Saturday, 21 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Um mergulho no último suspiro da guerrilha

Para o soldado Cid, foi um ato banal. “Pisei em seu braço, impedindo que levantasse a arma, e perguntei: 'Qual o seu nome?' Com ar de deboche e ódio, respondeu aos gritos: 'Guerrilheira não tem nome'. Eu e João Pedro a metralhamos.”

Assim morreu, em 24 de outubro de 1974, numa obscura grota na selva, ao norte de Goiás, a militante do PC do B Lúcia Maria de Souza, ou Sônia, capturada pelo grupo do major Sebastião Curió – o homem que o regime militar havia encarregado de liquidar sumariamente a Guerrilha do Araguaia.

Sônia, Raul, Osvaldão, Arildo, Grabois, Áurea, Queixada, as duas Dinas… Os momentos finais de todos eles foram semelhantes. O registro de tudo, pelo próprio major, ficou por mais de 30 anos no fundo de uma mala vermelha guardada em um porão. Pelas mãos do jornalista Leonencio Nossa, repórter especial da Agência Estado em Brasília, esse precioso pacote de memórias está virando livro. Editado pela Companhia das Letras, Mata! – O Major Curió e as Guerrilhas no Araguaia chega terça-feira às livrarias e deixa mais rica a bibliografia da recente história do Brasil. Em 512 páginas, que incluem um caderno central com fotos cuidadosamente guardadas por Curió, vêm à luz as caminhadas finais, pela selva, da Operação Marajoara – a ação militar que entre 1972 e 1975 acabou com a brevíssima aventura da luta armada do PC do B no fundão de Goiás.

A tarefa exigiu paciência, determinação, talento. Leonencio rodeou o assunto e o major durante longos anos. Vasculhou 32 pastas, um pacote de mapas, seis álbuns de fotos e muitos papéis soltos que o xerifão das selvas, hoje tenente-coronel reformado, guardava para escrever, ele próprio, o seu livro – cujo título seria A Selva do Araguaia.

“Meu desejo é que a narrativa agrade. É importante que isso seja conhecido, esclarecido”, afirma o autor, que antecipou no Estado boa parte desse material em uma série de reportagens em junho de 2009.

Cor local

Fato marcante dos anos 70, a aventura armada no Araguaia tem sido objeto de muitos outros autores, mas o que surpreende em Mata! é o testemunho direto dos episódios – o que só as memórias de Curió tornariam possível. Breves capítulos vão despejando, aos poucos, a cansativa caminhada, as conversas, o dia, a hora, o lugar, o ataque, o grito, a fuga, o tiro. O cerco e a liquidação dos inimigos, já exaustos e sem recursos. O resultado, para a história, é uma correção atrás da outra de muitos relatórios – falsos – que o regime divulgou sobre quem morreu, onde e como. Não há grandes surpresas sobre o destino dos corpos.

Mas sabe-se, por exemplo, que foram 41 e não 25 os fugitivos que, já detidos, foram executados quando não ofereciam mais risco. Que Paulo Roberto Marques, o Amauri, não morreu no cerco à cúpula da guerrilha no Natal de 1973, mas fugiu e dias depois se entregou. “Entrou num helicóptero com as mãos amarradas. Foi fuzilado perto do Rio Saranzal”, anunciam os papéis de Curió. Que Dinalva Oliveira Teixeira, a Dina, não caiu em combate, mas morreu na cadeia de Marabá em 26 de junho de 1974.

Serra Pelada

Na segunda metade do livro vem à tona outra grande aventura de Curió: os seus turbulentos anos no comando de Serra Pelada. Uma saga de garimpeiros esfarrapados e prostitutas valentonas, gente que ele defendia e manipulava numa área maior que Inglaterra, Irlanda e Gales juntos.

Passados 38 anos da aventura, o tenente-coronel aposentado confessa ao repórter sua nostalgia. “Em Serra Pelada eram dois objetivos: extrair o ouro para encher o cofre do Banco Central e continuar o trabalho político. Não via o tempo passar. Hoje qual é meu rumo? Para onde eu vou? Araguaia foi uma guerra, nunca esqueça.” E bate na sua tecla preferida: “Se não houvesse determinação e pulso forte na erradicação da guerrilha, teríamos até hoje um movimento semelhante às Farc.”

***

“Fracasso na selva sepultou radicalismo”

Na longa lista de revoltas contra o poder, no Brasil, a aventura do PC do B no Araguaia não teve grande expressão, mas seu saldo político foi importante, avalia o historiador Pedro Paulo Rufino, titular do Departamento de História da Unicamp. “Enquanto a luta armada fracassava no campo, entre 1972 e 1975, o MDB conquistava o eleitorado, intelectuais faziam pesquisas no Cebrap, o jornal Movimento desafiava a censura”, recorda ele. “A derrota da luta armada sinalizou que o diálogo político era a única saída. A ele o regime militar não conseguiu sobreviver.”

Qual o balanço, hoje, dos episódios no Araguaia? Como explicar o surgimento da guerrilha?

Pedro Paulo Rufino – Esse fenômeno toma corpo num cenário específico, o da guerra fria pós-1945. O mundo polarizado entre dois lados, guerrilhas chegando ao poder na Coreia, no Vietnã, na Argélia, em Cuba, Nas vizinhanças, grupos fortes como Montoneros, Tupamaros, Sendero Luminoso. Os radicais do PC do B imaginavam que a guerrilha poderia também vencer por aqui.

Para alguns, acabou justificando mais radicalização do regime.

P.P.R. – Num cenário de confronto, classes altas e médias sentiam-se ameaçadas e a direita fortaleceu o discurso. Mas havia vozes discordantes. O velho Partidão aliou-se à oposição moderada.

A guerrilha perdeu, mas a ditadura também entrou em declínio.

P.P.R. – Temos de ver o conjunto. O período de 1972 a 1974 é crucial. Em 1972 a repressão ainda corria solta, mas em 1973 a crise do petróleo abalou os pilares e as certezas do regime militar. Em 1974, o MDB crescia nas urnas, a Igreja reforçava campanhas por abertura democrática. Até radicais do PC do B aceitaram a via eleitoral. O fracasso na selva sepultou o radicalismo.

Passadas mais de três décadas, o que ficou da aventura?

P.P.R. – O episódio foi pequeno, mas seu subproduto, o saldo político, foi muito importante. Enquanto a luta armada fracassava no campo, entre 1972 e 1975, o MDB conquistava o eleitorado, intelectuais como Fernando Henrique Cardoso faziam pesquisas no Cebrap. O jornal Movimento desafiava a censura, arrumavam-se as bases para a ascensão dos sindicatos. O fracasso da luta armada mostrou que o caminho era o diálogo político. A este o regime não conseguiu sobreviver.

Como o sr. vê a orientação dos militares para matar mesmo presos indefesos?

P.P.R. – À parte os julgamentos morais, é preciso entender que para o Exército era uma guerra e a lógica da guerra é eliminar o inimigo para evitar riscos. A França matou cerca de 1 milhão de pessoas na Argélia. Há alguns dias, mataram o segundo homem da cúpula da Al-Qaeda. Ninguém cobrou que ele fosse levado vivo para julgamento.

***

[Gabriel Manzano, do Estado de S.Paulo]