Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Clandestinidade, de 2004 a 2007

Já lançado em outras capitais brasileiras, o novo livro de Cesare Battisti, Ao pé do muro (Martins Fontes, 2012, 304 p.), foi apresentado aos paulistanos na quinta-feira (26/4), no anfiteatro da Faculdade de Geografia da Universidade de São Paulo. Dá sequência ao relato de suas vicissitudes desde que o governo italiano conseguiu fazer com que a França traísse o compromisso solene assumido com ele (e outros fugitivos italianos), de lhe proporcionar refúgio enquanto se mantivesse afastado da política. Depois de levar vida comum e produtiva entre 1991 e 2004, começando como zelador e aos poucos se consagrando como autor de novelas policiais, foi atirado no que apropriadamente definiu como Minha fuga sem fim (título do volume inicial de suas memórias de perseguido político, Martins Fontes, 2007, 288 p.).

Nele narrou, de forma empolgante, a formidável campanha de manipulação da opinião pública e as pressões políticas e econômicas orquestradas para que os franceses revogassem, na prática, a generosa Lei Mitterrand. Em segundo plano, vão desfilando as lembranças da família comunista, do progressivo engajamento político até chegar à contestação armada, da militância nos Proletários Armados para o Comunismo, da prisão, do julgamento, da fuga, da clandestinidade na França e no México e, finalmente, dos 13 anos de existência tranquila em Paris.

Depois veio Ser bambu (Martins Fontes, 2010, 224 p.), quando a traumática retomada da fuga o leva à ilha da Madeira e às ilhas Canárias, sempre controlado atentamente pela espionagem europeia.

“Subversivos” brasileiros

Ao pé do muro recapitula o período que viveu clandestino no Brasil, de 2004 até sua detenção em março de 2007, mais o dia-a-dia na área de custódia da Superintendência da Polícia Federal no DF (onde permaneceu até julho de 2008, quando foi transferido para um local bem menos opressivo, o Centro Penitenciário da Papuda). O muro em questão é aquele no qual ficava encostado, refletindo, enquanto tomava banho de sol. Foi a fase em que ficou conhecendo sua atual companheira, que estava incumbida de o vigiar, tendo, paradoxalmente, a relação evoluído para um caso de amor.

Suas memórias cariocas mostram o lado da Cidade Maravilhosa que não aparece nos guias turísticos: os morros submetidos à autoridade das gangues, as pessoas simples vitimadas por fogos cruzados e balas perdidas, prostituição, desigualdade, pobreza. Passa o tempo mais a observar e interpretar do que a agir, como o Mersault de O Estrangeiro, de Albert Camus. Leva uma vida provisória, atravessando os dias sem perspectivas, temendo e adivinhando o desfecho funesto.

Este trecho me sensibilizou, pois viria a ser eu um dos irmãos à distância brasileiros que, em nome das dores comuns, o ajudariam:

“Dentro de alguns minutos, estaria sentado nas pedras do Arpoador. Um lugar de beleza e morte. Eu tinha lido em algum lugar que, na época da ditadura, naquela rocha lisa e clara que mergulha no oceano separando a praia de Copacabana da de Ipanema, os militares aqueciam a pedra em brasa antes de nela estenderem os 'subversivos'. Seria isso que me consolava naquele lugar, depositar minhas dores junto à daqueles homens que haviam sido meus irmãos à distância? Não sei, só ficava ali olhando o sol confundir-se com a água.”

Jogo descoberto tarde demais

As histórias da prisão da PF, dos outros prisioneiros e até de um carcereiro nos remetem ao Dostoievski de Recordações da Casa dos Mortos, a muitos livros de Jorge Semprún e a outros tantos de Alexander Soljenítsin. Algumas são interessantes e pungentes, outras nem tanto. Mas ajudam a compor o painel que Battisti vai montando do Brasil, com direito a incursões pela prática generalizada da corrupção, pelo inferno das drogas, pelas ocupações dos sem-terra, pela manipulação mesmerizante/bovinizante da indústria cultural, pelos crimes contra a natureza e contra os homens que ocorrem impunemente na Amazônia etc.

