Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um matador em busca da paz

O ex-delegado do DOPS (Departamento de Ordem Político Social) do Espírito, Santo Cláudio Antônio Guerra, afirma que resolveu confessar seu envolvimento em crimes durante a ditadura militar devido a um conflito de consciência.

Após passar sete anos na cadeia sob acusação de ter matado um bicheiro, Cláudio Guerra converteu-se ao cristianismo e, hoje, aos 71 anos, é um preletor da Igreja Assembleia de Deus que costuma citar em suas pregações o seus “pecados do passado”.

Os jornalistas Rogério Medeiros e Marcelo Netto contam, no livro “Memórias de uma guerra suja”, que Cláudio Guerra tornou-se famoso no início dos anos 70 no Espírito Santo como um ardiloso e implacável combatente da bandidagem às custas de mais de 35 execuções de acusados de crimes comuns.

Ele próprio confessa outras 40 mortes anteriores “de pistoleiros e lideranças camponesas”, no início da carreira policial em Minas Gerais. “Se lá (em Minas) servi às elites rurais, (aqui) no Espírito Santo prestei serviço às suas elites políticas”.

Os jornalistas afirmam que era comum Guerra ser homenageado e cortejado pelo mundo político e empresarial. Seu gabinete no DOPS era frequentado por dois governadores do período da ditadura militar: Élcio Álvares e Eurico Rezende.

Mas as suspeitas de que teria matado uma colunistas social dos jornais locais acabaram atraindo a mídia nacional para o Estado. E a imagem do delegado se deteriorou. O próprio Rogério Medeiros foi autor de uma reportagem demolidora contra o delegado no Jornal do Brasil.

Guerra terminou preso pelo assassinato do bicheiro Jonathas Borlamarques de Souza – que ele diz ter sido morto por outro policial a mando de dois coronéis que comandavam a Secretaria de Segurança e o Departamento de Polícia.Obteve ainda uma condenação a 18 anos – que está suspensa judicialmente – pelas mortes de sua primeira esposa e da cunhada.

Mas ele também afirma não ter participado desses dois assassinatos.Ao longo do livro, no entanto, o velho delegado admite muitos outros assassinatos.”Fui condenado por um crime que não cometi. Mas mereci a condenação pelos meus outros crimes”, costuma dizer em suas preleções evangélicas.

“Na cadeia eu passei a conhecer Jesus. Ao me aprofundar no conhecimento da palavra do Senhor, vi a necessidade de caminhar para além do perdão. E assim resolvi vir a público revelar todos os meus atos quando trabalhei em favor do regime militar. Aquilo que para mim era matar um inimigo ficou claro, com Jesus, não passar de crime hediondo.”

Chefes do atentado ao Riocentro mataram Baumgarten

Os mesmos comandantes do Riocentro mandaram executar o jornalista Alexandre Von Baumgarten, em 1982, revela o ex-delegado do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) do Espírito Santo Cláudio Guerra, no livro “Memórias de uma guerra suja”.

Cláudio Guerra conta que ele próprio foi encarregado inicialmente do assassinato. O plano era simular uma morte natural, aplicando em Baumgarten uma injeção com a substância letal. A perícia, combinada, apontaria como causa da morte um infarto comum.

Segundo o relato do ex-delegado aos jornalistas Marcelo Netto e Rogério Medeiros, que acaba de ser publicado pela Editora Topbooks, a ordem de matar Baumgarten, dono da revista Cruzeiro, “partiu do SNI (Serviço Nacional de Informações) de Brasília”.

À época, a Agência Central do SNI, em Brasília, era chefiada pelo general Newton Cruz. E Cláudio Guerra teria sido escalado para o assassinato – chamado de Operação Dragão – pelos seus dois chefes diretos: o coronel de Exército Freddie Perdigão (Serviço Nacional de Informações) e o comandante Antônio Vieira (Cenimar).

O ex-delegado dá os nomes dos comandantes da operação, “os mesmos de sempre”.

Ambos haviam sido, ainda segundo o ex-delegado, os comandantes do atentado do Riocentro, junto com o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra (comandante do Departamento de Operações de Informações do 2º Exército – DOI-Codi).

