Transcrever sob a forma de imagens escritas aquilo que brota da fala que relembra um passado, sempre aberto aos idílios que os tempos pretéritos trazem, fazendo emergir o que é muitas vezes qualificado como o maravilhoso tempo de outrora, é uma ação que se institui a partir de uma dupla inscrição memorável. A primeira daqueles que lembram os múltiplos trabalhos de memória do passado como inscrição presente nas suas vidas e por estratégias de lembrança e esquecimento colocam a vida em cena novamente. A segunda é a inscrição memorável do próprio pesquisador, que antepõe o passado ao seu presente mais do que contemporâneo, pois é daí que extrai a matéria prima de sua pesquisa, e, assim produz outra espécie de visita ao passado.
Cabe ao pesquisador fazer falar o passado, instigando aqueles que se colocam no lugar de testemunhas a relembrarem pedaços de tempo que brota agora, no presente, sob a forma de palavras. Essa fala memorável instaura o efeito testemunha: aqueles que falam estiveram presentes na cena dos acontecimentos e é nesta condição de ter estado ali que produzem a nova inscrição do passado.
É sobre esse duplo movimento memorável que o livro de Christina Ferraz Musse e Cristiano José Rodrigues foi produzido. Reproduzindo mais de vinte depoimentos de jornalistas e radialistas que trabalharam nos chamados primórdios da televisão em Juiz de Fora, eles procuram mostrar, instigando o efeito de relembrança em cada um, como eram os veículos de comunicação audiovisuais naqueles tempos longínquos, como esses profissionais transitavam diante de tecnologias ainda desconhecidas de comunicação, como se estabeleceram as suas rotinas produtivas. Enfim, relembram as grandes coberturas, os grandes acontecimentos, a forma como “contaram” a cidade e marcaram, pelo ato de contar, um momento que hoje é elevado a categoria de tempo fundador.
Experiência e linguagem
A proposta central do livro é mostrar como o telejornalismo narrou a cidade, mas o que se vê nas páginas que se seguem é muito mais do que isso: além das cores da Juiz de Fora dos tempos de outrora, temos também aqui apresentados aquilo que os depoentes consideram fundamentais para ser inscrito como lembrança. Mas no jogo memorável há mais do que a apresentação daquilo que é lembrado: no esforço de lembrar está contido o esquecimento de múltiplas ordens. Há que também se considerar, ao pensar a memória, as estratégias que evocam lutas, disputas, construção de lugares de visibilidade, considerando-se, enfim, que os depoimentos não trazem o passado nele mesmo, mas um olhar que do presente lançamos ao tempo que qualificamos como tendo passado.
Nas entrevistas brutas aqui apresentadas, outros pesquisadores terão excelente material de análise para descortinar diversas questões do mundo da comunicação e do telejornalismo: como era o cotidiano do trabalho nos primórdios da TV, como o grupo se instituiu sob a forma de grupo memorável, quais são as memórias duradouras do grupo, que estratégias memoráveis são colocadas em cena e com que propósito, entre dezenas de outras.
Os jornalistas – ao falarem de um passado comum, no qual o ambiente de trabalho é apresentado como ator principal – produzem uma memória coletiva que, por vezes, se sobressai à memória de cada deles enquanto indivíduo. A memória do grupo apresenta-se assim amalgamada pela visão que do hoje lançam na sua revisita ao passado. Memórias relembradas em comum, construindo um lugar de fala que apresenta, no presente, uma unidade e uma singularidade: são todos participantes de um mesmo movimento de construção de um instante singular da história do telejornalismo, tendo participando desse momento que, assim, é elevado à condição de fundador.
Quando se fala em memória do grupo jornalista há que se considerar uma série de trabalhos que, normalmente, é apresentado nessas reminiscências. Do lugar de jornalistas, esses atores lembram um tempo considerado grandioso, inovador e, sobretudo, no qual a sua trajetória no mundo do jornalismo marca o momento axial de sua existência. Lá, no passado, na partilha de olhares, de saberes e de fazeres está o tempo grandioso de outrora no qual tudo começou e que não deve ser esquecido. Nas suas memórias, como grupo, o princípio de tudo, uma espécie de vida emblemática, começa invariavelmente com a entrada no mundo profissional, e o término marca, também, uma etapa fundamental da vida. A memória do grupo também se caracteriza pelas recordações de momentos significantes, nos quais as transformações ou a fundação de um acontecimento inesperado são o que deve ser mais do que lembrado: deve ser reverenciado como memória comum a todos que participaram do mesmo movimento profissional.
Por fim, o que o livro revela são múltiplos atos comunicacionais que através da linguagem fazem da memória algo produzido no presente, a partir de imagens e lembranças que falam da experiência de um grupo que se institui como portador de uma história singular. Com isso, o trabalho de lembrança (ao lado do silêncio instaurado pelo esquecimento) se constitui como ato comunicacional que, como qualifica Ricoeur, pode ser considerado como um enigma e um milagre. Um enigma, porque pela linguagem se consegue transmitir a experiência para outros, que a compreenderá ou não. Vivida, a experiência é a minha experiência. Comunicada, a minha experiência torna-se algo partilhado. É assim que a comunicação é uma espécie de milagre: por meio dela se consegue superar a solidão de cada ser humano.
A questão da referência é outro aspecto fundamental para a comunicação. A linguagem transcende a si mesma e se refere a um mundo que se apresenta como perceptível pelo ato de dizer. Trazemos para o mundo a linguagem e não a experiência, mas comunicamos o sentido da experiência e da linguagem. É também nesse sentido que a comunicação é um enigma.
Memórias revisitadas
Nas entrevistas transcritas nesse livro, observamos os múltiplos conhecimentos de atores que partilharam um momento singular e uma experiência que, no futuro, é qualificada como marcante: ter participado da experiência televisão em Juiz de Fora e de ter narrado, a partir desse lugar, a própria cidade. Pela linguagem, esses atores comunicam a sua experiência. E pela linguagem Christina Ferraz Musse e Cristiano José Rodrigues reuniram o que consideraram como fundamental para marcar estas passagens que revelam a trajetória do telejornalismo na cidade.
Os trabalhos memoráveis, portanto, se descortinam pela linguagem e se transformam em processos de comunicação. A transcrição das falas desses atores, que dão corpo e densidade ao livro, passa a ser significativa e aberta a múltiplas possibilidades interpretativas.
Dessa forma, o leitor que tomar o livro em suas mãos e realizar o gesto de ler os depoimentos aqui reunidos, também realizará outro ato memorável. Como os trabalhos de memória que visualizam no presente o passado e, portanto, se dá a partir da ausência, também a interpretação é feita na ausência e não na presença.
Mais do que mera reunião de falas, estes depoimentos são memórias revisitadas e deixam ver paisagens de uma cidade as quais ficaram inscritas num tempo pretérito. O contato com cada uma dessas falas faz o tempo que passou se tornar presente e abre no horizonte dos leitores possibilidades imaginativas para ver, pela imaginação, imagens duradouras da cidade de Juiz de Fora.
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[Marialva Carlos Barbosa é professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Linguagens da Universidade Tuiuti do Paraná e Diretora Científica da Intercom]