E como o homem acossado, espionado, monitorado e até drogado por uma rede permanente de vigilância se define? Como um ser tão prostrado quanto o Joseph K. no final de O Processo:

“Eu vinha de uma viagem demasiado longa, e estava exausto, fragilizado por anos de perseguições, mentiras, ameaças e privações. (…) Tempo demais arrastando a vida numa mochila. De um lugar para outro sem destino certo, de avião, de barco, a pé, de táxi. Uma quantidade enorme de táxis amarelos sempre parando em ruas anônimas. Fugas grandes e pequenas, perigos reais e falsos alarmes, circunspecção legítima e delírio, medo, sempre o medo dos onipresentes perseguidores, homens e mulheres, caçadores oficiais e clandestinos, sempre no meu encalço, dia e noite, onde quer que eu fosse. Por que não me prendiam? Por que vigiar todas as minhas idas e vindas a esperar, dia após dia, durante meses, anos? E esperar o quê?

Em breve descobriria o jogo deles, mas seria tarde demais. Enfim, tarde demais para quê? Para continuar tremendo a cada porta que batia? Para optar pela solidão de modo a não poluir uma mulher com meus problemas? Para me alimentar aqui e ali, e dormir nos arredores das estações, sempre perto demais dos traficantes de toda espécie? Para quebrar a cabeça fotografando esses homens e mulheres que revistavam sistematicamente toda morada em que eu vinha parar, mesmo que por meio dia apenas… Era assim que eu vivia no Rio.”

Não foi esquecido

A espiã/namorada e outra personagem constataram, surpresas, que ele era inofensivo, bem diferente do perigoso terrorista que seus contratantes haviam pintado. Battisti concorda, avaliando-se como “um restolho dos anos 1970, que já na época era um pequeno sonhador, e hoje é um velho sonhador babaca”.

O desalento vinha de longe. Antes mesmo de voltar a ter a cabeça a prêmio, já se rompera nele o encanto, golpeado rudemente pela sucessão de tragédias que marcou sua geração:

“Naqueles tempos de transição entre a efervescência revolucionária pós-1968 e o baixo astral dos anos 1980, eu vagava, com os outros todos, na névoa de uma clandestinidade sem volta e sem objetivo que não sobreviver. Éramos o que restara de um pequeno exército em debandada.”

Minha postura é outra: permaneço na luta até hoje, também sofrido, sem a ingenuidade de outrora, mas com o mesmo ardor. Tenho, contudo, máxima simpatia e respeito pelo antigo guerreiro que hoje busca o merecido repouso – e nem isto está conseguindo, pois continua enfrentando muitas dificuldades e tem evidências de sobra de que não foi esquecido pelos inquisidores.”

Voltar a Paris

É impossível não se comover com este desabafo de Battisti, situado em 2006 ou 2007:

“…Estou cansado de arrastar minha vida de um lugar para outro, fugindo do inevitável. Não aguento mais, estou exausto, os anos vão passando e eu não vejo minhas filhas crescerem. Não consigo mais imaginar o rosto delas. Eu faço força, mas não consigo, e sinto vergonha disso. Eu perdi tudo. Mas não elas. Eu quero as minhas duas filhas. Eu sou o pai delas.”

Agora pode, ao menos, recebê-las em liberdade. Mas acompanhá-las no cotidiano, só quando a Itália desistir de sua vendetta infame ou a França lembrar que um dia já quis ser a terra da liberdade.

Pois o que Battisti mais sonha é com a volta à Paris onde se deu tão bem e de onde nunca deveria ter saído.

***

[Celso Lungaretti é jornalista, escritor e ex-preso político; mantém o blog http://naufrago-da-utopia.blogspot.com]