“Ele (Baumgarten) ia morrer porque era um arquivo vivo. Recebia dinheiro para apoiar o governo militar, por meio do trabalho na revista. Mas, por várias razões, os militares perderam a confiança nele e decretaram sua morte. Por mais recursos que ele recebesse, queria sempre mais e mais. A ambição o transformou num chantagista.”

Cláudio Guerra conta que juntou três homens de sua equipe e, um mês antes do desaparecimento de Baumgarten, abordaram-no numa rua do Rio de Janeiro e o imobilizaram.

“Anunciei um assalto, a injeção estava comigo, mas não consegui aplicar. Baumgarten reagiu, gritou que estava sendo assassinado e acabou atraindo a curiosidade das pessoas que passavam. Tivemos que abortar a operação.”

Pouco tempo depois, o técnico da antiga Companhia Telefônica do Rio de Janeiro (Telerj) Heráclito Faffe, que trabalhava em escutas para o SNI, morreu de edema pulmonar após uma estranha tentativa de assalto em Copacabana.

O livro Dos quartéis à espionagem: caminhos e desvios do poder militar, de José Argolo e Luiz Alberto Fortunato, relata que Faffe chegou a ser atendido por médicos e contou que seus agressores aplicaram-lhe uma injeção nas nádegas.

Troca de comando na operação

Segundo Cláudio Guerra, depois de outra tentativa mal sucedida, o coronel Perdigão informou que a Operação Dragão passaria para ser feita por militares e por um médico.

“Apanharam Baumgarten e a esposa na região serrana do Rio. Ela ficou refém e ele foi para a Polícia Federal, com o delegado Barrouin”.

Cláudio Barrouin Mello foi vice-presidente do Sindicato dos Delegados Federais do Rio de Janeiro e ficou conhecido ao comandar a operação que culminou na morte do banqueiro do bicho Toninho Turco. Morreu em 1998.

Conta Cláudio Guerra que os assassinos de Baumgarten levaram a vítima para alto-mar. A função do médico era fazer uma incisão no seu abdomem para liberar gases e evitar que boiasse. Mas o corpo apareceu na praia. E o delegado diz ter ouvido de Perdigão e Vieira que foi por erro do médico.

“Antes que eu me esqueça: o médico que abriu a barriga do Baumgarten chamava-se Amílcar Lobo”, conta o ex-delegado.

Amílcar Lobo, tempos depois, teve seu registro médico cassado por ter participado de sessões de tortura no regime militar. Seu codinome era “Doutor Carneiro”.

O livro

O livro revela os bastidores de uma parte do trabalho de destruição da esquerda brasileira durante os anos 1970 e início dos 80. É o depoimento, em primeira pessoa, de um ex-delegado do DOPS que foi o principal agente de um grupo de militares fora da cadeia de comando oficial das Forças Armadas. No início, eles foram autorizados pelo Governo Federal a promover a matança e o aniquilamento da esquerda, o que incluía o desaparecimento dos corpos das vítimas. Depois, estes mesmos militares começaram a se rebelar contra o comando oficial. Claudio Guerra, ex-delegado do DOPS, conta aqui o que viu e o que fez. Seu nome não está em nenhuma das listas de agentes torturadores, feitas pelas organizações de esquerda, porque na verdade ele nunca torturou ninguém: sua missão era matar.

Memórias de uma guerra suja demandou quase três anos de trabalho, o que incluiu aproximação, convencimento, idas e vindas, gravações sob compromisso, conversas, conversas e conversas – pessoais ou através do Skype – e ainda muita pesquisa. Depois veio a correria, pois a segurança dos envolvidos começou a ficar vulnerável à medida que as pesquisas avançavam. Aqui está a primeira amostra de uma série de crimes nessa guerra muito suja – um bom ponto de partida para a investigação séria, profunda e não revanchista dos abusos da ditadura.

Claudio Guerra, o protagonista

“Sou um homem de 71 anos, mudado pela vida. Não posso dizer que não me arrependo. As tarefas que cumpri me trouxeram dores dos ossos à alma, os rostos nunca se apagaram da minha memória.

“Enquanto servi ao regime militar, lhe fui absolutamente leal, a ponto de aceitar a autoria de um crime que não era meu.

