes paraguaias. Taquari não vai, e não parece ser esse o seu propósito, às causas profundas dessas ditaduras, mas ao leitor das 378 páginas de seu livro sobra a conclusão de que parte dessa responsabilidade cabe à intromissão estrangeira – EUA, principalmente – e também à cumplicidade de elites que clamam pela intervenção dos militares para proteger privilégios hipotética ou verdadeiramente ameaçados, e depois reclamam quando os militares, embriagados de poder, querem mandar sozinhos.
O livro de Taquari tem outros avanços. Aborda erros cometidos pelas esquerdas. O governo de Salvador Allende (1970-1973), por exemplo, caiu não só porque Richard Nixon e Henry Kissinger determinaram à CIA make the economy scream – façam a economia chilena berrar de dor –, mas também porque a política econômica interna “foi um desastre”. E aparecem na lista de mais de 30 tiranos ou tiranetes o brasileiro Getúlio Vargas, o argentino Juan Domingo Perón, o cubano Fidel Castro, o peruano general Juan Velasco Alvarado, além do venezuelano Hugo Chávez, e isso pode desagradar alguns esquerdistas, nacionalistas, gregos ou goianos. Mas passam-se os dias, as semanas, os anos, e até a esquerda precisa aggiornarse, incluir a autocrítica nas suas análises da história e decidir sobre o que entende por democracia.
Comecemos por aqui, sem esperar que em Washington se faça o mesmo. Sobre isso, aliás, Barack Obama deixou poucas esperanças em Cartagena das Índias.
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[Paulo Totti, do Valor Econômico]