Quase sempre a chegada de mais um livro biográfico sobre Getúlio Vargas vem acompanhada de mais uma decepção. Os problemas são de várias ordens, a começar pela ausência de fontes ou de identificação das citações por orientação das editoras. Outras, a maioria, pecam pelo tom passional, pela mistura amadora de ficção com dados empíricos, pela ênfase no caráter “enigmático” e psicanalítico do biografado ou pelo relato jornalístico sem sabor narrativo. Diga-se, de início, que Getúlio, 1882-1930 – Dos Anos de Formação à Conquista do Poder, de Lira Neto, primeiro livro de uma trilogia que percorrerá a vida de Vargas, foge a esse padrão. Para quem conhece o período e o personagem, não traz revelações refundadoras, mas tem muitos méritos que o fazem uma obra de referência, a primeira desse porte. Para deleite de quem gosta de boa informação, o livro tem índices remissivos, notas rigorosas, bibliografia impressionante e um caderno de fotos no início fazendo uma cronologia visual de sua vida até 1930.
Começo lembrando duas facetas importantes, mas complicadoras quando se trata de estudar um “caudilho estadista” como Vargas. Em primeiro lugar, é o personagem mais conhecido da história republicana sobre quem todos têm algum juízo formado ou já ouviram opiniões muito seguras. Todos, a seu modo, sabem o início e o fim da história. A propaganda estado-novista ajudou a formar uma imagem mitificada e heroica de Getúlio o que, por sua vez, alimentou a verve e a simbologia de seus opositores.
Em segundo lugar, creio tratar-se do personagem político do país sobre o qual há mais fontes de pesquisa. São vários tipos de documentos textuais arquivados em várias instituições, biografias, depoimentos, entrevistas, etc. Sua vida pública e privada é retratada em discursos, letras de música, charges, filmes de propaganda, documentários etc. Além do mais, foi dos poucos estadistas brasileiros a escrever um diário pessoal. Essa enormidade de fontes faz a festa do historiador ou do biógrafo, mas pode ser um oceano propenso ao afogamento involuntário. No tempo e nas instituições em que viveu o Getúlio Vargas deste volume, tudo era escrito e guardado. A maneira como o autor lida com essa imensidão de dados é surpreendentemente criativa.
Elite rural
Este volume segue a vida de Getúlio até a chegada à Presidência em 1930. Os tempos de estudante e adolescente são narrados de forma a mostrar privilégios e desmandos das elites regionais. Arruaças, assassinatos, contrabando, estupros, troca de favores políticos e policiais, submissão dos órgãos da lei ao poder do governador e das oligarquias faziam parte do Brasil em que Getúlio Vargas cresceu e se formou. Esta é a meu ver a parte mais impactante do livro.
A participação em missões militares fez também parte dessa trajetória. Foi soldado do Exército por pouco tempo quando conheceu o Acre, e comandou um corpo provisório, na revolução de 1923 no Rio Grande do Sul, para defender o quinto mandato sucessivo de Borges de Medeiros, ganho de maneira questionável com sua aprovação. Sempre me chamou atenção a lealdade de Getúlio para com Borges de Medeiros. Em nome de seu chefe político defendeu no Congresso a descentralização política e a autonomia dos Estados. Este comportamento mudará e será tema do próximo volume.
A oligarquia Vargas é bem retratada no contexto da política regional gaúcha. É marcante, contudo, que os privilégios que lhe eram peculiares se fizessem acompanhar por regras do governo representativo. Assim é que Getúlio, membro de uma frugal, mas poderosa e discricionária elite rural, forma-se em Direito, acaba representando seu estado no Rio de Janeiro, ganha o governo estadual e de lá marcha para ser candidato a presidente. Ao longo dessa trajetória, sempre defendeu o status quo, até abraçar a causa revolucionária.
As difíceis relações com São Paulo
A campanha sucessória de 1929/30 dá nova configuração à geografia política ao país. Em plena crise oligárquica, Estados de segunda grandeza ganham visibilidade. O Nordeste (Paraíba) se junta ao Sul por meio de uma aliança com Minas Gerais. O paradigma da política do café com leite sob a hegemonia de São Paulo e Minas Gerais começa a se esgotar e o pacto oligárquico incorpora novos aliados, ainda que em campos opostos. A elite dominante não consegue administrar seus conflitos internos nem fazer frente aos desafios que os novos atores colocam em cena.
A revolução de 1930 não está contida na campanha sucessória, mas é parte de um diálogo transversal entre membros da elite que entendem a saturação do antigo regime e as dificuldades para se autorreformar. Getúlio Vargas ganha a frente da revolução porque é o governador do Rio Grande do Sul e não porque seja o grande revolucionário do Sul. O autor deixa isso bem claro, mostrando suas vacilações, seus temores. A partir daí nada será feito sem seu aval. Nesse dia começa a escrever seu diário.
Não há no livro a preocupação de interpretar a história ou o sistema político brasileiro, não há uma narrativa que busque alinhavar os fatos, tão séria e cuidadosamente narrados, com o processo de modernização conservadora pelo qual o país acabou passando. Em compensação, também não há uma análise “psicanalítica” do biografado, recurso tão saturado. Irresistível, contudo, ao longo das 531 páginas de texto, é não pensar a cada capítulo na formação do Brasil contemporâneo. O que nos fez, em 1930, abandonar o pacto liberal ainda embrionário e adotar a via autoritária? Por que o liberalismo oligárquico não poderia ter sido reformado com mais liberalismo e alguma democracia? Por que o paradigma de governos fortes, ditatoriais, foi tão facilmente assimilável?
Espera-se do próximo volume descrição bem documentada das difíceis relações com São Paulo. São Paulo irá às armas contra a ditadura Vargas e guardará para sempre a marca de ser a única grande cidade do Brasil que não tem uma Avenida Getúlio Vargas. No entanto, a burguesia paulista foi a que mais se beneficiou do modelo protecionista de substituição de importações.
***
[Maria Celina D'Araujo é doutora em ciência política]