“Na cadeia eu conheci Jesus e ao me aprofundar no conhecimento da Bíblia, vi a necessidade de caminhar para além do perdão. Era preciso me confessar aos homens. E resolvi revelar os meus atos na defesa daquele regime.

“Encaro como positiva e acertada a decisão da presidente Dilma Rousseff de criar a Comissão da Verdade, e estou à disposição das autoridades para ajudar.

“Não quero mais carregar segredos, não há perdão, mas posso buscar contrição daquilo que fiz. Para tentar ajudar as famílias das vítimas resolvi dizer o que sei. Estou sereno, não podia deixar de fazer o que estou fazendo. Sofro e lamento por tudo o que aconteceu e sinto como se estivesse falando de um Claudio que não existe mais, daquele Claudio, Deus já me libertou.” 

Claudio Guerra foi um dos policiais mais poderosos dos anos 70 e início dos anos 80. Circulava no eixo Rio-São Paulo-Minas Gerais-Espírito Santo com a desenvoltura de uma autoridade anônima consciente de seu poder de destruição humana. Hoje é um pastor evangélico que passa boa parte das manhãs de domingo estudando hebraico, e grande parte de seu tempo estudando a Bíblia. Também desenvolve atividades sociais sob a supervisão da Justiça, já que ainda cumpre pena de prisão, recolhido numa instituição para idosos. E vive pedindo por suas ovelhas: o tratamento difícil para alguma criança, uma cirurgia de emergência, um olhar mais técnico sobre um promissor jovem atleta de sua comunidade. Ex-policial experiente, ele sabe que sua vida sofrerá graves mudanças a partir da divulgação das informações constantes em Memórias de uma guerra suja.

Claudio Guerra apenas começou a puxar o fio de um novelo intrincado. A Comissão da Verdade, criada pela presidente Dilma Roussef, poderá compor uma vasta pauta de trabalho a partir deste livro: para tanto, bastará ler seus relatos e organizar as investigações. Mas é fato que, se não indicarem para a tarefa pessoas maduras, isentas e equilibradas, inteligentes e objetivas e com capacidade de investigação, não se chegará a muito mais do que está aqui. Se a escolha recair sobre cidadãos mais interessados em aparecer nos jornais usando a Comissão da Verdade como trampolim, tudo acabará em espuma midiática. A verdade é que dá muito trabalho investigar os crimes do regime militar, mesmo com a ajuda de um informante como Claudio Guerra.

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Os autores

Rogério Medeiros, jornalista e fotógrafo, trabalhou em três jornais de Vitória, Espírito Santo – A TribunaO Diário e A Gazeta, onde foi editor chefe – e mais tarde no Jornal do Brasil e O Estado de S. Paulo. Em 1998, fundou a revista Século, que no ano 2000 deu lugar ao jornal eletrônico Século Diário. Também criou e dirigiu a Vix, uma das primeiras agências de fotografia do país. Além de ter participado do roteiro e direção de oito documentários, é autor de vários livros, entre eles Espírito Santo, o encontro das raças (1983), Espírito Santo, maldição ecológica (1983), Ruschi, o agitador ecológico (1995) e Um novo Espírito Santo – Onde a corrupção veste toga (2010), este em parceria com o jornalista Stenka do Amaral Calado.

Marcelo Netto estudou medicina até o final do quarto ano, quando foi preso pelo regime militar por 13 meses, nove deles em solitária. Proibido de estudar durante três anos por ato do então ministro da Educação, Jarbas Passarinho, com base no decreto-lei 477, virou jornalista. Foi repórter e editor de vários jornais: O DiárioA Gazeta e A Tribuna, em Vitória, Espírito Santo, e Correio BrazilienseFolha de S. Paulo, revista VejaO Globo e TV Globo, em Brasília. Teve vários cargos de chefia de redação, entre eles o de diretor de jornalismo dos escritórios do jornal O Globo e da TV Globo na capital do país. Foi presidente da Radiobras, a empresa de comunicação do Governo Federal, e respondeu pela Assessoria de Comunicação do Ministério da Fazenda. Atualmente possui uma consultoria na área de informações e comunicações em Brasília.