Angustiados, acompanhamos as negociações para a libertação do dissidente cego Chen Guangcheng e de sua família para escapar dos espancamentos a que eram submetidos pelas autoridades chinesas. A mídia não economizou espaço nem tempo para contar uma história que nos remete aos gulags soviéticos e às violências dos fanáticos da “revolução cultural” maoísta. Imperioso conhecer o lado oculto do “milagre econômico” que não se resume aos salários de fome e ao regime de semiescravidão em que vive o proletariado chinês. Pelo menos duas gerações de militantes pró-democráticos estão amordaçadas pelo pavor e pela violência física.
Em contraste, estamos sendo informados álgida e burocraticamente dos crimes cometidos pelo ex-delegado do DOPS Cláudio Guerra, de 71 anos, que participou ativamente da repressão nos anos 1970 e 80 contra aqueles que pegaram em armas para acabar com a ditadura militar. No livro Memórias de uma guerra suja que está nas livrarias a partir deste fim de semana, o ex-policial contou aos repórteres Marcelo Netto e Rogério Medeiros como liquidou doze guerrilheiros e o que fez com os corpos de outros dez presos políticos mortos em sessões de tortura na Casa da Morte, em Petrópolis.
Incinerou-os na usina de açúcar Cambahyba, região de Campos, norte fluminense: David Capistrano, José Roman, Luiz Ignácio Maranhão e João Massena Melo, do PCB; Ana Rosa Kucinski e o marido Wilson Silva, da ALN; João Batista Rita, da M3G; Joaquim Pires Cerveira, da FLN; Fernando Augusto Santa Cruz e Eduardo Collier Filho, da APML.
Trâmites especiais
O delegado que depois da redemocratização tornou-se famoso pela participação nos grupos de extermínio do Espírito Santo ofereceu detalhes horripilantes sobre o estado em que recebeu os corpos: Ana Rosa, toda mordida, certamente estuprada, seu marido sem unhas e Capistrano sem a mão direita. Revelou também detalhes até agora desconhecidos sobre o assassinato do jornalista Alexandre von Baumgarten, último dono da revista O Cruzeiro, a morte do carrasco Sérgio Fleury (assassinado por militares) e o atentado ao Riocentro.
A terrível e bombástica confissão surpreendeu as autoridades encarregadas de direitos humanos, organizações que cuidam dos desaparecidos políticos e os próprios acusados de torturas e violências como o coronel Brilhante Ustra, o famoso Dr. Tibiriçá. Já apareceram suspeitas sobre a sua sanidade mental e as reais intenções ao assumir tantos e tão hediondos crimes. Cláudio Guerra responde com uma incrível tranqüilidade: “Se eu tive a coragem de fazer, tenho que ter coragem para assumir meus erros”.
O Ministério Público Federal já se movimenta. E por que não a Polícia Federal? Esta matança cometida pelas autoridades não é da sua alçada? Um episódio que macula a República Federativa do Brasil não deve ser investigado por sua mais competente e confiável instituição policial?
Este caso precisa ser acompanhado ao vivo. Sem câmeras ocultas, sem sigilo, sem vazamentos. Este horror made in Brazil precisa ser escancarado. Imediatamente, em detalhes. Como aconteceu com o Tribunal de Nuremberg – que julgou os crimes cometidos pela cúpula nazista – este caso exige trâmites especiais. Está em jogo não apenas a imagem do país e de suas instituções. Nossa alma precisa desta catarse para viver em paz.